Cama de gato – Lay, Lady, Lay

De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles eram bons, é porque o corpo tinha luz. E se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso.  (Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

A carícia da língua na pele nua arrepiada em uníssono com os lençóis em desalinho finalizou com o despertador ao lado da cama. Era o fim das horas nuas, do sono regado à softporn e filosofias obscenas perdidas e jorradas no dilema Eros vs Psiquê, deixando seu corpo abandonado na cama, inundado pela meia-luz que queria penetrar o quarto por completo. Aquela manhã acordou estranha, um cheiro ruim invadiu as narinas. Abriu os olhos devagar, subiu as cobertas até a cabeça, se cobrindo para que a luz não a atordoe. Ouviu um miado, era seu Gato, ela se descobriu, olhou para o lado, e lá estava o Gato, sorridente, lambendo as patinhas. Lá estava o Gato, o seu Gato… E um pássaro morto.

No mês passado ele lhe trouxe uma barata. Brincava em cima da cama com aquele inseto asqueroso, e desde então as baratas tiveram um cheiro peculiar. Ele tinha o mesmo olhar de sempre, olhos sádicos. Sádicos felinos. Levou uma bronca, o pobre do Gato, como se gatos entendessem broncas, mas ela interpretou aqueles olhos amendoados do gato rajado como um pedido de desculpas. Trocou os lençóis, mas o cheiro da barata continuou ali, como se o fantasma da pobre coitada rondasse por ali e deixasse sua marca. Um velho amigo lhe disse um dia que as baratas tinham um cheiro peculiar. Desde então ela nunca esqueceu: sua mente criou um cheiro e deu um nome infame de “cheiro de barata”. Tudo tem cheiro, inclusive a Morte. Dizem que os cães sabem quando seu dono vai morrer, logo, a Morte também tem cheiro. Pode ser uma dedução imbecil, mas o ser humano é tomado de devaneios imbecis na maior parte do tempo.

E ali naquela manhã existia um cheiro. Cheiro de pássaro morto, junto com o cheiro de sarcasmo dos olhos zombeteiros de seu gato. Os modos aristocráticos ao qual ele se limpava a irritava, naquele momento. Como ousa? Como pode achar que aquilo seria um presente para trazer à dona. Ela ficou paralisada, olhando aquele pássaro, aquele pardal com pequenas tripas saindo pra fora e a marca de sangue seco nos lençóis brancos. Desde que seu homem foi embora, ele passou a lhe trazer presentes. E sempre deixa ao seu lado na cama. Um dia, ensandecida no embalo da noite regada a jogos de cartas e gin, a paixão pelos pecados do céu noturno e calado a chamava na varanda. Na boêmia solitária tropeçou e caiu. A pancada a fez adormecer. Derrubou a garrafa no chão que se espatifou em estilhaços, cortando a pele, o sangue se misturou junto ao leite que trazia num pires para o Gato. Misturou o gin, misturou o leite, as cartas do baralho se misturavam no meio das almofadas cheirando a mofo, amor, desamor, licores humanos e cheiro de livros velhos e empoeirados. Tudo naquela casa, naquele cenário, se misturava. Os cinco sentidos eram uma sinfonia sinestésica. Bob Dylan cantava “Lay Lady Lay” naquela noite, e o gato lambia seu rosto e corpo embebidos em leite, gin, sangue e ela inconsciente, deitada na mais vã das filosofias, em um chão mundano de um quarto com paredes descascadas fadadas ao esquecimento daqueles que já se amaram entre elas. E ela embalava seus sonhos etílicos e obscenos enquanto Dylan no repeat cantava, e seu velho homem deitado na cama, com as costas arranhadas. Mas agora era só lembrança, o pássaro morto em sua cama lhe dava uma compaixão pavorosa.

