Crônica Urbana

São várias as faces do mundo urbano, basta dar apenas um pouco de atenção. Por volta das dez horas da manhã, as crianças estão brincando no quintal de areia e cheio de brinquedos da creche perto de casa. No quintal da creche há uma pequena casa, onde as crianças entram dentro e algumas delas ficam com a cabeça pra fora, olhando o movimento. Outras disputam o balanço. Num canto coberto, as crianças sentam-se ao chão e ficam com os olhos e ouvidos atentos para a professora com livros de fábulas nas mãos. Enquanto as crianças aproveitam e vivem a juventude, na rua de cima, no final da tarde, um homem está encostado na parede com as mãos na nuca, enquanto a polícia o revista. No bolso, celular roubado e um pacote de capsulas de cocaína. O policial questiona onde estavam os outros integrantes do furto da residência que ocorreu a uma quadra dali. Ele disse que não participou de nada: “Não sei de nada não senhor”, “Mas o senhor bate com as características dadas pela pessoa que denunciou”, “Mas não fui eu não senhor”. Uma senhora carregando duas sacolas cheias e aparente pesadas, parou de frente com o policial e disse que uma casa da rua dela foi assaltada no dia anterior. Indagada pelo policial se a mesma havia chamado a policia, a senhora respondeu que chamou e a viatura nunca chegou. “Liguei umas três vezes senhor policial, na última disseram que estavam sem viatura no distrito”, “A dona da casa abriu boletim?”, “Não sei senhor, a casa é dela, deve ter aberto não é? Se a casa fosse minha é o que eu teria feito”. E então ela foi embora, com uma cara feia, e desabafando que as coisas nunca dão certo. Ela passou por mim, no final da tarde enquanto eu aguardava o ônibus para ir a um curso. Olhou pra mim e apenas exclamou: “É brincadeira né? Nós pagamos para eles não trabalharem!”, e continuou descendo a rua esbravejando, sozinha. Eu apenas olhei e dei um sorriso sem graça. Enquanto homem era algemado, o ônibus chegou. “Boa Tarde Chris! Sua filha melhorou?”, “Pois é menina, dei uma correção nela. Está de castigo em casa, um mês sem sair de casa. Quem sabe ela esquece aquele filho da mãe!”, “Vai dar tudo certo, o Tempo cura qualquer coisa, é o que dizem não é?”. Uma semana antes, Chris, o motorista estava tristonho num canto do terminal do ônibus. Conhecido por ser uma pessoa que está sempre conversando e rindo de alguma coisa, ou na rodinha de fumantes na entrada externa do terminal, estranhei aquele comportamento atípico. Naquela noite, eu havia saído e comprei algumas fatias de torta de frango e empadas de palmito. Ofereci ao Chris, que naquele horário sempre estava com fome e nunca recusava nada. Disse ele que estava com dor de estômago, e que nada descia, que a fome não existia mais pra ele. Perguntei se havia acontecido alguma coisa, ele respondeu que a filha estava lhe dando úlceras por causa de uma paixonite pelo aviãozinho do tráfico de drogas da região. Disse que ela se dizia apaixonada, e que tinha planos de se casar. “Ela só tem quinze anos, é uma menina! Se ela me aparece grávida deste sujeito, o que eu posso fazer?”. Pediu desculpas pela indisposição. Disse-me que quando resolvesse o problema, aceitaria um pedaço de torta. E naquele fim de tarde, aparentemente o velho Chris estava com um sorriso no rosto. Eu pensei se ele realmente acreditava que um mês trancafiada sua filha iria deixar de gostar do tal rapaz. Eu quase perguntei, mas muitas vezes podemos nos enganar. Quem vai dizer que aquilo era Amor real? Poderia ser apenas uma paixonite fogo de palha. Às vezes este Tempo seja mesmo suficiente. Quem sou eu para questionar as ações de um pai de família desesperado e que perdeu a fome de preocupação?

 Chegando ao terminal, próximo de embarcar em um segundo ônibus que enfim me levaria ao meu lugar de destino, um grupo de rapazes improvisava uma música de funk ostentação. Uma delas era uma homenagem ao MC Daleste, morto recentemente durante um show. O ônibus chegou e as pessoas se acomodaram. Os rapazes da improvisação sentaram no fundo do ônibus e começaram a rolar as letras, carregadas da vida de luxo, uma vida cheia de aparências. Em outros momentos, rolava um proibidão, e o desconforto que já era visível nos passageiros do ônibus, se intensificava. O ônibus parou no acostamento da avenida e o cobrador desceu de sua cadeira alta do alto da roleta e proclamou a expulsão dos rapazes, caso eles não parassem de cantar. Enfatizou que a música cantada por eles era tão proibida quanto ao funk tocado em aparelhos celulares sem fone de ouvido, e que estava incomodando os passageiros. Um dos rapazes alegou que não tinha nada a ver, e que aquela atitude era puro preconceito, porque se fosse qualquer outro tipo de estilo musical, ninguém iria reclamar, “Se eu começasse uma bossa nova aqui, seria aplaudido, sacumé meu irmão, bossa nova é chique, é da elite, funk é povão, classe baixa, oprimida, leva tiro de anônimo no meio da multidão.” E prometeram que ficariam em silêncio. Num dado momento da trajetória, os rapazes entoaram um novo hino:

“Aê hipocrisia a bordo do busão

Eu faço com meu funk ostentação

Tua bossa nova não vai te levar a nada

Esse som de elite metida,tudo marmelada

Daqui um tempo, eu nas ruas com meu carrão

E você aí meu irmão, ainda andando de busão.”

E desceram do ônibus, cantando. Algumas pessoas riram, outras abaixaram a cabeça, talvez a refletir sobre o trecho dos rapazes da “periferia”. E o silêncio ficou até eu descer em meu ponto de ônibus. Na outra esquina, parei na loja de conveniência para fazer hora enquanto meu curso não começava. O assunto era os R$2,59 do litro da gasolina. Enquanto bebericava meu café expresso duplo, uma rodinha se formava cheia de opiniões a respeito da alta dos preços, e a coisa começava a ir para outros setores. Um senhor disse que ele se lembrava de uma época que o leite custava um real, e não tinha todos os nomes estranhos que se vê na lista de ingredientes. E o assunto mudou, a pauta era o leite: “Hey mocinha, tem leite no teu café?”, “Não, estou tomando apenas café”, “Você gosta de café com leite?”, “Adoro, de manhã, com pão com manteiga ou requeijão, ou um cappuccino caprichado”, “Pois é minha cara, saiba que esse leite que você gosta de tomar, está longe do que se tomava antigamente, a não ser que você tome aqueles vendidos em garrafa PET, direto da roça, esse é o verdadeiro! É esse que você toma mocinha?”, “Não, é desses de caixinha…”, “Então minha filha, esqueça, o que você toma não é leite”. Pensei sobre o caso, já tinha lido um artigo bem interessante do Dr. Feldman sobre o leite. Não deixarei de tomar leite, mas quase que pensei em ficar apenas no meu café duplo. Quando paguei a conta, a discussão estava na fonte de cálcio, e o carinha do caixa comentou que a tia dele estava com osteoporose porque ela não gostava de leite. “Hoje ela toma cálcio através daqueles “bagulho” de “Calcitran” não sei das quantas. É caro pra caralho, antes ela ter gostado de leite”. E então eu pensei antes eu tomar leite, do que Calcitran D12. Chegando em minha casa pesquisei novamente sobre o bando de siglas e o tal do Ultra UHT que vem escrito nas embalagens Tetra Pak das caixas de leite. Realmente o leite não é mais como era antigamente, e então eu passei a pensar também: Nada é mais como era antigamente. Continuaremos a cantar o saudosismo por aí. Mas de uma coisa eu sei bem, hoje ao sair novamente pela manhã, vi uma flor que nasceu entre a calçada e o asfalto. Quebrou as barreiras do concreto. O ônibus passou por mim e uma mulher jogou uma garrafa plástica pela janela do ônibus. Quase me acertou com seu espírito de porco. Quantas pessoas atiram coisas pela janela? Quantas pessoas seguram o “lixo” para enfim jogá-lo em lugar apropriado? Jovens bebem nas calçadas do posto e deixam as garrafas no meio fio, pessoas sentam no lugar dos idosos e quando eles chegam, fingem que dormem. Quantas pessoas se recusam a levar uma vida saudável em nome do prazer do vício? São tantas coisas a se pensar, e nisso, nos meus pensamentos diante daquela flor do asfalto, uma senhora me entrega um panfleto sobre o grupo de oração da vinda do Papa. Dei uma olhada, quase indiferente, mas ela tinha um olhar bondoso. Não vou discutir com uma senhora crédula que a vinda do Papa só vai beneficiar uma minoria. Recebi um texto nesta semana dizendo que “reza a lenda” nos trará sim benefícios, que os gastos pagos com dinheiro dos cofres públicos serão retornados em forma de benefícios públicos. Isso me faz lembrar a JMJ que ocorreu em Madrid, em 2011. Hoje a Espanha está em crise. Devolvi um sorriso pra ela. “Você vai participar”, “Não senhora, tenho compromisso neste dia”. Já me disseram um dia: “Verdades doem, mentiras são agradáveis”. Olhei a flor ali no chão. Pensei em ir à banca comprar jornal e tomar um café com leite na esquina. A flor ainda continuou ali, alheia, pedindo um pouco de atenção.

