Confessionário

O prazer é um pecado, e às vezes o pecado é um prazer. 
(Lord Byron)

As luzes lá fora já se apagaram. Os quatro comprimidos sublinguais de Rivotril duas miligramas estão se desmanchando na boca. O conhaque Presidente está pela metade, sorrindo pra ela, o gato oportunista passeando entre as pernas, entrelaçando-se, olhando pra cima e emitindo o som estranho que vem dos gatos: ronronar… Ronronar. Ela sempre gostou desta palavra, soa estranhamente erótico. Doente… Pensou ela… O gato, de alcunha Byron, queria carinho? Não, ele quer comida, está sempre faminto, com olhares piedosos, tal como o gato do desenho do ogro verde e o burro falante. O prato de Byron, o Gato está vazio. Talvez tenha um pouco de leite não coalhado na geladeira e um resto de comida de gato enlatada. Byron a encara, na penumbra da madrugada aqueles olhos amarelos lhe dão arrepios e ele a segue sentindo-se satisfeito quando ela coloca a tigela de comida ao chão.

Gatos desgraçados, tão classudos, comendo sentados, parando para respirar, olhando ao redor. Aqueles olhos amarelos de reprovação, enquanto ela toma goles longos de conhaque e acende a porcaria dos cigarros mentolados que ela esconde na gaveta. Os comprimidos de Rivotril, numa pasta nojenta, misturando com o conhaque made in Paraguai na boca. Aquela sensação relaxante, quente, densa e consoladora, com um peso de um homem entre as pernas, seu velho homem.

Os olhos do gato dizem: tal como o peso daquele seu velho homem ao qual você nunca teve.

Dá uma alta risada de escárnio, e vai se derretendo no sofá, com o olhar perdido no teto mofado com pintura descascada. Talvez toda a concepção que ela tenha a respeito de sexo, seja como aquelas paredes, aquela pintura… Incompleta, inacabada, cheia de manchas. Talvez ela se junte ao trovador bêbado que passa todas as noites declamando versos desconexos embaixo de sua janela, mas hoje, justamente hoje que ela precisava se deleitar do escárnio dos desgraçados, eles não cantam suas emoções. Fica somente o eco das vozes na escuridão, repetindo como trechos de canções em disco riscado…

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

É o que diz no disco riscado do Pink Floyd. Enquanto “Echoes” toca e ela delira no sofá, os olhos do gato, reprovadores, encarando-a como os olhos do padre durante a confissão. Lembrou-se que só se confessou uma vez na vida, na primeira comunhão. Entrou em uma sala no pátio da Igreja Nossa Senhora Aparecida, da cidadezinha pacata onde todos puxam o “r”. O padre estava sentado numa grande cadeira de madeira maciça e couro. Conte-me seus pecados minha filha, do que você se arrepende? Mas eram pecados de criança, tal como roubar doces, gastar dinheiro do lanche com fliperama,  subir no telhado escondido, simular sexo com a Barbie e o Ken, e fazer desenhos sem educação sobre a professora chata. Vou-me confessar Byron… Só você me entende, eu sei e você agora está com aquele olhar de que quer me ouvir…

Byron, o gato, se aproximou, lambeu-lhe a mão, não gostou muito, tinha gosto de conhaque, nicotina e sangue. Ela cortou a mão na lata de comida pra gato e não percebeu. O chão da cozinha estava manchado, contando histórias no chão. Mas o gato ficou lá, sentado, olhando pra ela, seminua e bêbada no sofá.

Byron eu pequei… Eu peco todos os dias, todas as noites…

O gato arrepia os pelos, lambe as patinhas e volta em sua posição de olhos atentos.

Eu queria beijar-lhe a boca inteira, afundar minhas mãos nos negros cabelos,

 Daquele seu velho homem que você nunca teve, disse o gato, com os olhos…

 Eu poderia lamber-lhe a cara, eu poderia beijar todos os pelos do rosto. Aquela barba negra por fazer. Eu poderia Byron… Eu poderia pensar em um milhão de coisas sujas e vulgares, eu poderia dançar nua pela sala, eu poderia fazer uma rima pobre e podre, mas eu não sou poeta. Eu poderia percorrer-lhe o corpo inteiro, como um inseto ou morder-lhe como um animal sádico, brincando com a presa. Aquele velho homem… Velho… Antigo, empoeirado, um quadro inacabado perdido em um souvenir.

Tomou mais um gole de conhaque; desejar sem poder é pecado? Até onde minhas entranhas expostas são um grito desconexo de utopia? O que é utopia? O que eu tenho medo? Qual o índice da minha maldade? Da nossa maldade, sem exceções? É matar alguém com 200 facadas, é torturar uma criança até a morte por inanição? É ver um cadáver na rua esperando o rabecão e tomar uma cerveja na calçada da esquina? Eu posso sufocar meu tesão com um travesseiro e pedir desculpas depois? Eu posso lhe arranhar as costas, posso traçar mapas de desejo no meio do suor, pelos, veias e tendões? Qual o prazer em sentir dor? De ver meu corpo rasgado e com marcas profundas de dedos, pequenas irritações causadas nas pele por causa do passeio de um rosto barbado? A preguiça masculina de 3, 4 dias de pelos na cara. E o meu corpo no espelho, dilacerado, desalmado e talvez amado? Qual foi o meu pecado? Pecado Byron… PE-CA-DO…

 Byron subiu no sofá, sentou no ventre nu e suado daquela que balbuciava eloquências e metáforas, e com olhos piedosos passou a língua áspera no ventre dela, como se quisesse caçar as mariposas no útero. E os pelos do gato como uma carícia, as patinhas pressionando como dedos. Ele se deitou, encarou-a com os olhos de incógnita e o piscar de felino. Trouxe-lhe a exata sensação de que o pecado era para ser vivido, mesmo na utopia. Dormiu, sonhou com o seu velho homem, que tem olhos e jeitos de felino. Dorme e sonha com dias poéticos, desgastados, descascados, com um pouco do mofo das tristezas, cores sinestésicas e os ventos de alegrias cheias de tragédia. Versos, neologismos, dor, beijos e gemidos.

