Estoicismo de coisas monásticas e mundanas

I

Santiago estava tomando um café. Era uma noite quente, 35 graus às 20h00. Estava esperando o funcionário novo chegar. Um aprendiz. De pouco sabia da vida, mas da Morte sabia que ele não sabia era nada. A campainha tocou. Olhou pelo circuito, o rapaz miúdo, tacanho, sem nenhum estereótipo aparente. Estava mais pra um nerd, pensando bem, na segunda análise. Tomou um gole lento e saboroso do café, abriu a porta, esboçou um sorriso,

-Boa Noite Tadeu! Tudo bem? Está preparado?

-Boa Noite Senhor Santiago! Acredito que sim… Vai ser um desafio e tanto não é? Já temos algo? – disse o guri, com ares de surpresa, misturada com curiosidade e aquela pitada de medo do desconhecido, disfarçado com a fala rápida, afobada e insegura.

— Oras! Que entusiasmo! Aceitas um café, antes de ir pra sala de preparo? E pode me chamar de Santiago, tenho 35 anos apenas. Sou um jovem adulto, digamos assim!

Tadeu sentou-se na poltrona, olhou para o quadro na parede: “Ajudando na hora da partida”. Um quadro bonito, retratando um campo de lírios brancos.

— Bem melhor que crisântemos não é? – disse Santiago, estendendo o café.

— Crisântemos? Nem sabia o nome dessa flor. Pra mim, é tudo flor. Minha mãe gosta de plantas. Eu gosto de cactos. Não precisam de água, sobrevivem comigo.

—Crisântemos são bonitos, mas são flores tristes. Uma flor clichê. Fico feliz quando a coroa fúnebre não é de crisântemos. A Morte poderia ser menos clichê. Mas eu entendo: o clichê custa-nos mais barato.

—Vamos, vou te mostrar o laboratório. Coloque essas roupas de proteção, e não se esqueça das luvas e da máscara. O cheiro de formol é forte.

Desceram as escadas, na casa do fundo dava para uma garagem com 2 carros fúnebres e 2 furgões.

— Quando vamos no IML ou hospitais retirar um corpo, utilizamos as vans. Elas tem de ser higienizadas todos os dias, de preferência após a retirada do corpo. Se o cadáver estiver em decomposição, a desinfecção deve ser imediata, senão o fedor fica, e demora muito tempo pra tirar ou, nunca sai.

— Senhor, opa, Santiago, o cheiro é tão ruim assim?

— Acredite amigo. Quando sentir nunca mais vai esquecer. Ele gruda em você, é persistente. Parece atá que nossa alma fica com isso. Mas sai, com um bom banho tomado, um pouco de borra de café ou limão.

Entraram numa sala de tamanho mediano, com três macas de anatomia, uma bancada com aparelhos de infusão, uma mesa móvel com bisturi, dissecadores, aspirador nasal, tesouras, agulha e linha, um armário com produtos químicos e um rádio, que tocava baixinho uma frequência de músicas antigas. Tadeu ficou imóvel, olhando aquele ambiente branco, as canaletas de escoamento de material biológico, o líquido na bomba de infusão e sobretudo, o cadáver coberto na maca central.

— Venha, vamos preparar este corpo. – Disse Santiago, colocando um avental por cima da roupa de proteção. Tome, vista também. Vamos começar devagar.

Ainda meio paralisado, mas voltando a si, olhou para o corpo disposto na maca. Era um homem, aparentemente 45 anos.

— Este é o Fabiano. Vítima de bala perdida. Morava na região do Paiol. Infelizmente estava na rua quando começou o tiroteio entre facções rivais. A bala perfurou o pulmão, ele já tinha problema de enfisema pulmonar. A família deixou a roupa e os sapatos não quer que tire a barba, pois ele amava ela e tinha um cuidado especial com a mesma. Foi a única exigência, querem um velório simples, caixão compensado. Nada muito luxuoso.

—Vamos fazer um processo para higienização e conservação do corpo. Chama-se Tanatopraxia. Faremos infusão de soluções de formol através de uma incisão perto da clavícula, para pegarmos a carótida e a jugular e vamos introduzir uma cânula de infusão. Faremos também aspiração de cavidades abdominal e intracraniana. Intracraniana a partir das fossas nasais. Parece assustador né? Mas isso traz maior segurança para o velório e consequentemente um pouco de conforto para a família.

— Parece difícil, na verdade. O que eu vou fazer?

— Você ai massagear o corpo para auxiliar no dreno do sangue. Depois do processo, vai me ajudar na lavagem do corpo e tamponamento, para prevenir qualquer tipo de vazamento. Hoje, no processo mais complexo, vai observar. Aos poucos pegarás o jeito.

O corte necroscópico desenhava um Y no corpo. Um cheiro forte e incomum ao Tadeu, junto com o cheiro de solução de formol das bombas injetoras o faziam respirar devagar, mas o coração batia acelerado.

— Está pensando quem está aí?

— Oi? – disse Tadeu, num pulo.