Emoções rasgadas.

Depois de uma noite de insônia, poucas horas de sono, e aquela sensação de resfriado chato querendo derrubar, acordei quase rouca, com voz estranha, que sumia em poucas palavras. Quase desmarquei a entrevista, mas não desisti: salto alto, camisa, meia fina e saia executiva. Sapato fino, de tom bordô em couro aveludado, cujo salto enganchava nas malditas calçadas de pedras soltas. E eu penso… Por quê dificultamos tanto? Tudo poderia ser mais simples. Eu me irritei com minha meia-calça. Passei em uma loja no meio do caminho, comprei outra, entrei no banheiro do estabelecimento e troquei minha neura por outra neura… Fiquei com medo de rasgar a meia de fio 15 em lycra, fato que realmente aconteceu, mas foi no portão de casa, quando a coroa do abacaxi que eu comprei encostou-se a minha meia. Quando fui trocar as sacolas de braço, escutei o barulho desesperador de fios rasgando. Olhei, dei risada. Pedreiros na espreita… Um naco de minha coxa branquela debaixo do rasgo seria normal e mais divertido se fosse à hora de um bom sexo, aquela coisa de desespero. Melhor uma meia rasgada em cima da cama pelas mãos de um homem do que pela coroa de abacaxi pérola comprado na promoção que estava azedo. Nada que um açúcar resolva. Devorei três fatias com requintes de crueldade e sadismo, sentada em minha cama, marcando trechos de “Cartas de um Escritor Solitário”, de Sam Savage. Joguei fora a meia, fiquei em mangas de camisa e adormeci. Não passei na entrevista, recebi um e-mail frustrante, mas sou forte, paciência! Terei outros momentos para rasgar meias por aí e dar risada de meu próprio medo. Pelo menos tenho algo divertido com tons de tragicomédia para contar. Adormeci esparramada na cama e sonhei com teus braços com veias e tendões aparentes de tua pele branca e combinando com meus tons embaixo de minha meia rasgada…

Olimpo.

Estava sonhando. Padeceu em castelos de cristal, construídos por Deuses pagãos do Olimpo. Acendeu velas ao entardecer, ajoelhou-se perante seus medos, lapidados em pérolas de ostras do inferno de Hades. Apaixonou-se pelo cão de duas cabeças, tinha o olhar desconcertante de um brilho que nem todas as plêiades juntas são capazes de seduzir. Ela era como, no céu de Aqueronte, a mulher dos olhos de caleidoscópio.

Acordou encharcada de suor. Abriu as janelas e deixou-se levar pela friagem da madrugada. Seu velho e bom homem dormia ao seu lado como um anjo intocável. Deixou-o lá, com seus sonhos de menino. Pegou as chaves de casa, saiu para caminhar nas calçadas de pedras soltas do bairro do subúrbio. Em volta dos postes, as sombras voavam. Pontos negros de mariposas, rodopiando embriagadas em volta das luzes amareladas que tanto seduziram. Era o céu de Vênus, criado na natureza da imaginação dos que criaram a mitologia divina, de Deuses, raios e trovões. Similitudes, cantando, dançando. A pele dourava-se de Vênus, o coração batia cores, tingidos de paixão nunca atingida, incólume contra o tempo, que não tem hora para chegar. Não existem idas e nem vindas, apenas a imortalidade, bruxas voando em feitiços de bom menino. Atirou-se, de corpo e alma nas estrelas que iluminavam as pedras brancas no meio do caminho.

Crônicas de Buteco Apresenta: Just Like Heaven

Este é o meu novo projeto em meu novo site!  

Depois de varar a madrugada, meu novo projeto está pronto!!Apresento a vocês, o blog “Crônicas de Buteco: Na mesa de bar, centenas de histórias para contar”.

O projeto é o seguinte: Todo mundo tem histórias, “causos” de buteco, sarjeta, festa. E a intenção do site é contar exatamente isso, crônicas de bar!Através do e-mail cronicasdebuteco@gmail.com, vocês e seus amiguinhos podem contar suas histórias, que podem virar crônicas engraçadas e divertidas. Todo mundo tem aquela história cabeluda, aquelo B.O, ou aquele amiguinho querido que só dá trabalho!Então, mande os causos!Os nomes serão preservados, se assim desejarem!

Apreciem sem moderação, e se for dirigir, chame um taxi ou durma na sarjeta até o dia seguinte!

Crônicas de Buteco Apresenta: Just Like Heaven.

Crônicas do Pub: Dicas de sexo da Escritora Fracassada.

No meio de rostos embriagados, canecas vazias, música deprê de um cantor noir fracassado drogado e bêbado ou apenas drogado, ou apenas bêbado, ou ele era daquele jeito mesmo, vai saber… Em suma,  decadente, tal como ela, “A Escritora Fracassada” com olheiras profundas e bafo de blend. Passou o dia sem seu English Breakfast, e se você leitor não sabe o que é English Breakfast, ou acha que é aqueles chás gostosos importados, aí meu caro, você se engana.

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Na minha cabeça, isso que era English Breakfast. Esses chás caros e gostosos da Twinings…
Delicious! Feijão enlatado esquentado ou requentado, ovinho frito, "sausage", black pudding (morcela,conhecido também por chouriço, linguiça recheada com sangue suíno temperado), chutney de tomate. Eles "chucham" o pão no feijão com molho e comem. Acompanha chá com leite. Raspberry no ônibus e no trabalho. Normal!
English Breakfast: Delicious! Feijão enlatado esquentado ou requentado, ovinho frito, “sausage”, black pudding (morcela,conhecido também por chouriço, linguiça recheada com sangue suíno temperado), chutney de tomate. Eles “chucham” o pão no feijão com molho e comem. Acompanha chá com leite. Raspberry no ônibus e no trabalho. Normal!

Enfim, nossa personagem, a “Escritora Fracassada”, ficou com seu café da manhã incompleto. O feijão enlatado já aberto, estava estragado na geladeira e talvez seja por isso que a frase “I can smell a raspbery!”, quando ela abria a geladeira era tão repetida pelas festas de final de semana, regadas a cervejas, whisky e cigarros. O pão que ia sempre à fatídica torradeira estava colonizado por simpáticos fungos verdes que diziam “Hello your bastard!”, se ao menos fossem fungos alucinógenos, poderia render um chá de pão. Fazem isso com os cogumelos colhidos na região de Glastonbury, onde seu tio tinha um pequeno sítio. Mas tinha chá inglês, porém o leite estava talhado e o limão acabou.  Naquele dia, no seu café da manhã, ficou apenas com salsichas enlatadas fritas em gordura, ovos fritos na gordura da salsicha enlatada e purê de batatas com molho de sobra de carne com cebolas. Sentiu falta do feijão, molho sauce e pão. Estava cansada, cinzenta e então começou a beber naquele dia bem cedo. O pub abriu pontualmente às oito horas e quarenta e cinco segundos da manhã em Soho, a pontualidade britânica tão irritante. Um dia, marcou um encontro com um brasileiro às sete e quinze da noite em frente da universidade Oxford. Ele atrasou-se dez minutos e ela achou isso uma afronta. Deixou-o lá perdido e sem entender porra nenhuma. Sentou no balcão jogou uma nota de vinte euros no balcão e pediu um canecão de stout e um pedaço de torta :

“Pie and pint please”

“Lager, ale or stout?”

