Tentei encontrar abrigo na ponta dos dedos. A língua salivante no céu da boca enquanto a noite de verão tece seus desejos e infortúnios e a fome e loucura assombra-me entre as pernas. Tento, talvez em vão, encontrar o momento de sobriedade na realidade além daquele quarto quente cujo ventilador exausto espalha o vento quente e viciado. Na penumbra deste quarto pestilento de desejos não realizados e versos mal construídos e sem compromisso, vejo minhas fotografias de criança penduradas na parede, próximas ao espelho. Aquela menininha banguela, pirracenta e cheia de ironia me dá um sorriso envolto de sarcasmo. Entro então em uma prosa em primeira pessoa, uma lembrança de um tempo em que a vida consistia em ficar em cima do telhado de casa, era a vida vista de cima, sob o olhar curioso de uma criança cheia de perguntas e que na maior parte do tempo, passava sozinha, tentando entender algumas metáforas que surgiam naquele pequeno mundinho que a cercava. Aquela criança que me encarava naquele papel antigo de fotografia, achava que beijos apaixonados era nojento. A saliva quente se misturando nas bocas alheias não era o que hoje é pra mim uma sinfonia gostosa escorrendo em baixo ventre. Diante de fantasias e pensamentos eróticos, uma banho frio nesta noite pestilenta traria-me novamente a razão e a sanidade. Voltei a lembrar da enorme ratazana que eu e os vizinhos encontramos no quintal… Um café me faria bem agora. Um café forte, quente e denso…
Eu perdi o alvorecer desses dias tristes de inverno e a neblina indecorosa
Mal conseguia aceitar meus olhos lacrimosos diante de meu desconcerto
Esperei por dias melhores durante amanheceres estoicos, sonhei… Outrora…
Outrora caminhei por onde as folhas indecisas e coloridas do outono agonizaram
Rasguei papéis amarelados com poemas manuscritos e malsucedidos, puro e sádico prazer
Acariciei milhões de grãos de areia dispersos em sonhos ásperos e úmidos de desejo
Sonhei com teus cabelos ao vento, teus passos indecentes embalados sem razão
Mas, tudo foi embora na fração de segundos naquela noite indecente, ainda era Verão
Era verão, outrora sonhei com teus lábios tremendo de frio e almejei a razão e a cura
Silenciei, minha loucura estendeu o chapéu e o brilho de teus olhos. Enlouqueci.
Outrora relembrei aquela ventania com tímidas luzes amarelas no horizonte
Lembranças… Agonizei na maresia gélida, como um animal perdido com fome
Disperso na noite a sentir frio, desprotegido, estrofes sem metáforas e métricas
Poderia ter escutado tua voz, seria como uma canção improvisada e talvez desafinada
Qual foi a última vez que eu escutei teu silêncio falar alto? Esqueci-me, irônica…
Apenas escuto o meu orgulho gritar minha sanidade ao longe, desejo cálido…
Um eco insano eu posso escutar ao longe, nas ondas do mar… Palavras cantadas
Jogadas ao vento, maresia ensolarada que me traz as carícias de lembranças
Lembranças que me atormentam nas úmidas noites que tanto desejei indecorosa
Tuas reticências embaladas à vácuo, uma sutil entrega de suas tímidas palavras.
O Amor em um campo de batalha, moinhos de vento são sempre dragões
Derrotas me trouxeram toda a minha razão já perdida em carícias de silêncio
Trouxeram meu ego enterrado debaixo da areia trazida pelo Tempo desajeitado
A saudade ainda permanece numa caixa obscura, trancada, surda e mentirosa
Meu sol de janeiro a abril desvaneceu como as últimas estações de meu amor
No próximo verão estarei a pensar na chuva rápida que me acalma, um desamor
Dilúvio a escorrer em minha janela, teu cheiro esmaecido na memória, amor…
Amor que eu trago, uma construção inacabada, um idioma sem tradução,
Uma flor seca na janela pedindo gotas tímidas que escorrem pelos meus dedos
O Amor em um campo de batalha, agonizando e desejando injeções de morfina.
A verdade tão inconveniente de teus pensamentos de instantes mal traduzidos
Caiu em meus ombros já tão pesados, talvez pelas tuas dores sem respostas
Sobrou em mim um resquício de minha natureza crédula e petulante, desnecessária?