— Sabe, eu sempre trabalhei sozinho. Sem exceções, desde o acolhimento da família, a venda, a preparação do corpo, o funeral: em todos esses anos, me deparo com essa pergunta.

— Não entendi, que pergunta?

— Conheço esse olhar meu caro. Você está se perguntando: “Quem realmente era ele? Será que viveu intensamente?” – disse, Santiago, com um olhar de quem sabia e viveu tudo aquilo, pois dia após dia, a Morte sempre bate na sua porta.

— Pois é… Desculpa, está certo. Só não queria demonstrar minha perplexidade. Quero ser forte, e fazer meu trabalho. Não quero que me aches um maricas. Mas isso… – disse ele massageando as mãos rígidas do cadáver – É o momento mais sórdido ao qual eu passei. Minha pergunta: Seria ele, essa pessoa boa ou má? Como lidar com isso? Dia a dia? Poderia ser meu pai, homem bom, de honra. Poderia ser um uma pessoa cruel, aqui nessa mesa!

— Independente de tudo, você sempre realizará o seu trabalho como se fosse uma obra de arte. Você vai lapidá-la. Se a pessoa era má, com o seu trabalho, você irá deixá-la muito boa.

— É complexo!

— É complexo meu caro, mas, ao mesmo tempo, além disso, filosófico, quase metafísico.

— Metafísico? Por conta dos questionamento do “além” da vida?

— Muito mais do que isso. Aqui nesta mesa, esse corpo frio é resultado de milhões e milhões de anos de evolução.

— Uma evolução explicada pela ciência, mas e a alma? Eu acredito que exista uma alma, mesmo ela a ciência não tendo explicações para o fato.

— E temos o que intriga os filósofos desde tempos antigos: a ótica do bem e do mal. O que será que este homem foi: bom ou mal?

II

— Sarah, já lestes “Admirável Mundo Novo”? – disse Hélio, enquanto tomava um gole de cerveja escura.

— Já sim, por que? – olhei pra ele enquanto colocava o molho de receita secreta, num anel de cebola de esfera perfeita.

— Lembra da cena, do enforcado, balançando, demasiadamente humano?

— Sim! Cena extremamente perturbadora. Fiquei dias pensando no corpo, balançando tal como um pêndulo e o quanto somos robóticos num mundo ao qual, deveríamos ser selvagens.

— Enquanto houver sensibilidade entre nós, estamos bem. Quando encararmos a vida como pêndulos, vamos terminar como sobreviventes na luta pela vida, cada qual a sua maneira, porque no fundo, a vida sempre foi isso mesmo: SOBREVIVER.

E então Hélio deu aquele sorriso triste de Pierrot: digno de uma cena tragicômica da commedia dell’arte, apertando os olhos daquele jeito que eu tanto amava.

Foi a última vez que eu vi Hélio.

Eu, Sarah Almeida, 28 anos, tal como um pêndulo, dei voltas, Fui uma bússola, mas por vezes vivi quase sem rumo. Meu corpo e mente foram ao sul, norte, nordeste. Esquerda, direita, centro. Ele se deteve no sudeste, numa São Paulo louca e apressada, e meus pés apontaram para o sol que nasce de frente pra minha janela, quando meu corpo parou de convulsionar de desespero.

AGORA,

Há uma fileira de formigas negras entrando e saindo pelas minhas narinas. Sinto o fervilhar de larvas brancas e macias dançando em meu ouvido esquerdo. Sinto o tragicômico pedaço de carne entalado na minha garganta. A garganta que já se entalou de anos e anos de pequenas decepções do cotidiano, mas que bradou feliz durante os momentos de felicidade. Dias atrás, derrubei gelo em meus pés quando me desesperei momentos antes da minha morte, enquanto gritava-me o desespero ao sentir-me sufocada. Tentei gritar, mas a voz não saia, o ar não entrava em meus pulmões. A casa impecável e limpa me recebia. O pedaço quente de carne tenra e saborosa obstruindo o ar que me mantinha viva.

O chão duro e frio era como a Morte me chamando:

VENHA.

III

Duas semanas atrás, antes da Indesejada vir me chamar em sua jornada solitária, a crueza do verão já não me era mais contemplativa.

Eu enxergava ao meu redor uma sordidez de sorrisos desconhecidos e alheios num misto de emoção e raiva atenuadas por uma pitada tênue, porém sagaz de emoção. Olhava meu destino no redemoinho de espuma que formava-se na dose de café forte com mancha de leite. Pedi um pão com manteiga levemente aquecido, com toda aquela gordura amarela e sorridente. Uma mordida, e minhas artérias entupindo… E eu imaginando minhas lamúrias ao longo de exames de colesterol, diabetes, triglicérides e eletrocardiogramas. O destino foi tão trágico que agora estou agonizando com o corpo decomposto largado ao chão. O piso antes branca está repleto de uma mancha marrom e preta.