“Stout”

pie and pint stout
Stout: cerveja preta de origem irlandesa ( apesar disso, muitas são fabricadas na própria Inglaterra, inclusive, alguns pubs tem fabricação própria de cerveja) 😀 Na foto, creio que seja uma ale. A stout é bem preta, pois tem maior teor de leveduras. Também tem maior teor alcoólico.
Essa é uma torta de carne com rins bovinos. Pode ser servida apenas com a parte de cima da torta, como podem ver na imagem. A cerveja Larger é mais clara e mais suave. Servida gelada, ao contrário da Stout, que pode ser pedida em duas temperaturas: natural, ou seja, quente, ou gelada.
Essa é uma torta de carne com rins bovinos, conhecida por lá como ” steak and kidney pie”. Pode ser servida apenas com a parte de cima da torta, como na imagem. A cerveja Lager é mais clara e mais suave. Servida gelada, ao contrário da Stout, que pode ser pedida em duas temperaturas: natural, ou seja, quente, ou gelada.

Leu os jornais diários cheios de notícias patéticas. Cansou-se, foi para casa no leste de Londres, Shoreditch, esboçou sua coluna da semana para uma revista semanal de mulherzinha que lhe rendia seus trocados de bar, além do seu trabalho de escritora de obituários no pior jornal londrino, que as velhinhas adoravam ler no chá da tarde. Sua casa em Shoreditch  era uma autêntica casa “Ctrl C  + Ctrl V”, herança de sua mãe. Shoreditch não era um bairro nobre, mas tinha a boemia e o caos que precisava. Não conseguia enxergar-se morando em bairros politicamente corretos como Hampstead Heath ou Notthing Hill. Talvez, quando envelhecesse, optaria em morar num cottage na área rural.

Casinhas Ctrl C + Ctrl V
Terraced House: Casinhas Ctrl C + Ctrl V
Cottage House: típicas casas de campo, encontradas nas áreas rurais ou pacatas da Inglaterra.
Cottage House: típicas casas de campo, encontradas nas áreas rurais ou pacatas da Inglaterra.

Ela era uma atriz cujo papel era “dar uma de colunista cool entendida de moda”, e achava aquilo um saco. Mas era sua fonte de renda até uma revista decente reconhecer seu talento, ou até a falta dele para ganhar um pouco mais. Existem pessoas que escrevem bem ganhando uma miséria e escritos ridículos que ganham rios de dinheiros escrevendo “coisas sérias”. Ela queria ser da “panelinha”, mas ela não tem saco pra ficar puxando saco, entende? Com o tempo ela vai levando os louros miúdos da fama. As mulherzinhas gostam do papo infame de qual guarda chuva combina com seus eternos casacos pretos de inverno e sapatos impermeáveis ou aquelas dicas de sexo ridículas que ela escreve bêbada altas horas da madrugada, sentada no sofá.

Tempos atrás, uma leitora escreveu para a coluna do leitor, que o marido adorou a ideia do sexo “Bangers and Mash”.

Bangers and Mash: Uma imagem vale mais do que mil palavras.
Bangers and Mash: Uma imagem vale mais do que mil palavras.

Dicas de como fazer um “Bangers a Mash” com seu pobre coitado lindo english lord:

  1. Não coloque o purê quente no sausage dele, coloque levemente morno, tendendo ao frio;
  2. Cuidado com os dentes;
  3. Não coloque molho gravy de cebolas no purê pois dá bafo e ele não vai querer beijar você depois;
  4. Ao final do sexo, peça pizza e cerveja Guinness.
A "Escritora Fracassada" escrevia dicas ridículas de sexo para um versão "Nova" inglesa... Sarcasm? Ironia...Ironia...
A “Escritora Fracassada” escrevia dicas ridículas de sexo para mulherzinhas alienadas para uma versão semanal “Nova” inglesa… Sarcasm? Ironia…Ironia…

A única coisa real que ela escreveu para ser levada a sério, era a regra dois, e a pizza com cerveja pós-sexo. Ela esperava ser demitida, mas pelo jeito isso rendeu até um aperto de mãos da chefe perua de voz estridente e sotaque de Manchester e um “Congratulations” . Quando ela escrevia coisas sérias, ela nunca recebia um parabéns. A vida é assim, damos mais valor ao ridículo. Mas enfim, rende boas piadas de pub regadas a pie and pint com os amigos. Mal esperavam a sessão de cartas da edição posterior e a caixa de e-mail lotada da “Escritora Fracassada” para darem altas risadas dos agradecimentos de dicas de sexo e moda. Ela queria, por vezes, morrer, mas se divertia e ainda por cima ganhava uns trocados para curtir a vida nos pubs de Soho e Shoreditch.

Banger and Mash with three sausages na busca do site "Revista Nova Edição Inglesa" retorna: "Do you meaning: Gang Bang."
Banger and Mash with three sausages na busca do site “Revista Nova Edição Inglesa” retorna: “Do you meaning: Gang Bang.”

Crônicas Completas: Russel e as pradarias.

Capítulo I: Pradarias

Russel está cantando nas pradarias, quando o inverno russo se aproxima, ele faz seu trompete chorar, enquanto sua mãe chora pela matrioska quebrada. A mãe amada de Russel, espatifada no chão em convulsão.
Ele está indo para Budapeste, mas também gostaria de ir para Bellerophon, mas a Grécia está muito longe, são milhas e milhas de distância dos gelados ventos do leste europeu, ventos que o fazem se encharcar na melancolia transparente da vodka. Vãs memórias inundam seu peito, sua mãe entregando-lhe uma rosa, já com o estômago cheio de remédios escolhidos aleatoriamente, engolido com uma garrafa de vodka, cujo resto deslizou até embaixo da mesa, onde via os pés e pernas de sua amável mãe em um terremoto insano. Antes de dizer “Adeus”, sua amada mãe disse: “Apenas diga ao teu pai, que eu o amei muito”.
Sua irmã, Elissa, dormia, e quando Russel tocava seu trompete, Elissa chorava, berrava, e a mãe de Russel a acalmava com seu retorno doce de mãe. E Russel se cansava, pegava seu trompete e se colocava a tocar nas pradarias tristes. Visitava seu pai nas minas, homem forte, porém pré-envelhecido. A sujeira do carvão dava-lhe traços rudes, primitivos.
No frio daquele leste europeu, todas as matrioskas eram incompletas, Russel andava em círculos, nas pradarias contínuas do seu ego e força de viver, mesmo sabendo que nada cresceria ali, nas pradarias inférteis pelo frio. Nas pradarias que ele tanto amava, não existe nada, apenas sua mãe cansada num túmulo triste com apenas uma cruz de madeira, e lobos uivando na noite. Até mesmo, quando viva, a mãe de Russel estava sempre cansada, mesmo nas passeatas onde Russel tocava seu trompete e as baionetas furavam sorrisos descontentes. Matrioskas caiam no chão durante a fúria perante a morte da matriarca, que dizia que se a Felicidade tivesse uma cor, ela seria vermelha. E ela o abraçava, antes de dormir, e quando seu pai chegava, ela chupava os dedos de carvão dele. Pra ela, sua amada mãe, aquilo era um momento de carinho, não importava a sujeira interna e externa de seu pai, que transava com as operárias sujas e suadas nas galerias escuras.
Dentro das casas as matrioskas quebram a mãe de Russel o amava, numa tristeza incontida das baionetas que cantavam lá fora. Por isso, Russel sai correndo em direção às pradarias. Queria ele ir para Budapeste, pois dizem que lá, todas as emoções são ditosas e incontidas. Levaria seu trompete, e o estalar de seus dedos magros e sofridos, percorrem a pradaria do Leste Europeu. Russel amava aquele lugar, assim como o vento amava a face do seu pai, enegrecido pelo carvão, e os cabelos longos e loiros de sua mãe.