O pássaro morto continuava ali, ela também, paralisada num misto de asco, surpresa, devaneios, lembranças. E o Gato fazia graça, os pelos eriçando, ele se esticando, ronronando, entrando por baixo das cobertas, aninhando-se entre as pernas delas que se encontravam num tremor de assombros. Ela se lembrou de um poema do velho safado, que dizia ter um pássaro azul trancafiado no peito:

Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair, mas eu sou demasiado duro para ele”

E o pássaro estava de uma maneira sutil, trancafiado em sua morte, disposto como uma mensagem sórdida e metafórica embalada à saliva, tripas, sangue e pelos e penas. Seu funeral era ali, em cima de sua cama com lençóis de brancura impecável, mas de uma maneira única, sentia seu coração sufocado por ele. Uma espécie de amor pela dor, e a dor estava ali, com as tripas para fora, uma ofensa. O Amor é uma ofensa. O medo também, com uma diferença que o medo não nos traz prazeres. Levantou-se, foi para o outro lado quarto. Encostou na parede úmida e gelada. A cena toda não parecia menos assustadora. O Gato rajado a encarava, balançava o rabo peludo, piscava os olhos amendoados numa calma insuportável. Pulou saltou da  cama, enroscou em suas pernas novamente, chamou-a pra cama de novo, tal como um amante insaciável. Voltou pra cama, para “seu” pássaro imóvel,  Pensou nos vermes que vão invadir o corpo do pobre pássaro e consumir suas entranhas. Sentiu o corpo todo formigar, como se ela fosse devorada. Os olhos sem brilho do pássaro contavam uma história triste. Os olhos de sarcasmo do Gato queriam lhe dizer algo, uma história zombeteira, uma metáfora mesquinha, uma filosofia obscena escancara na pureza hipócrita da brancura de seus lençóis. Levantou-se, colocou um velho vinil para tocar. Tirou-lhe o pó. Deixou-se arrepiar pela chiado, deitou-se na cama, ao lado do Gato e seu pássaro morto.  Bob Dylan cantava novamente, numa epifania perturbadora:

Lay, lady, lay, lay across my big brass bed
Lay, lady, lay, lay across my big brass bed…

Nada era mais obsceno que aquilo.

A moment’s Grace

A desumanidade presente na busca de uma vida perfeita. Marta trancada em seu mundinho de poucas pessoas, na calada da noite, uns poucos convites para tomar uma cerveja. De repente todos somem, as paredes do quarto a engolem, ela se olha no espelho e se vê desconstruída, mil fagulhas queimando-lhe o ventre, de dentro pra fora. A gota d’água pingando sem parar na torneira do banheiro, os gritos do vizinha noite afora durante o sexo, o sorriso do namoro dos gatos no muro em frente. Sai para fumar um cigarro na soleira da porta enquanto o pio agourento da coruja canta uma maldade sem razão. Antes, a hipótese da maldade a assustava, a hipocrisia alheia lhe apertava a garganta ao ler as páginas do jornal nos primeiros minutos do trabalho enquanto o cheiro de café invadia as narinas. Café… Seus olhos realmente estavam abertos de fato depois de três goles de café. As sombras, o toque, o vento, o barulho das teclas dos computadores alheios se tornavam palpáveis depois do amargo gole, era depois disso, que a vida tinha sentido, era depois disso, que seus assombros ganhavam contornos de aquarelas tristes. Era isso que queria pintar na tua pele, mas não há espaço para todos aqueles contornos, por mais que metaforicamente eles fazem cicatrizes em tua pele, a dor é invisível.  A coruja continua piando, o primeiro cigarro acabou, mas ainda tem cinco dentro do maço, acende outro,  gato sorri com os olhos, ela sorri intimamente, por dentro. Uma gargalhada dissonante, quase úmida e de um sarcasmo digno de uma tragédia tragicômica com máscaras e ventríloquos assustadores. Ahhh se ela pudesse contar histórias, seriam todas da boca pra fora, mas seriam cantadas em verso e o riso seria seguido com lágrimas, a tragédia do rir para não chorar, ou chorar, para depois cair no deleite do riso.