Adormeci embaixo daquela árvore onde meu dia nasceu duas vezes, ensolarado
Em tons cinzentos, estendo meu desapego, sou incoerente diante tua distância
A saudade é apenas um eco de uma mentira que já foi uma verdade coerente
Encontrei em velhos poemas as mentiras confortáveis que me pertencem
Outrora eu almejei teus olhos insanos de tempestade e tua culpa, escárnio
Culpa… Culpa de se sentir calado perante os dias chuvosos, silêncio, escárnio…
Descansa alma intensa… Na calada da noite a saudade é apenas uma ironia… Escárnio?
Ironia… Estrelas provavelmente já mortas
Mas o brilho delas ainda nos pertence…
Ironia?
Não…
Saudade…
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Nihil sub sole novi – expressão em latim que significa: “Não há nada de novo debaixo do sol”.
As horas passam, sangue correndo nas tuas veias e artérias como um rio calmo em dia de inverno. E tem aquele frio, lá dentro, arrepiando a pele, apertando o peito, uma pressão, como um súcubo ou incubus sentado no peito, olhando-te enquanto dorme. É preciso ter nervos de aço para entender o além de todas as coisas. É preciso astúcia para entender as notas de uma música, e se não conhecê-las, tenha a astúcia para saber senti-las. É necessário o medo, a solidão, a saudade… É necessário um pouco de dor para nos tornarmos fortes, é preciso se encolher na hora de um pesadelo, para abraçarmos a nós mesmos. Que falta de amor próprio, queremos tanto o abraço alheio, mas nós mesmos não nos abraçamos todos os dias. Dias atrás vi em um muro, uma pichação: “Você já amou hoje?”. Já perdi as contas de quantas vezes eu disse não. Já perdi as contas dos dias que o sol não me dá nenhum sorriso. Ele é apenas algo que me esquenta, que aparece todas as manhãs, e no auge das três horas da tarde, ele invade minha sala e me dá aquela vontade de ficar nua no chão, com a luz do sol envolvendo minha pele e tirando aquela tristeza que me entope os poros. É quando eu permito sua luz me abraçar, é como o calor de um abraço. Entende? Não tenho o abraço da pessoa que eu amo, mas eu posso de alguma forma me permitir de usar uma metáfora para representar o calor de seu abraço, mesmo que seja em um dia frio. Eu amo o poder das palavras e toda a luxúria delas transando entre si. Adoro o calor, o amor e o desamor das metáforas. Seria bom se as pessoas fossem como as metáforas… Seria bom…
Seu eu morrer muito novo, ouçam isto: Nunca fui senão uma criança que brincava. (Alberto Caeiro)
Eu me lembro como se fosse hoje, a rua cheia de crianças. A velha rua sem saída que tinha a poucos passos de minha casa. Naquela época, ao menos, assim eu penso, analisando os dias de hoje, cerca de 18 anos depois, aqueles tempos era seguro brincar nas ruas, mesmo aquelas que tinham saída. Pode ser que no meu olhar de criança, eu não enxergava a maldade. Não existe nada mais belo que o olhar inocente de uma criança. Existe apenas a consciência do querer brincar pra sempre, de nossas mães ou aqueles que cuidam de nós, de nunca alcançarem o portão de casa e nos chamar porque estava entardecendo. Talvez este fosse o momento mais triste do dia. Quando eu era criança, eu não almejava o entardecer, quando ele chegava eu sabia de alguma forma muito simplista de que teria de me despedir de outras crianças e entrar para casa. Hoje, adulta, eu almejo os entardeceres, pois sei que minha jornada de trabalho está chegando ao fim e que eu posso chegar em casa, tomar um banho e relaxar. O mais engraçado é que quando éramos crianças, queríamos ser adultos. Esta é a coisa mais besta que uma criança possa querer. Eu falo aos meus irmãos menores que eles nunca devem ter pressa de querer ser adultos.
