Estava quase anoitecendo, começava no céu aquelas cores indecisas, um misto de claro-escuro, céu em tom roxo-alaranjado e o jasmineiro da esposa todo em flor. Lembrou-se de que quando criança, gostava de sentar-se na varanda com o avô e escutar suas histórias. Todas elas começavam com “há muito tempo atrás”. Perguntava-se qual a diferença disso com o comum “era uma vez”. Pode ser que o “era uma vez” referia-se a algo que nunca aconteceu, apenas uma lenda. As histórias de vovô eram de verdade. Sultões impiedosos, monstros, meninos com poderes mágicos, pássaros e mulheres donas de uma beleza inquietante. Eram essas histórias que impermeavam o seu imaginário de garoto. Hoje quase não houve mais histórias, ou estórias… que seja! Vovô morreu e as crianças não ligam mais para “essas coisas”. A história que ele mais gostava era de como o vovô conheceu a vovó. Fazia parte das histórias das mulheres de beleza inquietante. Toda vez que ele contava esta história ele sempre colocava elementos de coincidências, talvez, para tornar tudo mais poético, ou seria uma verdade carregada de poesia?
– No dia em que eu beijei sua avó pela primeira vez, a flor de minha mãe abriu. Ela nunca tinha florescido.
-Quando eu disse para sua avó que eu amava, uma estrela cadente passou no céu, e eu fiz um pedido. E ele se realizou…
Foi há muito tempo atrás e ele conseguia reconstruir os detalhes como se fosse um filme em sua cabeça. Seu avô tinha mostrado velhas fotografias de sua avó Martha, ainda quando jovem. Conheceu ela com 23 anos e ela tinha 15 anos. Andava com os cabelos escuros presos em uma trança, e usava impecáveis vestidos e linho e seda que iam até o joelho.
-Eu vi sua avó pela primeira vez quando eu comecei a entregar o jornal para o bairro. Trabalhava numa banca de um velho amigo da família. Passava nas casas interessadas, arremessando os jornais, que ficavam dentro de um cesto na bicicleta. Sua avó ia para a escola todas as manhãs, a casa dela ficava no alto de uma ladeira. Todos os dias, sete horas em ponto, sua avó saia de casa. Eu eu, admirado olhava ela andando, indo para a escola. A trança dela balançando de um lado para o outro,cuja ponta terminava em uma fita de cetim branco ou vermelho. E aquelas panturrilhas, a canela fina, o barulho do salto ao tocar no chão. Eu amava ver aquele movimento, aquele som, ela andando e a melodia do assobio de uma música. Às vezes ela cantarolava. Nos primeiros dias ela nem ligava pra mim, passei semanas fazendo aquele ritual.
Engraçado, pensou ele… Apaixonou-se pelas canelas. Não foi uma bunda, não foram peitos. Seu avô gostava das canelas e meia panturrilha, que aparecia a partir de onde o vestido acabava.
-Um dia, o tio de sua avó morreu, era amigo de meu pai. Tive a oportunidade de dar uma carona pra ela, ela conversou um pouco comigo, mas bem pouco, estava transtornada e cheirando a jasmim. Hoje, toda vez que eu vou ao jardim de sua mãe, e vejo o jasmineiro em flor, eu lembro da minha velha. São os pequenos detalhes sabe?
– Detalhes? Não… Eu ainda não sei, o que são detalhes?
– Um dia, quando crescer, vai ouvir falar de um tal de Flaubert. Tem uma frase que atribuem a ele, “Alguns detalhes se desvaneceram, mas a saudade permaneceu”… Do que você sente saudades?
-Sinto saudades do bolo de cenoura da vovó, feitos em dias de chuva. Nós comíamos na varanda, vendo a chuva cair. E nós contávamos os segundos, depois que um raio caía. E depois Brrrrrrrr! Trovão. Às vezes eu me assustava e vovó me abraçava. Mas, o que isso tem a ver com detalhes? O que é desvaneceram?
– Você acabou de responder sutilmente o que é detalhe. Desvaneceram vem de desvanecer… Tá vendo o céu agora? Está entardecendo, o sol, está sumindo? Entendeu?
-Entendi… É como o chá de cidreira da vovó!
-Por que?
– Quando ela preparava, o cheiro ficava na casa, mas depois, conforme o chá esfriava, o cheiro desaparecia.
-Isso mesmo… Eu não me recordo de muitos detalhes do dia em que eu conheci a sua avó. Eu não me lembro mais de muitas coisas, mas este entre outros detalhes, construíram uma saudade… Mais tarde, você entenderá.
-Mais tarde quando vovô? Amanhã?
-Sim, amanhã, depois de muitos entardeceres, como este.
E era mais um entardecer, depois de muitos. Foi um detalhe como esse, que o fez sentir saudades.