 O gato olhou para a janela, poderia dar um passeio lá fora, no mundo paralelo dos gatos, perturbando o sono alheio com as transas felinas que atiçam o sono dos incautos, mas ficou com sua dona, e pensou nos albatrozes, “imóveis no ar”, do disco riscado do Pink Floyd. A noite foi como eco, cheio de vozes e desejos ensandecidos. A noite apenas começou, com seus encantos, prazeres, pecados e desejos, deitando em metáforas, aforismos, metonímias e falácias. O bêbado trovador passou embaixo da janela.  Todos os olhos felinos piscaram e sorriram, enquanto lambiam-se uns aos outros, as patas, a cara, o corpo, o sexo…

Escrito ouvindo isso aqui várias vezes:

Front

Já estive aqui antes, contemplando outros amanheceres. Já estive aqui, andando de um lado para o outro, com as mãos manchadas de sangue. Já vi meus velhos amigos perderem a luta em campos de batalha, minhas mãos e roupas cheias de sangue. Matei meu melhor amigo com um tiro na cabeça, porque ele me implorava para acabar com os sofrimentos que sentia. As tripas saltando da barriga, e ele segurando-as nas mãos, numa tentativa desesperada de botá-las para dentro de novo. Mate-me, por favor, por amor à sua vida, mate-me… Ouço isso me atormentando, dia após dia, ano após ano… Já ouvi os sinos da velha capela anunciar muitos funerais. Pessoas de luto a murmurar orações, cujos ecos invadem meus ouvidos, levando ao longe velhos murmúrios já tanto desgastados, e aquele som entalado na minha garganta. E Deus, aquele velho tolo que não existe… Estou sempre cansado de lamentações. Se eu pudesse, andaria milhas e milhas pelos campos de centeio, e como Holden Caulfield, eu salvaria as crianças de caírem dentro do abismo. Muito prazer minha amiga, sinta todo o calor de minhas mãos trêmulas. Mas você tem as mãos tão frias, que me sinto diante de minha própria morte. Teu rosto já tão fundo, as olheiras marcando um profundo desespero embaixo de teus olhos. Tens a fala mansa, muitas vezes eu não escuto. E olhando dentro dos teus olhos, vejo apenas uma garotinha aturdida, perdida. Talvez, falte algumas mãos empurrando-lhe, naquele balanço velho, perto do velho poço. Quando eu era um garotinho, sem barba na cara, você chegava e me pedia para empurrar-lhe no balanço. Você não tinha forças, minha cara amiga, para dar sentido ao teu próprio voo. Dizia-me que me encontraria algum dia, perto da velha capela. Fiquei esperando, anos e anos. Amigos morreram, guerras aconteceram, ouvi tiros, explosões, gritos de desespero. Cruzei rios, pegando cadáveres que boiavam ao meu redor. Esperava que com o tanto de peso que tinha, eu afundasse, para abraçar o inferno que tanto me espera. Mas era apenas eu e o fedor de meus companheiros mortos em campos de batalha. E hoje carrego no peito uma medalha  de ouro ridícula, pelo trabalho realizado, salvando vidas e a honra de companheiros. Consegue ver, o quão bonito é isso? Lembro-me das noites que passei em bares, enchendo a cara, e ao final da noite saía com prostitutas. Elas amavam um homem de farda. Algumas me davam de graça, e por mais que eu implorasse que aceitassem o pagamento, diziam que um homem de honra deve ter amor todos os dias. E que merda de Amor é esse?

Encarei a vida como um pássaro voando sem rumo no horizonte. Lembro-me, quando criança, de matar um a um com estilingadas, sentia todo o prazer de enterrá-los, um cemitério de pássaros, no jardim de minha casa. E você me ajudava, colhendo flores para fazermos o enterro. Eu já gostava do teu sorriso sádico, desde quando você era uma criança, descabelada, desdentada, com seu vestidinho branco impecável, sempre sujo de terra ao final do dia.  São essas doces lembranças que me fazem escorrer lágrimas de delírio.

Queria agora, dar tiros em todas as direções, ver pessoas correndo de desespero, implorando por misericórdia, enquanto seguro a arma, ouvindo um coral de anjos desafinados a cada gota de sangue derramado, e eu poderia lhe ver dançando nua em cima do mar de sangue formando-se aos seus pés e então eu amaria cada pedaço de tua pele, como se fosse a coisa mais divinamente perfeita neste mundo. E diante de deuses em fúria, cometeria o maior pecado do mundo, e seria então feliz, discordando da boa moral e costumes das pessoas que eu mais amei, apenas você e eu, num mundo vermelho, manchado de injúrias, apenas com a dor e tristeza de passeatas fúnebres. Mas estou aqui neste funeral, e a marcha militar fúnebre vai começar. E o barulho dos tiros ao alto, sou apenas um homem na multidão, um homem condecorado, um herói de guerra, manco… Salvei vidas e quase acabei perdendo a perna. A ironia da vida quase me mata, e os gritos de sofrimento ainda me perseguem, ainda tenho o mesmo pesadelo durante anos. Ainda amo a mesma mulher, ainda desejo casar e ter filhos e contar-lhes crônicas de guerra. Ainda quero andar embaixo da chuva, mas sem que nenhum pensamento me atordoe. No próximo anoitecer, durante a madrugada, serei um andarilho miserável vagando pela casa com uma arma na mão, uma garrafa e murmúrios. Vejo você, dizendo-me que sou apenas um homem fracassado, largado à sorte de meu próprio destino. Se chover nesta noite querida, deixarei que cada gota d’água escorra para meus lábios e que lave este meu rosto de ressaca. Poderei estourar os vasos que herdei de minha mãe. Dentro de cada um deles tem as cartas que ela me enviava durante a guerra. Muitas se perderam no front de batalha, algumas têm manchas de sangue, algumas outras me trouxeram alguns minutos efêmeros de paz e aconchego. Minha velha mãe na soleira da porta me dando adeus. Foi a última imagem dela que eu tive em minha vida. E a saudade do aconchego dos braços de minha velha mãe, é o único calor que me traz um sorriso no rosto. O calor do amor materno, as palavras de apoio, os sermões. Se eu pudesse trazer algo de volta, seria ela, mas os anos passaram, perdi amigos, amei e fui amado. Tento parar de pensar nesses disparates, a fim de manter longe o canhão de meu revólver longe de minhas têmporas.  E é assim todas as noites. Tenho apenas uma bala no tambor do revólver, e sei bem como usá-la. Quando vier me visitar, limpe o meu sangue, troque os lençóis, apague a luz e feche as portas.