Capítulo II: Matrioska e o delírio das pradarias.

A mãe de Russel queria passear nas pradarias geladas. Ela mal conseguia ficar de pé, mas em seu sonho de mulher prestes a morrer, ela se via com os cabelos loiros de saudade balançando no vento gelado. E ela, em seus sonhos ainda lúcidos, balbuciava ao filho que o pai estava chegando enegrecido pelo carvão, surgindo no horizonte, como um soldado voltando da guerra, carregando uma baioneta com a ponta cheia de sangue seco. Era a glória, manchada, tingida de sangue oxidado, coagulado, a beleza da violência fazendo sua mãe sentir desejo reprimido, a crueldade estampada em desejo, imaginava seu velho homem tingindo-se com o sangue do inimigo, via as veias e tendões dos braços, transcenderem em trilhas do desejo, enquanto carregava os corpos para serem jogados em valas fétidas. Depois, sonhava com os olhos dele, azuis quase cinzas de dilúvio… Via as chamas que queimavam os cadáveres dançando nos olhos quase cristalinos, e o fogo e esforço fazendo-o suar, mas ele era apenas um trabalhador das minas de carvão, e ela sabia que estava morrendo, nas pradarias do Leste Europeu. “Russel meu filho, apague a luz, e diga ao teu pai que eu o amo.” Russel apagou a luz, secou as lágrimas, pegou nas mãos de sua irmã, e foram brincar nas pradarias tristes.  A matrioska continua incompleta, a saudade fragmentada em mil pedaços.

Capítulo III: O sorriso de Elissa.

Elissa quer correr pelos prados, ela queria sorrir também, mas é uma criança com um sorriso fraturado pelas passeatas onde as famílias carregam seus entes mortos pela guerra, furados por baionetas que cantam uma canção triste de que a ideologia deve ser engolida às forças, com todo o sangue amargo. “Papai vai chegar Russel!”, gritava Elissa correndo em círculos, o olhar triste da mãe perdido no horizonte, enquanto ela penteava os cabelos na janela. Russel tocando seu trompete, intercalando com goles de vodka. Se ele soubesse escrever, seria um poeta bêbado. A mãe gritava da janela que precisaria de panos úmidos, ela sempre falava isso, pois queria limpar o rosto manchado de carvão quando o pai de Russel chegasse, mas ele nunca chegou. Sua mãe sempre dizia que seu pai tinha uma beleza imunda, e a única coisa limpa nele eram os olhos azuis de dilúvio, de uma beleza cristalina quase cinzenta, contraposta a sua beleza enegrecida. Os trabalhos nas minas de carvão deixavam seu pai imundo… Era a fuligem do carvão que o fazia bater na mãe. Quando ele retornava ao trabalho, a mãe sempre gritava que o amava na soleira da porta. Via seu velho homem indo embora, depois dele dar-lhe um beijo e dizer que também a amava. Sempre pedia perdão pelos braços roxos dela, a culpa era sempre da vodka.

“Russel, um dia terá a pele tão áspera quanto a de teu pai, será um herói nas terras sofridas e gélidas, o carvão não nos mata, apenas nos deixa imundos…”

Russel sabia da tosse negra do pai, Elissa quando viu seu pai manchar um velho lenço de escarro negro, por mais que fosse uma criança, sabia que algo muito errado existia ali, mas sua mãe queria o tempo todo se enganar que aquilo era normal. Por isso Russel estava sempre com Elissa, brincando de correr um atrás do outro na pradaria deserta, próximo ao velho casebre de madeira que viviam. Quando Elissa estava com ele, ela sempre o contemplava com um riso de criança, e quando ela chora de saudades do pai, ela corre para os braços roxos da mãe. Russel pega sua garrafa de vodka e caminha sem rumo com seu trompete pelas pradarias gélidas. Notas tristes ecoam, um falcão da pradaria apenas o observa ao longe.

Capítulo IV: Canção Cigana.

A mãe de Russel canta versos ciganos, enquanto Russel brinca com Elissa erguendo ela para o alto. A sobriedade abandonada depois de uma garrafa de vodka o faz querer voar e fazerem os outros voarem. Gostaria de voar por cima dos campos de trigo, e quando se aproximasse dos campos de guerra, carregaria a alma dos soldados mortos junto a Deus. Queria Russel ser um mensageiro, um mensageiro de almas, pegar as almas que rondam próximas as valas lotadas de corpos, já indistintos um dos outros. Existiam ali talvez, civis, soldados… Crianças. Um dia, andando pelas pradarias, encontrou uma família abrindo uma cova para enterrar a filha. A mãe com o lenço envolto na cabeça, com a face molhada pelas lágrimas causadas pelo terrível Ceifeiro. O pai abria a cova, enquanto o irmão mais velho segurava um corpinho frágil envolto por um velho pano branco. Russel viu que uma mecha de cabelo loiro escapava do lençol. Poderia ser sua irmãzinha ali, mas quem cavaria a cova? Ele… Seu pai não existia mais, e quando aparecia era apenas um vulto etílico que estuprava a mãe. Mas sabia ele, que ela gostava daquele “jogo”, preferia pensar que aquilo era um jogo, uma brincadeira de mal gosto de adultos. Gostaria que a guerra estivesse por perto, pois as canções dos tiros das baionetas ao longe, abafariam os gritos hipócritas da mãe.

Olhou para mãe, ela ainda cantava silenciosamente versos ciganos, e eles corriam como uma lebre. Russel sabia, que toda vez que a mãe entoava aquela canção, era porque a saudade queria gritar. E ela gritava, em forma de canção cigana.

Capítulo V: Saudade e Vodka

O pai voltando das minas, Russel jamais espera isso. Ele foi uma alma que partiu, um pobre homem soterrado pelas convicções sujas e negras, ou uma explosão do gás metano, explosão de arrependimento talvez, por ter abandonado os filhos com uma mulher miserável e já doente. Ele se foi, deu um sorriso de canto de boca e um beijo longo em Elissa e Russel. Olhou calmamente para a mãe de Russel, que trançava os cabelos em frente ao espelho, longos cabelos loiros, como os trigais avulsos das pradarias tristes do leste europeu, beijou-a como se fosse a última vez, e num afago nos cabelos, disse apenas que a amava.
O pai de Russel tinha lindos olhos azuis e um silêncio que matava, e por vezes, quando voltava bêbado das minas, mãos que estrangulavam. Mas todas as manhãs, quando Russel acordava e olhava em direção à cama dos pais, via os dois abraçados como se nada tivesse acontecido. E os lençóis ao chão, com manchas negras de carvão. Esta foi última vez que viu o pai junto à mãe, e crê que apesar de tudo, sentia saudades de seu velho, dos momentos em que eles caminhavam pelas estepes a caçar coelhos, tiros de baioneta embalados a goles de vodka. “Cuide delas”, foram últimas palavras de seu pai, e assim, ele sumiu, caminhando nas pradarias, com os olhos azuis baixos de tormenta.

Capítulo VI: O lobo das estepes.

Russel em seu pesadelo corre, e sua mãe afunda na lama, gritando para ele pegar os casacos, as botas e não esquecer-se de esquentar-se junto à fogueira, pois as pradarias e estepes são frias e perigosas. Ele corre, e em sua mente a voz da mãe ecoa como um grito nas montanhas solitárias, “Corra meu filhinho, o inverno chegou e ele dói, suas narinas se abrem, no âmago da sua respiração de fugitivo, e eu sei que você sente o lobo te espreitando na escuridão…”. E ele realmente sabe, tal como sua mãe.