E a rua sem saída e demais ruas ao entorno era um palco de sorrisos e brincadeiras. Naquela época as crianças ainda fabricavam suas próprias pipas, e corriam para buscar as que caiam no céu. Dias atrás fui num churrasco com os amigos em um bairro da periferia. Lá pude ver as pipas no céu. Me trouxe uma lembrança doce dos meus tempos de criança. Estávamos na calçada com nossas “bebidas de adulto” e cigarros que já não eram de chocolate. Um menino desceu correndo atrás da pipa que foi derrotada. E quando ele subiu novamente e passou por nós, parabenizamos a criança: “Ehhhhhhhhhhhh!” e então o menino abriu um sorriso e levantou a pipa em sinal de vitória. Fazia tanto tempo que eu não via isso, e então pensei o quanto estou ficando velha ranzinza em um bairro de metrópole onde as crianças das famílias que existem por aqui brincam trancafiadas em casa com seus videogames, tablets, carrinhos de controle remoto. Não existem mais brincadeiras na rua. Não vejo mais carrinhos de rolimã, meninos soltando pião, rodinha de crianças jogando bafo ou bolinhas de gude. Como costumo dizer, as brincadeiras hoje se transmutam em divertimentos eletrônicos sem nenhum contato com o que existe real. Antes eu brincava na terra. Hoje uma criança dificilmente brinca na terra, talvez a única terra que elas “tocam” são as dos canteiros do Farmville.
Lembro-me que eu sentava na soleira da calçada e via os meninos descendo a mil nos carrinhos de rolimã. Às vezes um se ralava todo e a mãe saia correndo preocupada. Ficavam alguns dias de castigo e depois voltava, com um carrinho de rolimã novo. E não era só isso que tinha pelas ruas. Na rua de casa, tinham jogos de amarelinha desenhados no asfalto. Eu me lembro de que nós roubávamos giz colorido da escola para poder desenhá-las no chão. O céu era feito com giz azul, o inferno com giz vermelho, e os números, obviamente com giz amarelo. E pegávamos pedras da rua para jogar. Lembro-me o quanto era difícil acertar o número 10, mas as crianças que chegavam até o final da amarelinha, tinham o dia ganho. E as tardes semanais e finais de semana eram recheadas de pega-pega, pique-esconde, pula corda… Eu era muito ruim em pular corda. Ficava frustrada por ser desengonçada. Mas mandava bem nos patins. Um dia peguei uma ladeira e me arrebentei porque uma pedra apareceu no meio do caminho, e não deu tempo de desviar, foi a única vez que eu me arrebentei nos patins. Eu pulava, fazia manobras, coisa de criança doida mesmo. Carrego em meus joelhos e cotovelos as marcas da queda. No dia chorei, hoje dou risada. Lembro-me de que naquela época merthiolate tinha álcool. E ele era o terror das crianças travessas, o terror dos que andavam de bicicleta, patins e rolimã. Jogar futebol e chutar o chão ao invés da bola era lágrima certeira. Nada era mais terrível que o merthiolate, as crianças queriam voltar para suas casas com roupas imundas e pés sujos, mas não queriam voltar cedo e encarar aquele vidrinho daquele “negócio que ardia”.
Tinham as lendas que contavam para as crianças. Nunca me esqueço do homem do saco. O homem do saco era o terror para as crianças cujos pais as educavam para ficarem sempre por perto de casa ou dos pais durante os passeios. Um dia, fui à feira com minha mãe e me perdi dela para comprar pastel. Achei que fosse encontrá-la e me enganei. Então fiquei esperando na banca de pastel. Ela me encontrou e me deu o sermão do velho do saco. Quando chegamos ao portão de casa, um velho com um saco nas costas estava descendo a rua, e ele olhou pra mim e disse: “Que criança linda! Quer ir embora comigo?”. Então corri pra dentro de casa, e fiquei anos acreditando que o homem do saco existia, e tinha certo medo de ir pra escola sozinha e encontrar o velho, e ele me pegar à força e colocar dentro do saco. Eu acreditava mais no velho do saco do que em papai noel. Sempre soube que o papai noel era meu tio, mas o homem do saco não, ele existia e não era o papai noel, era um homem velho que sequestrava as crianças e depois as comia ou vendia.
Além do velho do saco, tinha o velho do muro… O velho do muro era um tio de um menininho que estudava na mesma escola que eu. Ele sempre ficava até altas horas no muro da casa dele, apenas com a cabeça aparecendo. Era um muro alto. Fiquei sabendo da real causa da aparência dele, anos depois, quando adulta. Eu tinha medo dele. Ele era um senhor de idade muito pálido, com covas profundas no rosto e sem nenhum cabelo, completamente careca. Quando a noite chegava e nas vezes que iá com meu irmão comprar tortuguitas na vendinha, ele estava lá, espiando a vida por cima do muro. E as luzes das luminárias de rua davam mais ênfase a palidez dele. E eu sempre dizia que não gostava do velho do muro. Um dia minha mãe me perguntava por que eu não gostava dele. Eu respondi a ela que era porque nunca tinha visto uma expressão tão triste em alguém. Eu não conhecia muito a tristeza até os meus 8 anos, quando tudo era teoricamente normal em minha vida. Aquele velho foi meu primeiro encontro com a expressão de tristeza no rosto de alguém. Dos meus oito anos em diante, descobri a tristeza em meu próprio olhar. Mas daí já é uma longa e talvez desnecessária história, ainda com dores não curadas, talvez alguns meses de terapia me ajudem. Mas só posso dizer que sei na pele o que é não saber conviver na mesma esfera de compreensão de uma criança.