Stains on the memory…

Não se discute. O silêncio perante uma série de discussões sem razão na noite de domingo, enquanto a televisão vomitava seu lixo indigesto. Fui picando uma folha de papel abandonada na escrivaninha da sala. Enquanto as pessoas riam das desgraças alheias e alguns tinham sorrisos incontidos dentro das calças. Cada pedaço de folha branca rasgado às mínguas, papéis sem importância, despedaçados. Sinto o vinho dilacerar a alma como se quisesse me cortar em pedaços. Minutos antes, eu ouvia o tilintar de copos, garfos, facas, bocas se mexendo, comida sendo mastigada. Mais um pouco de percepção, eu poderia ouvir a comida caindo no estômago e o barulho do ácido gástrico queimando o pedaço de carne ao molho madeira sendo destruído. E as bactérias dos intestinos alheios fazendo festa. Era só mais um pouco para escutar a festa torpe de todos os humores da sala e os mesquinhos pensamentos de uma vida vazia e sem pretensões. Era só mais um copo de vinho, para adormecer com a cara na mesa, e em sonhos desconexos eu ver os rostos das pessoas que eu mais amei, misturando-se em desenhos e manchas de paredes. Eu acordei, com uma cara embasbacada, amassada, assustada com os olhares alheios de quem disse que eu falava sozinho. O jornal noturno passando na televisão, a desgraça do acidente de caminhão com engavetamento, “Morreram todos, que desgraça, que desastre”, “Morreram todos”, “O motorista estava bêbado”… E aqueles olhares perdidos, balbuciando que eu perdi a programação de domingo, como se eu realmente me importasse com aquilo tudo. E a garrafa de vinho quase vazia com seu conteúdo vermelho me ditando as desgraças e os sentimentos desentendidos do mundo. No dever de esvazia-la, lanço meu copo a toda sorte de calor e bem aventurança, a toda sorte de acordar no dia seguinte com a ressaca me questionando os porquês, com aquela dor de cabeça gritando aos quatro ventos, e os olhares de reprovação, com o zíper da calça aberto, com os botões da camisa aberto, toda em desalinho.  A barba por fazer, como um irresponsável. A empregada perguntando se eu quero um copo de café, e eu apenas querendo fazer uma pequena festa entre o meio das pernas dela. O café quente e forte… Posso sentir o cheiro de sabonete exalando do pedaço de pele me servindo, mas eu gosto mais do cheiro do final do dia, aquele suor, misturado com o desespero de querer voltar para casa. Eu poderia espiar a sua nudez no banheiro, ao tirar as roupas velhas de trabalho, mas minha cabeça dói demais, e a cada gole de café eu me lembro daqueles tempos de menino, em que as meninas impúberes iam para escola e em suas camisetinhas brancas eu via a ponta dura dos mamilos ainda em formação. Apenas menininhas, menininhas em hormônios a festejar, me olhavam com desejo, eu sei, mas a garota Suzy… Ahhh Suzy! A única que me deixou ir além. Eu me recordo ainda hoje, aquele beijo molhado e desajeitado, aos meus treze anos, encostado na mureta, longe de olhares. Atrevi-me, e senti aqueles peitos macios escondidos por trás de um sutiã de algodão, e aquela pressão, aquela coisa, o desespero de achar o local certo ao colocar meu tímido e desajeitado amigo, no meio daquelas roliças pernas de Suzy. A empregada aparece de novo, fazendo contato, o braço dela perto do meu, e sem perguntar se eu desejava mais café, encheu minha xícara, e aqueles braços, aquele perfume. Um dia me apaixonei pelos braços da vizinha. Estava na soleira da porta de casa, numa mágoa adolescente, vi aquela senhora balzaquiana chegando com sacolas pesadas. Pude ver todos aqueles tendões e veias saltadas. Ofereci ajuda, carreguei algumas sacolas. Ganhei biscoitos e chocolate quente. Ela me falava da vida, enquanto amassava a massa do pão. Aquela penugem rala dos teus pelos, embranquecida com a farinha, e o movimento sublime dela lavando os braços, embaixo da água fria da pia da cozinha, e aquele olhar de que sabia que eu a desejava, mas eu queria apenas amar aqueles braços, aqueles tendões, aquela brancura, a extensão para as mãos cujos dedos finos ela lambia para experimentar a massa de bolos que ela achava que me agradava. E ela achava, ela achava que eu frequentava a casa dela por causa de biscoitos e doces. Eu era apenas um adolescente inocente, apaixonado pelos seus braços. O tempo passou, os amores vieram, e também se foram, e hoje, eu sou apenas um homem em devaneios de ressaca aquecendo a garganta e a alma com café amargo. A empregada me dá um sorriso, faço-me por desentendido, pego mais café e sento no sofá da sala. E fico ali, olhando para o teto pintado de um verde ridículo. Queria estar louco o suficiente para ver aquelas manchas dançando na parede, aquele mofo formando imagens desconexas, e minha mente voando em um turbilhão de luxúria, corpos ensandecidos como vermes, se misturando, tocando-se, em delírio de gemidos, dor e inconsciência. Mamãe me disse que eu era um doente sacana. Eu sou apenas um homem, que vivia constantemente em uma ressaca quase cigana, de bar em bar, após o trabalho, afogando minhas mágoas e desdém do mundo rançoso. As corporações. Eu poderia escrever um poema sujo e deslavado sobre elas. As pessoas, tão mesquinhas, falsas, o gerente que nada sabe, as pessoas puxa-saco, lambe-saco, chupa-rolas. É como um prazer desnorteado, insano. Queria dar um tiro de fuzil em cada uma delas. Queria explodir todos os meus relatórios, toda aquela baboseira de índices de gestão. Toda aquela frescura, aquela imundície. E o salário de merda todo final do mês, que minha mãe dizia “Ahhh o dinheiro abençoado”, só se for abençoada pela total falta de amor, todo o ódio dos sorrisinhos alheios das minhas companheiras de trabalho, toda falta de amor, mas excesso de tesão daquela recepcionista que me pedia aos gritos para que eu a levasse  ao delírio. Ela tinha uma bela bunda, peitos macios, mas uma boca que exalava esgoto. Eu a amava, desde que ela fosse como um vinho. Eu a amava, mantendo-a na horizontal, com a boca ocupada. Não é machismo meu caro amigo… Certas mulheres devem ser mantidas na horizontal, com uma rolha na boca, tal como o vinho, entende? Ouço seus pensamentos agora, exclamando “Machista de merda, desgraçado”. Pouco me importo, a sinceridade incomoda, o Amor incomoda.  O amor anda junto com o fracasso. Sentado nesta sala, vejo a empregada limpando o armário. Dá pra ver as marcas da calcinha cavada. Ela me solta outro sorriso sacana. Eu poderia amar essa mulher, essa mulher pode sentir algo por mim, ou apenas achar que eu posso dar-lhe uma boa vida. Estou suando… Suando como um porco, está calor lá fora, ela me diz… E olha para minha camisa suada. Diz que Dona Alzira, minha mãe, saiu. E as manchas na parede parecem estar sorrindo agora, e aquela calcinha cavada também me faz um sorriso. Ela está começando a ter aquele cheiro que eu gosto tanto. Eu poderia consumar o ato no sofá da sala. Tranco-me no quarto, e coloco-me a fitar os lençóis brancos chacoalharem no varal. Aquilo me acalma, por alguns momentos. Aquele desespero sufocante, me atiçando, crescendo e inflando minhas calças, e aqueles braços, o cheiro de café e sabonete, as roupas, os lençóis, a brisa plena da manhã das dez horas, o latido do cachorro, o olhar de desaprovação do gato no galho de árvore. Livre-me, livra-me ó Deus tolo… Dos pecados que me atormentam a alma. Livra-me da vontade de fazer cócegas e desejos molhados na pele daquela mulher. Livra-me de minha mãe dizendo que eu sou um vadio. Eu poderia desertar, me divertir em braços de prostitutas com gonorreia, o amor sufocado e contagioso que eu tanto preciso. Copos de conhaque,cigarros paraguaios, apostas que nunca findam, o dinheiro sujo me dando o poder que eu, um tolo, vulgar e sedento, tanto preciso. Ao final da noite e ao amanhecer satisfaço minhas vontades em uma mulher que eu não sei ou não me recordo o nome. Darei um beijo naqueles ombros, e a mandarei  queimar no inferno. Encontro-lhe mais tarde, meu pedaço de prazer, acariciando suavemente teu íntimo, queimando em labaredas a lhe dizer um milhão de sacanagens ao pé da orelha. E eu vejo todas elas, as mulheres que eu amei, e as que eu fingi que amei, indo embora, com um sorriso no rosto, achando que eu realmente voltaria… Eu era… Minha amada, EU sou apenas um garotinho perdido, na soleira da minha porta, em sonhos, em devaneios, aquela falta de sorte regada com o desespero de ter beijos sórdidos todas as noites, de tomar um café ou tomar um vinho sem pensar no meu próprio desespero. Vou deitar nesta cama, cobrir-me com estes lençóis brancos, deitarei nu, com meu sexo totalmente ereto e livre de pudor, deixarei que a brisa noturna me leve todos os meus medos e desencantos. Abra a porta e me veja, contemplando o vazio, como se todas as estrelas do céu viessem me saudar. A velha garrafa jogada ao pé da cama. Entre conhaque, vinho e cigarros, sou apenas um garoto perfeito, uma explosão de vozes e loucura que nunca acaba. Sou apenas uma carícia infindável, aquela carícia que lhe deixa marcas. Eu sou apenas um homem minha querida, carregado nos ombros do pai e da mãe, carregado de sonhos de ir e vir. As estrelas lá fora, como candelabros…