Sabe o quanto o uivo do lobo curioso tem um cheiro agradável, que no fechar dos olhos ao dormir, o Lobo das Estepes o persegue, assim como as digitais dos sujos dedos de carvão de seu velho e desaparecido pai, estampadas no último copo de vodka que ele deixou em cima da mesa antes de partir pra sempre. A sombra do Lobo que o atormenta, responsável pelo ato dele encolher o corpo enquanto dorme, mas deixa em seu rosto um sorriso triste, desesperado, mas com tom de sadismo consumado.

Em seu pesadelo ele vai para os prados e estepes com sua baioneta para caçar coelhos, ele sempre encontra o tal do lobo, mas ele sabe que nunca conseguirá matá-lo. Quando o uivo aproxima-se ele fecha os olhos e tampa os ouvidos, porque a Beleza do Lobo certamente irá cegá-lo e o uivo enlouquecedor, o deixará surdo. A mãe dele, suja de lama, balbucia, “Reze meu filho… Reze”, mas enquanto o lobo rasteja sobre o corpo dele, arranhando-lhe as costas, ele não sente dor. Na cena onírica do lobo em cima dele o lambendo e encarando, um medo com desejo sutil, e sabe ele, que por mais que ele feche os olhos enquanto o desejo permeia em seu sexo, não poderá deixar-se cair em tentação, mas sempre se esquece de rezar. A mordida do lobo na linha tênue do pescoço já se tornou um vício, uma ferida que ele tenta cicatrizar jogando vodka, ferida que arde como paixão dançando nas chamas das fogueiras dos soldados russos em campanha. Será ele hipócrita, ao sentir dor e prazer? Não sabe ele dizer… Ao acordar, assustado, manda três copos de vodka goela abaixo, enquanto as matrioskas da pequena mesa o encaram, cada uma com um julgamento de tamanho diferente, mas não importa, sabe e esconde por baixo de sua matriz de arrependimento, que quando o lobo das estepes se aproxima, as estrelas surgem no seu céu particular, e ele corre… Do uivo que ensurdece e beleza que mata. Na sua baioneta nunca tem bala de prata… E jamais terá…

Capítulo VII: Na beira do rio Neva.

 Russel estava tocando uma canção na beira do Rio Neva. Estava ele e Elissa no enterro da mãe. Uma cruz de madeira no chão, algumas flores. Fizeram uma viagem na velha carroça do tio Vlad. Russel sabia que sua mãe pediria uma canção triste e também sabia que queria ser enterrada com sua matrioska. Ela não admitia, mas sua mãe era refém da tristeza, e de alguma forma ela aprendeu a lidar com aquilo, inclusive amá-la. Entoou uma canção cigana, a favorita de sua mãe, e enquanto cantava, veio a lembrança de sua mãe entoando canções ciganas apoiada na janela de sua velha e deteriorada morada na pradaria. Ela sempre começava a cantar com os olhos perdidos no horizonte, e terminava sempre com os olhos fechados e o rosto molhado em lágrimas. Depois que cantava, ela enchia a cara de vodka, e ficava a amaldiçoar os olhos claros e rosto enegrecido de carvão do marido. Russel segurava as mãos magras e trêmulas da mãe. Sua mãe dizia que a única coisa que tinha era um gosto amargo na boca. De fato tinha, era sangue, a doença já estava instalada e a Morte estava chegando a galope. Quando ela deu o último suspiro na cama, Russel sentiu um vento gelado, e não era das pradarias. Foi seu primeiro encontro frente à face fria e invisível daquela que ninguém consegue fugir.

Dias antes, como se ela soubesse do que a esperava, chamou Russel para a beira da cama. Ele estava com um prato de sopa rala de batatas, única coisa que tinha naquela pobre casa, e dava para a mãe comer, as mãos dela não conseguiam mais segurar uma colher. “Russel meu filho, estou encomendada aos anjos. Cuide bem da sua irmã, não me culpe, daqui a pouco seu pai chega, segure as mãos dele sujas de carvão, e vá passear com ele nos Montes Urais. As colinas de Valdai também são bonitas, nos casamos lá. Meu sonho era pegar um trem e partir para São Petersburgo, ver as passeatas de Rjev…”.

Russel deu um sorriso, na última pá de terra da beira do Neva que cobriu o corpo da mãe envolto em um velho lençol de manchas negras que ela se recusava a lavar. De alguma forma, havia ali um pedaço de seu pai, mesmo que seja apenas pó negro de hulha. Lembrou-se do semblante triste da matrioska que ficava ao lado da cama. Um dia, seu pai o levou para as margens do rio Volga. Passaram a noite lá, encobertos pelo frio, aquecidos pela vodka. A baioneta do pai descansava ao seu lado, e dois coelhos assavam na fogueira. Foi ali naquele local, que seu pai disse uma frase ao qual ele nunca esqueceu:

Quando não há mais para onde correr, siga apenas a direção do rio…

Após os últimos ritos do enterro, Russel segurou as mãos da pequena Elissa. Foram passear na beira do rio Neva. Provavelmente Elissa vai morar com o tio Vlad, e então Russel vai desaparecer com seu trompete, cujo som será levado sem rumo pelo vento gelado do leste europeu.

Capítulo VIII: до свидания (Adeus)

Elissa ficou na guarda de seu tio Vlad. Partiram para Praga, onde poderá ter uma vida melhor. Russel resolveu ficar, renunciou todo conforto, quis seguir suas raízes, tão fincadas nas pradarias frias. Carregaria sempre consigo a velha baioneta do pai, será um nômade, trocando seu trompete noite adentro. Sonhará com um lobo salivante mordendo o pescoço, acordará e tomará o primeiro gole de vodka, que descerá inquietante garganta adentro. Talvez aceite algum trabalho temporário nas minas de carvão que encontrar pelo caminho.  Conhecerá o amor de várias mulheres, algumas delas dar-lhe-ão um abrigo temporário. Depois ele irá embora, sem se despedir, deixando uma mancha de carvão nos pobres lençóis das matrioskas, que se abriram ao seu toque de homem em arquejos de desejo, que as encheu de calor nas madrugadas frias. Amará cada uma delas, mas as quebrará em milhares de pedaços. Um dia ele vai se apaixonar, mas ele crê que terá que renunciar a dor. A mãe sofreu demais, passando anos e anos esperando seu pai surgir no horizonte. Quando aparecia, deixava nela marcas de embriaguez, e um amor que nem anjos e demônios são capazes de compreender. Ela amava  o marido e sonhava com sua vinda triunfante, como um soldado que venceu a guerra. O tempo passou, sua mãe morreu e foi enterrada na beira do rio Neva envolta de lençóis usados e sujos de hulha.

Viu Elissa partindo numa velha carroça com uma mala, partiria depois em um monstro de ferro que a levaria para Praga. Nunca se esquecerá dela, olhando para trás, com os olhos cinzentos em lágrimas e parte do seu cabelo loiro saindo do lenço, que tremulava ao vento. Era mais um dia frio nas pradarias, mas desta vez era um dia bem mais triste, carregado de adeus, e uma saudade eterna, que gritaria para sempre sua dor por todo Leste Europeu.

Russel seguirá então os conselhos do pai, pois não há mais nada que ele possa fazer. Apenas seguir em direção ao rio, e tudo o que ele mais queria, era poder ver o tempo cumprir seu dever, o fogo em linha horizontal, sem rumo, queimando lembranças tristes. Num saco velho, colocou suas coisas, ele nunca teve muito, a pobreza nunca o permitiu nada mais que roupas deterioradas, uma caneca velha, o trompete  e a baioneta do pai… Um velho caderno preto com partituras. Bastava cortar algumas lenhas para comprar garrafas de vodka. Tinha os velhos cobertores e lençóis gastos da mãe. Apenas isso bastava. Colocou fogo no velho casebre de madeira. Todo o cheiro ocre de lembranças despedaçadas e transformadas em cinzas. Foi embora, sem olhar para trás. Uma nuvem negra subia para o céu, avisando a todos que ali não tinha mais nada a se fazer, nada a se guardar, todas as matrioskas eram cacos, e não havia tempo para vitrais. A velha porcelana russa perdeu todo o seu valor.