Vocês dizem: “Cansa-nos ter de conviver com as crianças”. Tem razão. Vocês dizem ainda: “Cansa-nos porque precisamos descer ao seu nível de compreensão”. Descer. Rebaixar-se, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. Não é isso que nos cansa, e sim o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das crianças. Elevar-nos, subir, ficar nas pontas dos pés, estender a mão. Para não machucá-los. (Janusz Korczak)
Eu tive um namoradinho na infância. Eu inclusive já falei dele. Chamava-se André Luis. Era um menino que me escrevia cartinhas de amor com as canetas coloridas da irmãzinha. Já escrevi aqui também que um dia eu e ele encontramos uma pomba no chão, e ignorantes das certezas da vida, achávamos que ela “dormia” na calçada. Depois, descobrimos que era apenas uma pomba morta com vermes devorando as entranhas. Mas ela estava ali, no meio da calçada, como se tivesse feito um ninho. E eu me lembro daquele momento até hoje, e do cheiro das balas de doce de leite de Andre Luis, e do momento que eu chorava inconformada por causa de um pássaro morto, e ele simplesmente me deu a mão e fomos de mãos dadas até o portão de casa. Ele me deu um beijinho no rosto. Era um beijo melado, com cheiro e sabor de doce de leite. Hoje, quando vejo aquelas balas quadradas de doce de leite, lembro-me de André Luis, e seu cabelo loiro tigelinha. Ele tinha os olhos quase claros, de um castanho esverdeado. Era uma linda criança. Eu acho que eu era uma criança bonita também, os meninos do jardim me davam flores, mas André Luis foi o único a quem eu andei de mãos dadas naquela época. E o mais engraçado é que eu via os adultos se beijando na boca e tinha nojo daquilo. E comentava com André que ele não faria aquilo. E ele dizia: “Blergh, não… É nojento”. E ficávamos somente nos beijinhos de despedida e nas cartas inocentes com letras tortas, reféns de cadernos de caligrafia. Não posso dizer, (ou posso?), que eu vivenciei um amor na sua esfera mais pura, mas não sei dizer, 17 anos depois, se aquilo foi amor. Foi uma história de infância, cheia de timidez e risinhos. Era como um amigo com algo a mais. Eu e André Luis dividíamos o lanche, contávamos nossos segredos um ao outro, e, sobretudo, andávamos de mãos dadas, e eu acreditava que por ele estar comigo, estaríamos protegidos do homem do saco. Quando descia a rua de mãos dadas com André, eu nem me lembrava do “Velho do Muro” e sua fisionomia triste. Descobri muitos anos depois que aquele velho na verdade não era um velho. Era um homem de quarenta e poucos anos que sofria de câncer. Quando ele morreu, eu em minha consciência de criança, eu achava apenas que ele tinha enjoado de ficar ali. Descobri que as coisas e pessoas morrem quando vi a pomba morta no chão. E chorei dias seguidos com medo de perder alguém próximo. Os adultos me confortavam dizendo que as pessoas que morrem vão para um lugar bonito, onde não existia tristeza e demais coisas ruins. No ano passado confortei meu irmão menor que chorou dias e dias a morte de um amigo de minha família que vendia pastel na rodoviária e que por costume íamos até o trailer dele toda sexta-feira. Meu irmãozinho aguardava ansiosamente a “Sexta-feira do pastel”. E teve um dia que a pastelaria nunca mais abriu. O Senhor dos Pastéis foi executado cruelmente. Amarrado, colocaram-no de joelhos e deram-lhe um tiro na nuca. Tudo por causa de uma furadeira, uma televisão e cerca de quinhentos reais. E a notícia correu quatro cantos. Meu irmão viu a foto tirada ao longe do corpo sem vida do seu amigo pasteleiro jogado no canavial. Foi vítima do sensacionalismo barato. Ele chorou nos meus ombros. A Morte pra ele foi mais traumática. O meu primeiro encontro com ela foi através de um pássaro no meio da calçada, mas ele passou para um degrau filosófico muito mais pesado que aquele que eu passei. Ele em tenra idade passou a questionar quanto vale a vida… E ficava triste pelos cantos, até que o Tempo lhe curou as dores…