The Spell (broken) – Karien Deroo

O bom menino.

Você mostrou-me teus olhos, até então cobertos por um véu. As ruas do subúrbio escondem a tristeza fria e sedutora dos homens. E quando os olhares se encontram, é como se estivéssemos gritando, com medo, com frio. Os muros estremecem, são as marretadas do nosso medo, batendo de frente com nossas emoções. Nobre coração, correndo, batendo voluptuoso e insano em cima das bicicletas do subúrbios. Jovens, homens e mulheres compartilhando a brisa batendo no rosto. Nunca tivemos tanta certeza, que nossos sentimentos traiçoeiros estão nos sorrindo, perdidos nos becos, e então nós rimos, porque afinal, nosso sarcasmo e ironia nos corrompe docemente nas memórias noturnas, quando adultos. E eu me lembro… Daquelas tardes ensolaradas no subúrbio. Nós nunca gritamos tão alto…

Éramos jovens, você se lembra? Corríamos pelas ruas do subúrbio buscando sonhos desacordados, com canções em tons desafinados, cores ajustadas, como a mistura de Renoir num quadro pintado em Paris. Posso estar escrevendo coisas das linhas pra fora. Entenda querido, já são além da uma da manhã, e eu ando tendo madrugadas insones. Há um silêncio lá fora que me convida para contemplar os gatos por cima do muro. Eles andam numa graça inocente por entre as grades, e quando me veem com os cabelos ao vento, no meio dessa madrugada de outono indeciso, eles me encaram com os olhos brilhantes. Há um gato, negro como a noite, eu só vejo os olhos amarelos, me encarando como se soubesse dos meus sonhos de ir e vir, das minhas noites tecendo a saudade em meu tricô imaginário de vinho Merlot. Hoje bebo no gargalo, desde que te conheci ignorei a etiqueta de tomar vinho como gente educada. Eu não sou mais educada, sou tresloucada.