E a voz de seu pai, e a lembrança dos olhos azuis, envolto de rugas de expressão e um cansaço tão triste que chegava a ser belo, foram com ele, na sua busca por acalento onde as baionetas cantavam canções de sorrisos e amores estilhaçados:

“Dê-me sua mão, vamos cantar na beira do Volga, vou te contar um segredo meu filho:
Quando não há mais para onde correr, siga apenas a direção do rio…”

Ele percorreu milhas e milhas, até chegar à beira do rio Volga. E Russel desapareceu, sem deixar rastros, nem folhas de seu velho caderno preto, restou apenas esperança, e a lembrança daqueles que ouviram seu trompete de notas incólumes às tragédias. Ficou a lembrança de seu calor nos dias das mulheres que ele amou. E todas elas, tal como sua mãe, aguardam até hoje, ele surgir no horizonte. Russel desapareceu, mas sua marca permaneceu, e os ventos gelados do Leste Europeu nunca mais foram os mesmos.

“ …entregava-se àquele alheamento profundo, uma espécie de torpor, continuando o caminho sem dar a mínima importância às coisas circunstantes, sem querer reparar no que o cercava. De quando em vez, entretanto, resmungava palavras indistintas, em virtude do hábito de monologar, de que, ainda havia pouco, se confessava atacado. Percebia que, às vezes, as ideias se lhe embaralhavam no cérebro e adquiria consciência de sua extrema fraqueza”. (Fiodor Dostoiesvski)

A bolacha.

Tomavam café no bistrô do pequeno distrito de uma cidade grande. Ela pediu um café duplo com chantilly e pegou três sachês de açúcar. Ela era assim, exagerada, tal como a música do Cazuza. Ele, mais contido, em questões de cafeína, ficou no expresso pequeno e numa garrafa de água com gás…Ela…na garrafa de água sem gás. Ele terminou o café primeiro, ela, aturdida, impressionada, escutando o que ele tinha a dizer, tomava seu café duplo em goles calmos de prazer. No meio da discussão sobre a “Ilha do Medo”, viu que ele “esqueceu” a bolacha servida como aperitivo. Estava a bolacha lá, descansando calmamente no pires do café. “Posso pegar sua bolacha?”, disse ela, educada. Ela poderia chegar invadindo, sem pedir permissão, na surdina, como um vento de tempestade imprevista ao final da tarde, aquele vento desgraçado que chega bagunçando os papéis em cima da mesa, mas não…No palco da vida muitas cortinas se fecham, por vezes na nossa cara, uma bofetada, um espetáculo mal sucedido, sem espectadores, sem palmas, sem assobios, enfim, sem nada!

Ela era uma janela sem persiana, não importava as condições do Tempo, ali dentro daquele pedaço de gente encantada com a boca suja de chantilly e mastigando uma bolacha educadamente roubada, passa vento, garoa fina, sol escaldante das duas horas da tarde, entram folhas não convidadas, folhazinhas invasoras do outono assim, cheio de emoções…”Posso pegar sua bolacha?”, “Pode, claro!”, disse ele, quase que apenas com os olhos. Ela comeu a bolacha, e depois lambeu o chantilly que estava no canto da boca. Ela era uma criança, em corpo de mulher.

"Todo dia ela dizQue é pr'eu me cuidarEssas coisas que dizToda mulherDiz que está me esperandoPr'o jantarE me beija com a bocaDe café..."
“Todo dia ela diz
Que é pr’eu me cuidar
Essas coisas que diz
Toda mulher
Diz que está me esperando
Pr’o jantar
E me beija com a boca
De café…”

Por quem os sonhos dobram.

Começarei com duas citações, que só serão entendidas ao final do texto:

Escreve, se puderes, coisas que sejam tão improváveis como um sonho, tão absurdas como a lua-de-mel de um gafanhoto e tão verdadeiras como o simples coração de uma criança. Ernest Hemingway

Um bom romance é qualquer romance que nos faça sentir. Ele deve enfiar sua lâmina por entre as dobras do couro com o qual a maioria de nós cobre.  A sensação que nos causa não deve ser puramente dramática, e pronta, pois, a desaparecer assim que ficamos sabendo como a história acaba. Deve ser uma sensação duradoura, sobre questões que são, de uma forma ou de outra, importantes para nós. Virginia Woolf.

Ela dormia, numa noite quente de outono. Deveria estar frio, pensou ela, enquanto se arranjava para dormir, madrugada adentro. Na sua mente de escritora amadora, as madrugadas foram feitas para escrever, elas têm o dom da criação, o poder de imortalizar qualquer forma de arte, desde as mais abstratas, produzidas por loucos envoltos nos absurdos de  suas camisas de força ou perdidos em bairros boêmios  olhos abertos na noite, consciência etílica, porém tão racional, incompreendida por muitos, ignorada ou até mesmo o orgulho. Sim o orgulho, ou olhos desacostumados…Olhos desacostumados, seria medo, passos de menino desajeitado, ocupado, cansado, nos dias de ir e vir, a falta de sorte ou o excesso dela, quem sabe? Estava ela ali, perdendo a insônia, aos poucos, querendo fechar os olhos. Nas suas férias, ela queria apenas escrever, colocar as entranhas pra fora, ganhar algo por isso. Concursos literários estão por vir, queria ela um pouco de sorte, um beijo na cara que ela dá a bater. Mulher corajosa, sem medo, sem vergonha, talvez quase sem limites. A intensidade da alma lhe dói, sentir machuca. O mundo é menos cruel com os insensíveis, aqueles que fazem das pessoas uma marionete numa peça de teatro amador, de quinta categoria. Não era uma atriz, e se fosse, seria uma em teatro shakespeariano, de Amor e tragédia, aos olhos emocionados daqueles que a leem, um olhar perdido daquele que ela ama ou seria um Amor dissimulado, um eco, servido ao molho pardo e alcaparras. Não podemos engolir o eco, engolimos o ego, à seco, mas ecos não, apenas gritamos, e eles respondem do outro lado, tortos e dissimulados, e outras vezes, gritamos e nem o eco responde. O eco também aprecia o silêncio, e ela, não sabe lidar com ele, o Silêncio, mas tenta, caindo feito bêbada, mas sóbria, na sarjeta dos seus sentimentos. Mas ela não desiste, segue mar adentro, com suas folhas escritas, ego emudecido, marolas de razão e sensatez, mas com a sede de viver sem perder os segundos. Enfim, dormiu, e quando fechou os olhos que já o olharam sem medo, mas com um pingo de timidez dissimulada, mãos trêmulas, lábios úmidos…Fechou os olhos e sonhou…

Estava ela na sua velha casa em que morou na infância. Estava apoiada no muro, observando o movimento noturno. Ela estava em um lugar de seu passado, e as crianças que ela via brincando na rua, eram as mesmas crianças que ela brincava na rua sem saída, com seus 8 anos. Ali naquele muro branco, com pintura descascando, algumas rachaduras na parede, calçada com pedras soltas, ela observava, calada.  Saiu de lá, queria caminhar na rua, a lua estava soberba e inspiradora. Saiu pela porta da frente, a que dava pelo jardim, flores mortas, outras vivas, cheiro de terra molhada, mesmo sem chuva. Sonhos nos proporcionam momentos sem sentido, e na cabeça dela, a terra não poderia ter aquele cheiro, a não ser que tenha chovido ou alguém tenha molhado ela.  A terra estava seca, como se há dias ninguém cuidasse de seu jardim. Teve ela uma infância triste, mas com momentos alegres, momentos em que brincava num balanço velho de praça, com o sorriso banguela, corpo franzino. Aquele que a tira da toca, conserva suas fotos de infância. Queria ela, numa tarde de final de semana, não onírica, numa realidade próxima, uma tarde tranquila num dia ensolarado, sentar ao lado dele e lhe contar cada detalhe daquelas fotos, datadas de dezessete anos atrás. Falaria ele sobre as formigas, seu senso de organização, vida em grupo? Eis aí seres em cooperação, nenhum ser em vida é uma ilha, por mais que queremos às vezes nos esconder em nossas cavernas, viver como eremitas, num buraco solitário improvável onde reina uma única formiga, distantes, de tudo aquilo que nós possa machucar ou enganar nossas convicções, dizer à nossa vida que aquilo que nos motiva, que nos dá disposição para seguir em frente, não passa de uma ilusão dos homens, ou sonhos de madrugada quente de outono.