Quando eu era menina, e ficava triste pelos cantos, eu subia no telhado de casa. A vida era incrível lá em cima. Isso passou a ser corriqueiro na época em que eu me tornei uma criança triste, fragilizada emocionalmente. Era em cima do telhado que eu encontrava minha paz que tanto me fazia falta. Eu era feliz quando meu irmão Ricardo ia me visitar, e nós íamos ao cinema, escutávamos música, ou quando ele me levava para brincar em piscinas de bolinhas ou carrinhos bate-bate. Ele sabia que eu passei a ser uma criança sozinha em um mundo de adultos estressados, deprimidos e alguns deles, opressores. Quando ele não estava lá, eu ficava no telhado. Escondida, sim, escondida. Porque as pessoas passavam sempre olhando em frente ou olhando para o chão. Nenhuma delas olhava pra cima para ver o quanto o céu estava bonito, ou o bem-te-vi que sempre cantava em galhos nas árvores da minha rua. Outra alegria que eu tinha era levar minhas cachorras para passear. Ver a alegria delas cheirando pequenos canteiros e chegarem cansadas em casa era uma forma de eu ficar feliz. Um dia minha cadela Gabi, já velhinha, talvez ciente de sua morte, fugiu. Dizem que os cães sabem quando vão morrer, e alguns deles se afastam dos donos para evitar que eles sofram. Todos os meus bichinhos sabiam quando eu estava magoada. Eles deitavam ao meu lado e não saiam, e os mais novos faziam graça para tentar me fazer rir. E de certa forma, funcionava. Hoje, sinto falta de ter um cão. O amor dos animais é incondicional. Um amigo me disse que eles são mais humanos do que aqueles que recebem essa alcunha. Falam que o Homem é ser-HUMANO… Tenho minhas dúvidas. A criança sim, esta é um ser humano. Um ser em perfeição, tão incompreendido. Não penso em ter filhos, não agora. Penso que o mundo é cruel demais para seres tão perfeitos conviverem. E então eu pensei se ainda podemos oferecer para as crianças um mundo mais bonito. Mas o problema não está em nós, está ao redor. O que podemos fazer? Mantê-las em redoma de vidro? No momento sou egoísta o suficiente para apenas eu sofrer com as dores e intempéries do mundo, a ponto de querer ter de volta a inocência que eu tinha anos atrás. Eu era apenas uma menininha banguela, magrela que sorria brincando em balanços. Muitas vezes eu sonho com essa época, com as crianças que eu brincava, com André Luis… Um lapso momentâneo daquilo que perdemos ao passar dos tempos. Mas quando eu acordo, vejo que estou de volto para aquilo que corresponde à minha realidade. Hoje, não vejo mais crianças nas ruas. Não mais como antigamente… Não mais… Ser adulto é tão chato!
Lembro-me que eu usava polainas, sonhava em ser bailarina. Meu pai tinha me presenteado com um porta-joias que quando dava-se corda, a bailarina dançava. Então, eu sempre dava corda, e tentava fazer igual. Ao fim eu nunca me tornei bailarina, nem médica, nem toquei violino, nem astronauta… Não fui nada que eu sonhava quando criança. Mas eu sinto que essa menininha aí da foto nunca me abandonou…
Cansou o Pierrot a sorrir. Na verdade ele nunca sorriu, era uma pessoa triste, aos cantos, nas praças, nas praias, onde quer que fosse. Era completamente mergulhado no estigma de seu personagem da Commedia Dell’ Arte. Alegre antes com sua Colombina cheia de amores, a tristeza do desdém amargo em canto de boca. Cálidos beijos silenciosos, pintura desbotada. Sentado em uma cadeira na coxia de um teatro escuro, com um lenço nas mãos borrado de maquiagem improvisada. Amou a Colombina, mas ela nunca viu teu verdadeiro rosto. Sonhou com ela lambendo-lhe a face como um cão sem dono, e a sua língua era áspera com pontas afiadas, machucava a pele como uma navalha . Não havia nada de angelical, era tudo trágico, com pequenos demônios atentando-o em partes baixas. O seu amor era como os dramas do teatro. Desejou-a como as estrelas, mas elas nunca caem no céu, apenas perdem o combustível até morrer. O Pierrot perdia sua identidade, já não tinha mais no rosto toda a alegria pintada, era tristeza, parcialmente borrada. Ao lavar o rosto na pia cheia de tinta e cabelos, viu a água branca como cal. Com uma velha toalha retirou o que restou do personagem. Na frente daquele espelho já velho e embusteado, estava um homem inteiro, mas quebrado em milhões de cacos. Nunca vira o rosto de sua amada. Ela era apenas uma personagem embaixo de tantas cores, e ela nunca mostrou além daquilo. As cortinas se fechavam, o espetáculo acabava ali, ao final da apresentação.