Se eu fumasse, acenderia um cigarro, talvez um mentolado, ou aqueles doces, de cereja. Ficaria soltando anéis de fumaça no ar, quem sabe eu fizesse um grande o bastante? Tem uma coruja aqui perto do terreno baldio, ela mora num buraco. Em meus sonhos, ela poderia passar voando nos meus anéis de fumaça mentolados. Ela passaria por dentro deles e daria um rasante no chão. Talvez, pegasse minhas emoções que jazem no chão, e levaria para bem longe, talvez para um inferno Dantesco, ou para o paraíso dos sonhos de Beatriz. Lá existe um pouco de Amor. Eu escuto Chico Buarque e sinto Amor, e eu queria que quando eu passasse você me estendesse a mão, ou o chapéu, mas tu não usas chapéu. Um dia queria que me mostrasse o sol, aquele que lhe faz sorrir, assim, mais de duas vezes ao dia. Percebe? Eu te mostraria toda a beleza de um dia chuvoso, talvez encontrássemos alguma coruja tomando banho, enquanto as pessoas passam aturdidas com seus guarda-chuvas, com raiva, passos largos. Eu contaria os segundos, contigo, e depois me apoiaria em teu ombro quando o trovão bradasse a fúria dos Deuses lá naquele horizonte de campo aberto.

Quando eu era criança, eu gostava de andar de bicicleta embaixo da chuva. Eu passava na poça de lama, e conforme ia pedalando, a roda de trás respingava lama nas costas da minha camiseta velha de guerra. Meu pai sempre falou que eu poderia tomar um raio na cabeça, mas a única coisa que eu tomei, foram gotas de chuva que me escorriam nos lábios. Eu era uma criança levada. E você ficou com minhas fotografias… Tem uma delas que eu estou feliz e banguela num balanço. Tem outras que estou acampando em Brotas, e eu praticava trilha na serra com minha mãe e aquele que um dia eu chamei de pai. É uma longa história, queria te contar um dia, sobre minhas aventuras, dos dias que eu subia no telhado escondida. A vida era incrível vista de cima, e pela primeira vez na vida, percebi que as pessoas não dão valor para quase nada, não tinham um olhar apurado, nunca ninguém me viu lá em cima, ninguém, só pardais e pombas que balançavam nos fios do poste… Ahhh, e o cachorro da vizinha, que eu tinha que passar de fininho, porque ele ficava nervosinho e se colocava a latir ininterruptamente. Tinha medo de ele chamar a atenção da minha vizinha balofa que não dormia porque o marido roncava. Ela poderia acabar com a minha brincadeira infantil de ser uma stalker das alturas. Um dia, atirei uma pedra no cachorro dela. Você vai me dizer:

“Malvada”…

Mas um dia, você me contou que jogou o gato da janela. Tu eras uma criança, tão malévola quanto eu, ou não… Apenas queria ver se o gato cairia de pé… Lembra? Quando você me contou isso, eu lhe disse pra você amarrar um pão com manteiga nas costas do gato, assim ele cairia de costas… Mas você cresceu meu bom menino… E nas ruas desse subúrbio, enquanto você dorme, com seus sonhos que talvez nem se lembre quando acordar, eu lembro da sua travessura de menino, como cenas de um frame despedaçado. Eu posso ver duas crianças correndo pelo subúrbio… Mas isso é apenas um devaneio, perdido entre meus anéis imaginários de fumaça. Na primeira tragada eu vou achar que vou morrer. Tentei tragar uma vez, quase morri, mas você tentou me ensinar. Eu acho que ainda não aprendi, ou tenha me esquecido. Fico apenas na vontade de menta, cereja ou pinho…

Eu poderia te reconstruir, como um vitral, daquelas igrejas europeias, mas não seriam imagens santificadas, já lhe disse um dia, eu fujo de tudo que é convencional, e faço isso sem querer, sou tresloucada… Quando criança chutava os formigueiros e passava o tempo observando o caos. Eu me perguntava se as formigas gritavam, como as pessoas na televisão quando aconteciam aqueles terremotos lá no Japão. Hoje só escuto meu próprio grito. O resto eu ignoro. Além de louca, sou egoísta. Mas eu te amo, mesmo tendo atirado o gato da janela. Você chega até mim nessa noite, com seus sonhos e travessuras de bom menino.

“I shall be released” …

 

Perto de mim nesta solitária multidão
Está um homem que jura que não é ele a se culpar
O dia todo eu o ouço gritar tão alto
Clamando que não é ele a se culpar
Eu vejo minha luz vir brilhando
Do oeste até o leste
Mais dia, menos dia
Eu serei libertada

 

Eu vi o amanhecer de raios tímidos, banhei num sorriso desconcertante, padeci de amor nas caminhadas noturnas. Quando eu via o clarão de luzes amarelas, tinha toda uma epifania talvez sem sentido algum. Ando respirando quem sabe um ar que não me pertence, posso ter chegado sem permissão, mas na minha queda eu me levanto e danço passos de bailarina de sarjeta. Cultivo o caos na tranquilidade de minhas entranhas expostas. Tomo goles de vinho enquanto leio um livro, eu ando por aí mentalizando crônicas, poemas e sonhos. Penso em ter uma casa, no alto da serra, com vista para coníferas, alguns manacás da serra imponentes e meus cães correndo pelo quintal. Também gosto de ipês, mas enfim, seria mais fácil dizer que amo flores, desde aquelas que padecem secas nas minhas garrafas de vinho vazias na estante, até o vaso de flores imaginário que eu nunca ganhei. Contemplo os vasos de minha mãe, e aqueles que tem no quintal da pequena casinha que eu alugo. Amo os cães que eu vejo pela rua. Sempre tem um que me lambe as mãos, me faz festa, me olha nos olhos e chora quando eu vou embora. Tem aqueles que sabem quando estou triste…