Estava ela lá na rua, sentada na beira da calçada, embaixo de uma árvore cujas raízes quebravam a calçada. Pensou nele, era o que ela mais queria naquele momento, era saber se ele estava bem. Eis que vindo despreocupado, rua abaixo, vinha ele, mãos nos bolsos, boina azul, que combinava com seus olhos tímidos porém tão inquisidores. Chamou o nome dele, ele olhou em direção à ela, deu um sorriso. Deus sabia como amava aquele sorriso. Se abraçaram, abraço leve, rápido, porém cheio de intensidade, um instante que ela queria que não acabasse. Ele a beijou na face, sua barba por fazer causou-lhe um arrepio.

– Está tudo bem contigo?Parece cansado… – disse ela, olhando-o nos olhos, ela não sabia, pelo menos era o que pensava ela, falar apenas com o olhar. Ela queria ser mais silenciosa, agir quem sabe na surdina, falar menos e pensar mais. Seria possível?A razão de seus problemas frente à sociedade retrógrada, era que ela era uma mulher que pensava demais e falava em demasia. Escritores e escritoras jamais se calam. É com as palavras que eles gritam seus desejos, derramam os copos cheio de cólera, abraçam seus amores, beijam, transam, imortalizam aqueles aos quais se apaixonam, mesmo sendo imoral, na visão de Oscar Wilde, ou seria na visão de seu personagem Lord Henry? Personagens são ecos disfarçados daqueles que os criaram. Cada criação carrega um pouco da vaidade de seu criador, algumas mentiras, meias verdades, e um poço profundo cheio de sinceridade que por muitas vezes dói. Em tempos de idade média, o silencio tímido de uma mulher era tido como algo de obrigatoriedade. Em tempos modernos, em tempos de machões que acham que vivem numa época feudal, de vassalos e servos, a mulher ainda tem de ser mantida na sombra, no porão escuro de seus desejos. Mulher não tem o direito de desejar…Reprime…Eis aí o coeficiente da razão tingida de cores mesquinhas. Até quando, pensa ela?

Ele disse que estava cheio de coisas pra fazer, tinha acabado de chegar do trabalho e estava apenas caminhando para colocar os pensamentos em ordem. As crianças continuavam a brincar, mas parecia que o tempo parou ali. Queria agarrar os ponteiros do relógio e não largar mais. Chamou ele, pra uma festa, no final de semana sabia ela que ele não teria tempo, ou não teria vontade, ou sabe-se lá mais o que.  Aquele homem ali na sua frente, era uma incógnita, o brilho de uma estrela incompreendida, e que talvez já morreu, mas seu brilho, na mente dela, durava anos luz, e nunca morriam.    Ele foi embora, pensativo, dobrou a esquina. Ela ficou parada, na rua, vendo ele partir. Voltou pra sua casa, e ficou apoiada no muro, talvez ele voltasse. Talvez…

Pausa, ela não se lembra o que aconteceu naquele meio tempo, durante seu sonho. Talvez ela brincava com os cachorros que teve correndo e cagando pelo quintal. Talvez ela estava a olhar para o céu, tentando entender as estrelas ou ser abduzida por extraterrestres do Arquivo X. No trecho que se lembrou, ela estava sentada num banco de jardim, ao lado da escada que dava pra garagem, que ficava na parte subterrânea da casa. E lá veio ele, subindo as escadas, mãos fora dos bolsos, cabelos desalinhados, a boina sumiu… Coisa de sonho, ou talvez ele tinha perdido, ele lhe disse um dia que costumava perder ou esquecer as coisas. Igual ela, esses dias, ela perdeu as chaves de casa, chegou em frente de sua casa e esparramou as coisas da bolsa na calçada de concreto liso. Era tarde da noite, incomodou a senhora que alugava sua casa a preço de banana. Ela apareceu, de pijamas, e lhe deu uma cópia das chaves. A música de Adriana Calcanhoto na cabeça…

Eu perco as chaves de casa
Eu perco o freio
Estou em milhares de cacos
Eu estou ao meio
Onde será, que você está… Agora?

Estava ele lá, na sua frente, disse-lhe que iria para a festa ao qual foi convidado. Os olhos dela sorriram, sua boca o fitou, sim, essa mistura sinestésica, queria sentir o cheiro dele, na pele…Foi embora, lhe deu um sorriso tímido, daqueles de canto de boca. Deixou seu cheiro no ar, junto com a saudade de seu sorriso de fração de segundos.

Como o tempo em sonhos não tem uma ordem cronológica lógica, o final de semana chegou rápido. Ela saiu do elemento cenas da infância em tempos presentes, e estava no local onde seria a festa. Era uma chácara grande, num bairro conhecido da sua cidade, com um casarão cheio de suítes, com grandes janelas que davam para o horizonte. No horizonte daquela janela, haviam vários templos religiosos, grandes sultuosos, seria que aquele sonho, o seu inconsciente talvez a estivesse chamando atenção para sua falta de crença, ou falta de atenção para o seu lado espiritual? Esta foi uma das incógnitas, que ficou questionando quando ela abriu os olhos marejados. Ela tomou banho, colocou seu melhor perfume, preparou-se, um ritual, cheio de felicidade. Escutou um barulho, estava de biquíni, desceu as escadas do casarão, parou na porta, ainda colocando desajeitadamente um vestido por cima da roupa de praia. Ele chegou, estava de camisa, branca, olhos de dilúvio, sorriso, olhou pra ela com expressão de desejo, rindo do jeito desengonçado com ao qual ela tentava colocar o vestido enquanto caminhava, ela suspirava  esbaforida, uma ansiedade e um desejo incontido. Abraçou-a fortemente, deu-lhe um beijo, que somente os que vivem a intensidade das brincadeiras do inconsciente, podem sentir. Parecia tudo muito real. Ele estava suado, no abraço, sentiu as costas dele molhadas, a camisa estava úmida, ela também. Ele perdeu-se no cheiro de seus cabelos molhados, na delicadeza do tecido do vestido que a cobria. Ela sentia o cheiro dele, um cheiro natural, bom, de homem feito, uma mistura de sua colônia borrifada de manhã, resquícios de perfume fabricado com o mais divino cheiro natural. Ela tinha aquilo com ela, ela é de uma natureza selvagem, e aquele homem a decifrava com os olhos, sem dizer uma única palavra, ela se perdia, ele interpretava seus mitos, sabia ele que ela era uma mulher que corria à frente dos lobos, perdida em pradarias, estepes, mas sempre sem perder o medo, mostrando os dentes, salivando de desejo, na cólera, na raiva, na emoção, no Amor, na dor, em todas as quatro estações. E ali naquele abraço, tão real, tão sensato, ele lhe disse ao pé do ouvido:

– Tome um banho…comigo…

Sabia ele, que ela já havia feito isso, e talvez sabia, que ela faria de novo…E de novo…Até toda a sua pele ficar enrugada. Uma mulher intensa cheia de sentimentos, não perde seu tempo, ela aproveita até o último momento, e quando o momento não foi aproveitado por n razões, seja por freios do ego ou orgulho, ela se lamenta, até a último segundo de tempo perdido. Ela abraça os ponteiros do relógio, e propõe ao Tempo um jogo erótico. Talvez, se o Tempo pudesse ser levado na base da chantagem emocional ou sexual,  estaria todo boêmio, cheio de doenças, todo mundo seria imoral, até aqueles que se recusam a cair na tentação. Todos nós nos entregamos à ela, quando não conseguimos lutar mais.

Subiram para o quarto, eles contemplavam o horizonte na janela, cheio de templos. Chamava a atenção, naquele horizonte, um templo budista amarelo, igual a cor de um girassol. Os monges regavam um jardim, e um deles segurava um vaso com um lindo girassol. O sol brilhava lá fora, e o girassol estava imponente, soberano como o seu semelhante que reina no céu.