Depois de uma noite de insônia, poucas horas de sono, e aquela sensação de resfriado chato querendo derrubar, acordei quase rouca, com voz estranha, que sumia em poucas palavras. Quase desmarquei a entrevista, mas não desisti: salto alto, camisa, meia fina e saia executiva. Sapato fino, de tom bordô em couro aveludado, cujo salto enganchava nas malditas calçadas de pedras soltas. E eu penso… Por quê dificultamos tanto? Tudo poderia ser mais simples. Eu me irritei com minha meia-calça. Passei em uma loja no meio do caminho, comprei outra, entrei no banheiro do estabelecimento e troquei minha neura por outra neura… Fiquei com medo de rasgar a meia de fio 15 em lycra, fato que realmente aconteceu, mas foi no portão de casa, quando a coroa do abacaxi que eu comprei encostou-se a minha meia. Quando fui trocar as sacolas de braço, escutei o barulho desesperador de fios rasgando. Olhei, dei risada. Pedreiros na espreita… Um naco de minha coxa branquela debaixo do rasgo seria normal e mais divertido se fosse à hora de um bom sexo, aquela coisa de desespero. Melhor uma meia rasgada em cima da cama pelas mãos de um homem do que pela coroa de abacaxi pérola comprado na promoção que estava azedo. Nada que um açúcar resolva. Devorei três fatias com requintes de crueldade e sadismo, sentada em minha cama, marcando trechos de “Cartas de um Escritor Solitário”, de Sam Savage. Joguei fora a meia, fiquei em mangas de camisa e adormeci. Não passei na entrevista, recebi um e-mail frustrante, mas sou forte, paciência! Terei outros momentos para rasgar meias por aí e dar risada de meu próprio medo. Pelo menos tenho algo divertido com tons de tragicomédia para contar. Adormeci esparramada na cama e sonhei com teus braços com veias e tendões aparentes de tua pele branca e combinando com meus tons embaixo de minha meia rasgada…
Mergulhada em pensamentos de trevas, perdida no meio de escuridão com os olhos vendados. Sentimento dúbio, no escuro sente os raios do sol queimarem os meus olhos, mas é uma luz que eu não encontro. Tateamos emoções em paredes de tijolos esfarelados, nossas mãos sujas de terra vermelha. Seu eu pudesse faria um desenho em teu rosto, ou rabiscaria um jogo da velha num chão de concreto ou na areia da praia. Deixaria você ganhar, eu era campeã de jogo da velha, e eu achava que sabia jogar xadrez. Quatro movimentos… Você olha e diz: Xeque! E então você me mata, e eu perdida em seus olhos de dilúvio fixos no tabuleiro e na tua malícia talvez sem querer. Sou uma garotinha, em jogadas desgovernadas, trêmulas e desajeitadas. Vejo meu rei aturdido… Já era! Meu reino foi teu em quatro movimentos. Na segunda partida, tento salvar minha rainha, e depois mato teu pastor safado com um pobre peão suicida, pois geralmente é o que me sobra… Peões suicidas. Jogada burra, péssima, eu diria. Mas o que eu posso fazer? Sem querer você me desfoca com seus olhos nas cores bicolores de luz e escuridão dos quadrados do tabuleiro. Chego ao meio do caminho com teus peões jogados na grama, rindo de minhas jogadas desajeitadas. Olho do teu lado e vejo minha cavalaria e alta sociedade agonizando pedindo para meu rei se entregar. Você sorri: Xeque-Mate!Eu me entrego… Meu reino é teu.