Vivo minha vida de forma simples, sem muitos luxos. Os únicos luxos que eu carrego são o ato de pagar caro em vinhos e gastar muito em livrarias. Fora isso, vivo sem amarras, gosto de ser livre, se pudesse, eu pegaria um avião qualquer e fugiria temporariamente para outro país. Sou apaixonada, eternamente apaixonada, pela vida, e tudo que eu carrego nela. Eu amo um homem que eu não sei se me ama, e eu acredito que nunca saberei, mas eu não desisto, sigo minha vida, vivendo de Amor, e não me importo que seja mais um daqueles mal sucedidos. A vida é muito curta, eu sei, mas sou uma eterna errante, teimosa. Podem me chamar de trouxa, do caralho a quatro, eu não ligo, posso ficar 365 dias ou mais, perdida em alto mar. Volto para minha cama, deito em meu travesseiro em forma de bicho e tenho meus sonhos de esperança. Acordo, e lá estou eu, no meio do oceano novamente, enfrentando tempestades, conversando com as gaivotas e dormindo ao relento.

Por vezes, eu acordo no meio da madrugada. Gosto de sair lá fora, tomar uma friagem. Gosto de tomar chá sentada na soleira da minha porta. Vejo o vento que me bagunça os cabelos, chacoalhar a coruja talhada em madeira, que tem pendurada no quintal. Ontem, de madrugada, o vento derrubou um vaso. Ele espatifou-se inteiro e lindas pedras brancas se espalharam no meio da terra. No meio da escuridão, as pedras brilharam, e no meio da madrugada, eu sujei minhas mãos de terra, replantei o vaso, varri o chão, peguei as pedras jogadas no quintal. Me senti viva, com minhas mãos de dedos magros e longos, que minha mãe me diz que parecem dedos de pianista. Eu nunca toquei nenhum instrumento, mas gosto de pensar nas costas nuas de meu amado, como um grande piano. Eis a única coisa que eu toquei… A pele é uma obra de arte, deslizar nela é como um arco num cello, no violino, mãos deslizando em teclas de piano. Barulhos de amor é uma orquestra sinfônica, uma sonata de Beethoven

Estou viajando na maionese, faço muito disso, mas eu não me importo se faz sentido ou não. Vivemos em um mundo de opiniões e visões diferentes, e é isso que o torna tão belo. Essas nuances gritantes, uma sinestesia desvairada. Eu vejo cores em cheiros, notas musicais em palavras. Talvez eu seja louca, mas essa loucura é o que me move, queria eu, sair com camisa de força por aí, descabelada, com um cigarro de canto de lábios, e uma flor no canto da orelha. Sairia cantando Beatles em alto e bom som, declamaria a “Balada do Louco”, misturada com “Lucy in the sky with diamonds“. Cantaria uma canção para meu Amor, mas eu não sei cantar, eu tento, mas eu não sei. Cantei em coral por dois anos, em vários idiomas, mas eu juro, eu não sei cantar e acho minha voz um lixo. Mas creio que sei escrever, e é isso que eu faço, e pode ser que meu Amor não me leia mais, mas, sinceramente, foda-se. Eu tentei, posso ser destruída, mas nunca serei derrotada. Estou na deriva, balançando em alto mar. Levo meu Amor no peito, falo dele para as gaivotas, e para peixes voadores. Não posso prever minha sorte, nem a falta dela. Eu corto minhas mãos na linha de pesca, eu falo sozinha, tenho poucos amigos, mas ótimos e eternos amigos. Eu me deito, sozinha, minha cama não é feita de jornais, mas eu nunca desisti, ando de pés descalços num caminho de espinhos, cheio de rosas, sangue e emoção, mas pra suportar minha dor, penso em meu caminho como cheio de areia quase branca e fofa, e vejo lindos leões dourados andando sobre ela. Eles olham para o horizonte, imponentes. De vez em quando soltam um rugido, e da minha cabaninha eu olho pela janela e solto um sorriso tímido.

Da minha janela, estou sempre escrevendo…

Pássaro.

“Essa é a última canção que você irá cantar…
Segurei-o de cabeça pra baixo, quebrei seu pescoço
Ensinei-lhe uma lição que ele jamais esqueceria”

Queria sair por aí, com uma mochila nas costas, andar sem rumo, sem sentir o peso da saudade. Talvez nunca mais voltar. É um grito que escorre por aí nas ruínas do alter ego. Como um cão sem dono, vagando pelas ruas, sem rumo, talvez esperando alguém para acolher. Queria também ser como uma andorinha, sair por aí, voando, mas com o risco de ser um pássaro devorado por gato faminto ou por pura brincadeira de extinto, apenas um novelo de lã que sente dor. Gatos brincam com a comida, mas sem necessariamente querer devorá-la. Já vi um gato matar uma andorinha por puro prazer, era um lindo gato siamês de olhos azuis. Ele brincava com a andorinha já morta pelas mordidas e arranhões. Carregava o pobre pássaro pra lá e pra cá como um troféu. Quando se cansou deixou a andorinha morta com tripas expostas no gramado do condomínio. Eu não pude fazer nada, apenas lamentar, e na minha curiosidade de criança observar o gato com sua brincadeira sádica. E o sadismo também existe com os homens. Nas guerras matavam por pura diversão. Homens, mulheres e crianças, enfileirados de frente pra uma vala a céu aberto. Mãos nas costas e gritos de misericórdia. Olhavam para baixo e apenas o tiro e pedaços de miolos espalhados. Os soldados apenas os chutavam dentro das valas. Se não fossem executados, morreriam de fome, não havia ali meio termo, não havia tempo, não existia nada ali, apenas o ceifeiro invisível esperando recolher as almas que muitas vezes devem ter fugido, vagando até hoje por memoriais tristes e hipócritas. Se eu fosse um pássaro, eu não queria ser um da época de guerras, eu não sobreviveria ao som estridente de tiros e bombardeios. Teria minha alma de pássaro fraturada, dizem por aí que animais são mais puros e “humanos”, mas eu me lembro do gato sádico, e havia um brilho cruel e inquietante naqueles olhos azuis de felino. Eu poderia ser o seu jantar, se eu fosse uma andorinha.