Ela acordou, com  estrondo do trovão. A noite que começou quente, trouxe o frio sereno e agradável do Outono. Estava deitada, num colchão, na sala da casa do irmão. Acordou suada, e viu que agarrava o travesseiro, o abraçava, e ele estava molhado. A triste realidade a deu uma bofetada na cara, seu Amor não era um homem, era um travesseiro, e ela estava sozinha, ali naquele lugar, no escuro. Subiu no sofá, estava amanhecendo, olhou a manhã tímida querendo nascer, bocejando pra ela. Escutou o som dos pombos imundos que ficam no telhado do prédio, viu os líquens brotando nas paredes rachadas do prédio, viu o brilho das luzes acesas, sombras de pessoas que assim como ela, acordaram para a vida. Foi o sonho mais lindo que ela já teve, ela estava suada, era como se o abraço dele tivesse aquecido, como se tivessem transado até as forças se acabarem, e deitarem um ao lado do outro. Quando se deu conta de que tudo era uma pegadinha do inconsciente, pegou um caderno, uma caneta perdida em cima da mesa. Deitada no sofá, começou à escrever, e você, querido leitor, está lendo sua alma cheia de sonhos…

“Todos precisam de alguém para conversar – disse a mulher. – Antes tínhamos a religião e outras coisas sem sentido. Agora, cada um precisa ter com quem falar abertamente. Pois quanto mais bravura alguém tiver, mais solitário vai ficando.”

Por quem os sinos dobram, Ernest Hemingway

Seremos crianças serenas, acordadas com medo do escuro. Minha doce criança em corpo de homem feito, quando você fecha sua alma, é como se tivesse arrancado um pedaço de minh’alma tola. Em meus sonhos, você cai aturdido em meus braços, e dá uma gostosa gargalhada. Eu cuidei bem de meu Amor esta noite, e quando eu olho as estrelas, queria lhe contar uma parábola astronômica, enquanto você se aconchega em meus braços, os vestígios de saudade deixariam de queimar dentro do meu peito, e se você me olhar por dentro, seus olhos de incógnita me tornariam uma mulher plena, serena. Eu te amo, minha doce criança mal criada. Eu o amo enquanto ouço os sinos da velha igreja tocarem uma canção triste ao final do entardecer. Eu queria dizer-lhe, “Está tarde querido, vamos descansar”, eu lhe daria um beijo doce de despedida, te beijaria com lábios quentes de conhaque para que não sinta frio nesta noite suave de outono. Não olhe pra trás, eu ainda sinto teus lábios doces no meu rosto, porém agora estão frios. Beleza insólita, aperte-me em seus braços, não se vá pelos confins de um outono indeciso, não me deixe partir, eu, mulher teimosa e distraída, minha doce criança, eu estou andando na contramão, seguindo minha rota de olhos bem fechados. Segure minhas mãos,meus dedos magros…Estou andando sozinha numa velha praça, e quando ver-me, sentada num gramado, com meus tão grandes olhos perdidos no sabiá que colhe um pedaço de grama no bico, perdida nas folhas que estão caídas já mortas ao chão…Apenas lembre-se que eu posso sentir o Tempo escorrendo por entre meus dedos, como areia fina das praias descritas em um livro de Hemingway. Doce criança, seja sempre suave e presente em minha memória. Doce criança dos olhos azuis…Eu te adoro. Lembre-se…Sereníssima beleza de olhos desacostumados.
Seremos crianças serenas, acordadas com medo do escuro. Minha doce criança em corpo de homem feito, quando você fecha sua alma, é como se tivesse arrancado um pedaço de minh’alma tola. Em meus sonhos, você cai aturdido em meus braços, e dá uma gostosa gargalhada. Eu cuidei bem de meu Amor esta noite, e quando eu olho as estrelas, queria lhe contar uma parábola astronômica, enquanto você se aconchega em meus braços, os vestígios de saudade deixariam de queimar dentro do meu peito, e se você me olhar por dentro, seus olhos de incógnita me tornariam uma mulher plena, serena. Eu te amo, minha doce criança mal criada. Eu o amo enquanto ouço os sinos da velha igreja tocarem uma canção triste ao final do entardecer. Eu queria dizer-lhe, “Está tarde querido, vamos descansar”, eu lhe daria um beijo doce de despedida, te beijaria com lábios quentes de conhaque para que não sinta frio nesta noite suave de outono. Não olhe pra trás, eu ainda sinto teus lábios doces no meu rosto, porém agora estão frios. Beleza insólita, aperte-me em seus braços, não se vá pelos confins de um outono indeciso, não me deixe partir, eu, mulher teimosa e distraída, minha doce criança, eu estou andando na contramão, seguindo minha rota de olhos bem fechados. Segure minhas mãos,meus dedos magros…Estou andando sozinha numa velha praça, e quando ver-me, sentada num gramado, com meus tão grandes olhos perdidos no sabiá que colhe um pedaço de grama no bico, perdida nas folhas que estão caídas já mortas ao chão…Apenas lembre-se que eu posso sentir o Tempo escorrendo por entre meus dedos, como areia fina das praias descritas em um livro de Hemingway. Doce criança, seja sempre suave e presente em minha memória. Doce criança dos olhos azuis…Eu te adoro. Lembre-se…Sereníssima beleza de olhos desacostumados.

Memórias de bar.

Dormi ontem quase o dia todo. Estou de férias e tirei o sábado para relaxar, entre uma cochilada e outra, sonhos que eu tanto gostaria que fosse realidade, sonhos de Almodóvar. Acordei três horas da tarde com uma fome e sede dos infernos. Resolvi vivenciar minhas emoções incontidas em taças de vinho, nada como perder o meu tão pouco juízo em pensamentos derivados de uva fermentada. Seria eu uma alcoólatra?
Acordei, coloquei um vestido florido, meio curto mas não vulgar, aqueles que ficam soltos no corpo. Passei meu melhor perfume, vesti um salto quinze. Permito-me sentir-me como um mulherão. Quem me visse imaginaria um encontro à dois, eu bem que tentei, mas navego sozinha em um oceano de marés indecisas.Estava pronta para o pecado, mas meu pecado não me deu as mãos. Doía-me o meu tão gentil coração, chorei?Não…Eu convivo bem com a minha solidão, e acredito que as coisas não são como devem ser, assim, à nosso bel prazer, principalmente frente a um Amor tão desligado, uma incógnita talvez sem solução. Adoro mistérios, eles me encorajam, desafiam-me a ir contra aquilo que todos acham. Tenho todo o tempo e paciência do mundo, mas não sei dizer ao certo qual a regra de validade de minhas convicções. Um dia tudo se acaba, pode demorar anos, ou uma eternidade, e nessa eternidade nós podemos apenas fingir, isso mesmo, FINGIR, que nada mais sentimos, mesmo aquela lembrança doce nos afligindo como fantasmas, e eles podem ser cruéis, porque deixam uma saudade ao qual não podemos matar.

Adoro o rosto de incógnita e os cochichos dos transeuntes e convivas sentados às mesas ao lado. Adoro a cara de questionamento sobre o que faz uma mulher bonita e sozinha numa noite de sábado, sentada numa mesa tomando um vinho solitário e uma carne com mostarda e alcaparras. Se algum dos espectadores do meu curioso caso tivessem lido “O guia do Mochileiro das Galáxias”, saberia que eu estava ali a pensar “na vida, no universo e tudo o mais”, em meio à páginas de Hemingway, compradas antes em uma livraria. Não fico sozinha à toa, gosto sempre de levar algo para ocupar-me a mente. Por vezes, permito-me observar ao redor, mas sinto aquela ponta de medo de parecer invasora ao universo alheio. Enquanto as pessoas brindavam entre si, eu confraternizava com minha alma calorosa em meio de linhas tortas, no meu sempre companheiro caderno de anotações. Vivo em um mundo em que as pessoas, a maioria delas, não sabem conviver bem com a solidão e tirar proveito dela.

A solidão mostra o original, a beleza ousada e surpreendente, a poesia. Mas a solidão também mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito.

Thomas Mann