“Eu lembro da minha infância de um modo…Sabe, uma época mágica. Eu me lembro quando minha mãe me falou pela primeira vez sobre a morte. Minha bisavó havia acabado de morrer, e minha família toda estava na Flórida. Eu tinha uns três anos e meio. Eu estava no pátio dos fundos jogando e minha irmã estava me ensinando como usar a mangueira, de uma forma que você pudesse fazer um spray em direção ao sol, e então formar um arco-íris. Então eu estava fazendo isso, e através da nuvem de gotas eu podia ver minha avó. E ela estava ali, sorrindo pra mim. E eu fiquei ali, segurando a mangueira por um bom tempo e olhando para ela. Finalmente eu tirei o dedo do esguicho…Então larguei a mangueira, e ela desapareceu. Então entrei em casa e contei aos meus pais. Eles me deram uma bela palmada, dizendo que quando as pessoas morrem, nunca mais a vemos, e que eu imaginei aquilo tudo. Eu sabia que tinha visto, e estava muito feliz com isso. Mas sabe, nunca mais vi nada como aquilo desde então. Mas, não sei. Esse é o tipo de acontecimento que me faz ver como as coisas são ambíguas. Até mesmo a morte.”Jesse (Ethan Hawke)
Sobre o filme “Antes de Amanhecer”, retirado do site “Adoro Cinema”: Jesse (Ethan Hawke), um jovem americano, e Celine (Julie Delpy), uma estudante francesa, se encontram casualmente no trem para Viena e logo começam a conversar. Ele a convence a desembarcar em Viena e gradativamente vão se envolvendo em uma paixão crescente. Mas existe uma verdade inevitável: no dia seguinte ela irá para Paris e ele voltará ao Estados Unidos. Com isso, resta aos dois apaixonados aproveitar o máximo o pouco tempo que lhes resta.
Subimos montanhas, nos prendendo nas pedras, ora olhando para baixo
Ao respirar o ar de todas as manhã, nos sentimos tão pequenos,
Ante o sorriso de uma criança alegre nos braços da mãe,
Não existem surpresas que nos amedrontem, nesse mundo,
É apenas nossas mãos dando bordoadas no escuro,
É apenas nossa dor tão mesquinha nos atormentando,
É apenas um Amor que nunca existiu indo embora.
Na dor nossa de cada dia, há um espetáculo fabuloso,
Milhares de borboletas rodopiando num campo de margaridas,
E aquela criança dentro de nós se liberta, e se põe a correr,
Distante dos problemas, vamos sorrir como crianças bonitas,
E talvez isso nós faça sentir pequenos demais, ante a beleza
De um milhão de cores explodindo no horizonte, brincando com nossos olhos.
E de repente ao olharmos para o céu, há uma ave de rapina
Rodopiando em círculos, calmamente pela manhã durante a semana
O frescor deixado pela orvalhada da madrugada, e os olhos azuis,
Da criança que parece um anjo de mãos dadas com o pai, de traços fortes
Então olhamos para nossas vidas, ela pode ser bela também?
E então, um dia me disseram que há muitas verdades e meias-verdades,
Nesse caminho cheio de pedras, nunca teremos certezas de nada,
Há apenas o nosso discernimento ante a razão do coração.
Se somente pudermos contemplar o horizonte sem compromisso,
Alguém nos diria que estamos apenas perdendo tempo,
O quão bonito é um homem perdido em pensamentos, em olhos calmos,
Se e somente se, nos apaixonássemos por nós mesmos,sem dor e mágoa
Talvez o mundo seria um pouco menos doloroso, mas a vida está aí,
Rodopiando em torno de nossos medos, ansiedades, lágrimas e felicidade,
E o Amor me faz sentir pequena, ante a escuridão e desejo que o permeia.
Temos um coração a se manter calmo, vamos sair de mãos dadas,
E eu lhe digo apenas que a vida é passageira demais para termos medo,
Lhe beijo os olhos grandes, porque alguém me disse um dia,
Que os olhos podem ser o espelho da alma, e teus olhos são bonitos
Se e somente se, nós déssemos as mãos, talvez poderei amar,
A vida seria mais passageira, como o sorriso de uma criança
Não importa, somos tão pequenos quando sozinhos?