Hurricane Drunk.

“Eu vou sair, Eu vou beber até a morte”

Acordou pela manhã fria e preguiçosa com a tal dor de cabeça dos infernos. Apesar do frio, raios tímidos de sol mostravam-se lá fora, mas o vento que entrou pela persiana da janela a dizia que era para se agasalhar. Foi como a voz da mãe, que na sua adolescência ficava gritando da sola da porta que se ela não levasse um agasalho, iria pegar friagem. Nunca escutava a mãe, odiava coisas que a apertavam, preferia passar um bocado de frio, do que sair toda coberta por aí. Inverno era seu terror, sentia-se numa pressão ao qual não escaparia. Roupas grossas de inverno cobrindo-lhe o corpo, não gostava daquilo, mas não tinha como fugir, na época de adolescente a desculpa de conhaque com limão e mel não funcionava, e quando funcionava a mãe a repreendia, discussões e mais discussões e a garrafa de conhaque da bolsa espatifada no chão da cozinha, sua mãe sempre fazia isso e a fazia limpar os cacos no chão da cozinha. O não conformismo da mãe a fez se rebelar mais, e ali, olhando para a janela do apartamento que era de sua mãe, antes dela morrer atropelada na avenida por um bêbado suicida na contramão. Denise tinha 35 anos, maços de cigarros vazios na beirada da cama e garrafas vazias pelo apartamento, dividindo espaço com o ateliê ao qual levava a vida.

Quando completou a maioridade, era responsável por si, sua mãe não poderia atirar as garrafas aonde bem ela queria. Ela trabalhava desde os 15 numa loja de discos, fumava e bebia o dia inteiro, mas levava o dinheiro pra casa. Tinha o sonho de entrar para a universidade, queria fazer artes visuais. Tinha um namorado, ele fazia tatuagens nela de graça, e foi internado três vezes para reabilitação. Entrou para o mundo do crack e matou a avó com cadeiradas porque a avó não quis lhe dar dinheiro. Ela ainda ficou com ele, visitando-o na prisão, até ele se enforcar na cela. Enterrado numa cova simples, apenas Denise e a Mãe foram ao enterro. Um dia, Denise chegou fumando charuto cubano de canto de boca e com os dois braços cobertos de tatuagens. Sua mãe apenas olhou, com um olhar de reprovação. Ela tinha completado 21 anos na noite anterior, não comemorou com a mãe. O silêncio da mãe, sepulcral. Denise estava na cozinha, cheirando a álcool, cigarros, charutos e suor, preparando café, para curar a ressaca. As únicas palavras de sua mãe foram “Tem comida na geladeira, precisa comer… Estás magra demais… Comprei bolo, estava esperando você chegar, para cortarmos, como nos velhos tempos. Seu presente está no quarto.” Tendo dito isso, foi para o quarto, com sua xícara de chá de erva cidreira. E a mãe de Denise passava os dias assim, com a aposentadoria do marido, fazendo artesanato, trancada no quarto, entupia-se de Rivotril, Fluoxetina. Tentou ensinar a filha a bordar, mas Denise carregava dentro dela uma rebeldia, e dizia que mulheres modernas não têm de saber disso e que a arte feminina deveria fugir de rótulos, mulher não sabe apenas bordar, ela, Denise não sabia bordar, mas pintava retratos eróticos, participava de orgias e as retratava com grafite e a ajuda de esfuminho e borracha macia. Denise chegou ao quarto e estava em cima de sua cama uma maleta cheia de pincéis e tintas. Havia um bloco de papéis e dez telas de pintura. Apoiado na parede estava um cavalete de pintura em madeira nobre. Sentiu que mesmo sua mãe indo contra a maré de ideologias que ela carregava, de alguma forma a mãe acreditava nela, mesmo nos momentos em que chegava bêbada e dormia até o dia seguinte. Não se esquece do dia que sua mãe a jogou debaixo do chuveiro e viu todas as tatuagens antes escondidas por camisetas escuras. Não falou nada, apenas balançou a cabeça, indignada. A fez tomar várias xícaras de chá, e dormiu ao lado dela a noite inteira. Sua mãe achava o tempo todo que ela estava doente, e a fazia comer, Denise obedecia, mas sumia durante semanas e até meses, mas sempre ligava para a mãe dizendo que estava tudo bem. E as duas conviviam assim, debaixo do teto do pequeno apartamento. A mãe, viciada em chás, tricô, novelas e antidepressivos… Denise em álcool, cigarros e arte. Ficavam em silêncio, era mais suportável. O Amor entre elas, alcoolizado e depressivo. Estava fria aquela manhã de lembranças, Denise precisava comprar cigarros e comida para o gato e a iguana que estavam em algum lugar do apartamento. Foi para a rua com o suéter de tricô feito pela mãe. Era sua forma de pensar e estar com ela.

Jardim de Infância.