Se e somente se…pudéssemos ser um pouco mais sensatos,
Um dia alguém me disse, que meu corpo dançaria conforme uma música,
Que Amor e Sexo podem caminhar em linhas diferentes, mas se dão as mãos,
De vez em quando nos quartos, na penumbra de um bairro do subúrbio,
E então um dia o Amor se acabou, alguém me disse que um dia isso acaba,
E eu com muita dor, aceitei e saí a caminhar por aí, com sentimentos vazios,
E foi então que meus olhos se abriram e nunca me surpreendi tanto,
Para as coisas que sempre estiveram ali, passando despercebidas,
E então eu me senti tão pequena…você me faz sentir tão pequena,
Diante deste coração tão surrado quanto o meu, vamos caminhar juntos,
E um dia me disseram, vamos dar as mãos e sair por aí,
Rompendo nossas barreiras tão mesquinhas que nos aprisiona,
E nada será dito, além de palavras sensatas e histórias a contar
Talvez seja mais engraçado e surpreendente do que imaginei,
Mas você segura minha mão como se me conhecesse há tempos,
E como um livro vira a página e me conta aquela história,
E então eu me sinto tão pequena, estive o tempo todo sem perceber,
Que meus olhos grandes estavam cegos por uma venda, então eu dei risada,
Porque um dia me disseram, que a vida é uma piada, contada por um comediante frustrado.
E um alívio, um grito de liberdade sã e consciente grita dentro deste coração,
E um dia alguém me disse, que quando abrimos os olhos depois de tempos cegos,
Nós nos sentimos tão pequenos…tão pequenos diante de nossa idiotice,
E um dia me disseram que há milhões e milhões de pessoas neste mundo,
E um deles estará a sorrir pra mim…um dia me disseram, em tom de sermão:
Se e somente se, a vida sorrir para nós, devemos então, sorrir pra ela também.
Estou andando pela cidade, procurando uma nova razão para estar nesse mundo, pensando nos meus últimos passos, o quanto fazer giro, nas aulas de flamenco é tão difícil, procurando emoções inexistentes, um grito aonde eu posso dizer que tudo o que eu sinto é verdadeiro. E não me perguntem o porquê disso. Quando se ama, não temos que procurar explicações, não tem que explicar aos outros porque nos sentimos dessa forma. E quando me perguntam o porquê eu amo, eu sempre digo para não tentar entender. Eu digo que mulher é uma espécie complicada. Nós somos complicados, homens e mulheres. E isso não é uma desculpa, porque se eu tivesse uma explicação, também teria um motivo para esquecer. Eu não tenho nenhum dos dois, então, eu não perco meu tempo criando desculpas, razões e o caramba a quatro. Quando resolvemos uma equação, ela tem seu resultado exato, a não ser que o lápis escorregue milagrosamente e trace um sinal negativo na frente ou transforme o número 1 em 7. Todo mundo me pergunta o que é necessário fazer para se esquecer de alguém. E então eu digo, “eu não sei”. E eu ainda digo que não quero esquecer, porque aquilo que nós perdermos pode não ter volta, e aquilo em que acreditamos, há sempre algo de belo. E então eu me pego pensando, se realmente vale a pena abrirmos mãos de nossas crenças e conceitos porque as pessoas disseram que aquilo não é real. Somente nossos sentimentos nos dizem o que é bom para nós. Se existe a tormenta no que sentimos, se existem lágrimas em nossos olhos, se quando nos vemos traçando rumo seguindo os pontilhados da incerteza, eu não costumo dizer… Eu não costumo pensar nisso. Minha mãe um dia me disse que temos várias pedras nas mãos. Nós atiramos aquelas que não nos interessam, ou que nunca nos fizeram nada de bom. Mas sempre há aquela que não sabemos ao certo porque a carregamos conosco. Ela é pesada, mas há algo ali que a torna irresistível. Eu gosto de pedras. Eu costumava colecioná-las. Quando eu era criança, passava horas procurando pedras com cores bonitas. E eu ficava em uma cachoeira, chafurdando o fundo, no meio das águas gélidas, procurando pedras. E quando eu encontrava a perfeição, eu guardava, e quando chegava a noite, eu deixava perto do peito, porque disseram que aquela pedra tão perfeita, foi retirada da natureza, ela era algo puro, estava energizada. E então eu deveria cuidar bem dela, por mais pesada que seja aquilo, era real. E eu amava… Eu amava aquela pedra.
Cineasta, triatleta, ganhador do TheVoice, Mega Sena da Virada e Prêmio Nobel de Literatura. Coach de Política. Pai do Enzo e Raíssa. Marido da Dani. Vascaíno.
“Não é possível convencer um crente de coisa alguma, pois suas crenças não se baseiam em evidências; baseiam-se numa profunda necessidade de acreditar.” Carl Sagan