Era de manhã, saiu pra fora no jardim, com os pés descalços, amassando a terra, tatu-bolas de jardim. A doçura da brisa das manhãs bagunçando os cabelos, e a certeza de um amor distante que a observava. Cantou com lábios quase fechados, uma canção que a emocionava, e uma lágrima escorreu, molhou a terra, onde sementes de flores amarelas que ela plantava todos os dias dormiam esperando a hora certa para germinarem. Todos os dias ela pega um regador e molha a beleza com olhos de devoção. Coração quebrado, cabelos cortados, uma Força despretensiosa, sincera, no peito um coração de vitral, colorido intenso. Queria ela dizer que o ama todos os dias, mas sua timidez desajeitada a faz emudecer, por isso ela canta baixinho, e crê ela, que o seu sussurro chegue aos ouvidos dele, o seu Amor, como anjos zombeteiros numa capela abandonada no deserto. E corre, pelo jardim, com seu vestido branco manchado de amarelo, lábios de café, para combater a insônia que tanto a enlouqueceu. E numa multidão de palavras ditas e não ditas, a falta de coragem não a impele de acreditar em dias que ainda nascerão sendo eles chuvosos ou iluminados por infernais raios de sol. E ela continuou agachada no jardim, sujando as mãos de terra, vendo pássaros brincar nas poças que se formavam ao chão. Sujou os pés de barro, e isso era bom, era puro, era ela voltando às origens, desprotegida de sapatos que a protegem de viver. Sujar-se é viver, sentir, no mais íntimo das verdades, quem vive sempre no que é limpo, não conheceu toda a intensidade de viver. Quando ela tiver filhos, permitirá que eles construam castelos, brinquem descalços no jardim, deitem na grama, pulem nas poças. As crianças andam limpas demais, aquela falsa convicção que é saudável viver longe da sujeira, aquelas crianças com roupas e sapatos impecáveis, olhos tristes ao verem as crianças sujas com as mãos de terra, crianças de apartamento, criadas a brinquedos eletrônicos e bonecos de roupas lavadas toda a semana. Sorrisos eletrônicos, falsos, por dentro uma certeza, uma vazio. Sim, crianças sentem tanto o vazio quanto nós os adultos, e naquele jardim, enquanto plantava uma flor, ela agradeceu por ter sido uma criança imunda, e não ter tido apenas um sorriso eletrônico estampado no rosto.

Prosa de um sábado chuvoso.

Contra o céu de amanhã, vamos todos padecer de cansaço. Estou deitando sozinha em um gramado macio, vendo as nuvens passearem pelo céu, dou a cada uma delas uma forma de algodão doce. Eu gostaria de poder pegar e sentir a doçura de cada uma das formas tão abstratas que vejo neste céu que entoa um poema desmistificado perante meus olhos. Queria um beijo sincero, enquanto as nuvens de algodão dão seus sorrisos de Salvador Dali, um surrealismo, nessas horas que eu te adoro, e que eu apenas acho que cairemos, e como crianças feridas perante as peças de tragédias, dramas e comédias, nós vamos correr para nossos esconderijos, e cuidarmos um do outro, apenas com nossos sorrisos abstratos, nossos lábios se tocando na graça das horas… Horas melancólicas,  úmidas… Na penumbra, seremos dois adultos, com coração de criança, me dê um sorriso teu apenas com os olhos.
E eu penso, em todo o Amor que nos cerca, como humanos errantes, caminhando em trilhas tortuosas, cheias de espinhos, mas com sua beleza, escondida, em cada momento, no abraço, no sono, em nosso cansaço. E eu pergunto-me se ficaremos bem, com a humanidade abstraindo sentimentos, procurando uma glória talvez inexistente, em dias e coisas vazias, caminhando sem rumo, com olhos cegos, apenas um carro de última geração na garagem, uma televisão de polegadas e definições cada vez maiores. Enviamos glórias, uma oração, mãos juntas, os anos trazendo lembranças no galope da saudade, um sentimento aflito, oras tão devagar. Já contei por horas perdidas o quanto a saudade fez-me escrever linhas e linhas de palavras insones e por vezes apenas um eco entre eu e meu interlocutor, uma mensagem que apenas, na sutileza dos acontecimentos, será capaz de entender.

Somos todos, talvez, pobres tolos sem rumo, quem somos nós, meu Doce Amor, caminhando devagar, tão pequenos, julgando aqueles que se deixam molhar na tempestade por puro orgulho. Por isso eu vos digo, vamos esperar no fogo de nosso sentimento, coerência, incoerência, enfim, por tudo aquilo que nos move, em passos aturdidos, pobres dançarinos, passos desajeitados, mas tão belos em nossas tentativas de compreender a música enlouquecedora que ecoa, muitas vezes, sem querer. Vamos beber, enquanto nossa partida demora, a chuva está caindo lá fora, serena, molhando os carros, pessoas, cães abandonados. Fecho os olhos, e penso que as nuvens negras do céu nunca atingirão o meu chão, e os relâmpagos que trazem depois de alguns segundos, o estardalhaço de um trovão, eu penso apenas em alguma verdade perdida há alguns segundos, minutos atrás. E nós, Amor doce, estaremos acordados quando nossas almas questionarem a carruagem do Tempo, com todas as suas perguntas sem respostas?

Seremos crianças acordadas, com medo do escuro, minha doce criança malcriada, quando você se cala,  eu penso nos momentos em que cairá no chão, aturdido, e dará um suspiro, de satisfação, por todo esforço que valeu a pena. E eu cuido de você, toda noite, todos os dias, no silêncio quase descontente, minha distância de poucas milhas, distância…

Olho para as estrelas procurando respostas em um brilho do passado, talvez um brilho ao qual nem exista mais, teus olhos tão distantes, mas que me deixam tão completa, queimam vestígios de toda rabugice que eu levo neste meu coração. Os sinos da igreja tocando uma velha canção, gosto dos sinos tocando, da tarde caindo, de meus beijos de despedida. Eu poderia te cobrir com beijos de conhaque ou outra coisa que lhe aquecesse, sua beleza insólita, me apertando nos braços, não me deixe partir, dê-me um milímetro de teu sorriso desconcertante, pois eu ando na contramão, sigo minha rota de olhos fechados, por isso, segure minha mão quando me ver atravessar a rua, pois eu atravesso minhas emoções do mesma forma que eu sinto as areias do tempo escorrendo entre meus dedos, e saiba minha doce criança, que eu ando ao final de uma longa avenida, e nos meus passos de mulher com olhos oblíquos, você é sempre suave e persistente em minha memória. Doce criança, eu te adoro…Doce criança, lembre-se disso.

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