Daqui a pouco os vizinhos reclamam do cheiro. Em breve. Logo vão reparar nas moscas zombeteiras no vidro da janela, e a quantidade de besouros que circulam pela casa. Apesar de morta e putrefata, sinto saudades do cheiro de café…

A saudade talvez seja a delicadeza mais triste que podemos ter. Sempre pensei nisso, quando viva.

A saudade de sentar numa cafeteria ou bar e observar a beleza e a crueza do caleidoscópio das relações humanas: lembranças, associações e detalhes, as pequenas ranhuras de um quadro que estava se formando ali, naquele momento. Os gestos, as expressões, as rugas, os olhos… Os olhos se apertando, os olhos sorrindo, os corpos se abraçando, os corpos se afastando e tudo isso me abraçando com tanta força a ponto de rasgar meus poros. É como se todas as falácias que sangram alimentassem minha vida, gritando nos meus ouvidos. Eu me refugiava nas minhas aquarelas tímidas e a cada pincelada eu construía traços que podiam servir de refúgio na minha pele. Os pássaros de Bukowski me acompanharam nas costas em forma de tatuagem aquarela. O pássaro azul trancafiado na costela do lado esquerdo. Os pássaros vermelhos das quatro e meia da manhã sempre voavam em liberdade do flanco das costas e se tornavam pequeninos em volta do pescoço.

O pássaro azul… Escapuliu com o descolamento da minha pele putrefata. Os pássaros de tom vermelho lançaram suas cores para o pecado. Estou morta. Mas ainda assim sou dura demais comigo mesma.

IV

Um dia antes de morrer, quatro horas despretensiosas da tarde, estava numa esquina observando os maxilares do motorista de ônibus se movendo com o pão cheio de vinagrete. A gordura da carne estava escorrendo pelos beiços. As mãos do churrasqueiro mexiam com a carne e dinheiro ao mesmo tempo. Os homens da construção ao lado do ponto de ônibus limpavam as bocas no antebraço. Os traços grosseiros cansados dos anos de labuta pesada, misturavam-se sutilmente com o instinto mais primitivo: a fome. Eu estava ali, parada e quieta nas minhas observações com um berro tresmalhado, uma virulenta congestão causada por um mero axioma da vida, com um alívio de culpa. Culpa por que? Oras, eu julgava a pausa merecida do motorista de ônibus, que pediu dois espetinhos e pediu para colocar num pão velho com vinagrete. Comeu com um sofrimento que doía, pois os olhos se fechavam quando a boca se abria inteira para devorar o pão e os poucos minutos da pausa merecida.

Estava ali um homem simples, com uma gratidão que não cabia dentro de si. Ele subiu no ônibus, cumprimentou cada passageiro cansado e suado da labuta de todos os dias. Cada corpo cansado e intoxicado do sol que insistia em provar sua existência. O sol que aquecia o corpo daquelas pessoas, era o mesmo cujos raios entravam pela janela e tentavam, em vão, aquecer meu corpo gelado e sem vida no piso na sala de jantar. A única coisa que me olhava, era um girassol sorridente no parapeito da janela.

Enquanto uns amaldiçoavam o verão, senhoras com traços brandos e alegres diziam que a tarde estava perfeita.

Perfeita… Quais nossos critérios para a perfeição? Lembro-me de que anos atrás, numa conversa despretensiosa com cerveja e batata frita, um amigo dizia em ares de contemplação:

“Porque ela era perfeita. Um ser intocável, loiro, olhos claros, shorts jeans e uma camiseta do Superman. Ela queria passar e eu estava no seu caminho. Ela me pediu com doçura: Com licença.”

Ela era perfeita. PER-FEI-TA. Os lábios dele se mexiam como se estivesse soletrando. E eu pensava se aquilo, aquela contemplação era de fato uma felicidade clandestina ao qual eu nunca tive. Uma felicidade clandestina unicamente dele, mas ele estava lá, dividindo comigo essas pequenas ilusões e devaneios, essa espécie de Amor Inventado, um Amor platônico que sustenta por anos. Talvez um dia, quando lhe baterem à porta e chamá-lo de volta, ele abandone aquele amor inventado de um metro e sessenta.

SESSENTA…

V

Sessenta besouros nascendo de minha boca e orifícios agora. Sessenta dias atrás pensei num poema do Augusto dos Anjos Eram 18h30 e horário de verão… Da janela do ônibus durante o trânsito caótico da cidade vi uma mulher aparentemente grávida fumando crack. Era um local conhecido por toda sordidez de acontecimentos mundanos da cidade. Com vestes sujas e mãos trêmulas, acendia um cachimbo improvisado. A cada tragada eu saia da minha introspecção e sentia meus pulmões queimarem. Eu sentia a dor dela, de alguma forma muito íntima, era como se eu também fosse um ser jogada à sorte do próprio destino, e agora, tal como ela, apodreço no chão da minha própria casa, com toda a impertinência de um abandono, exceto as bactérias e toda variedade de insetos necrófilos fazendo de meu corpo seu alimento e uma espécie de útero gigante. Da morte nasceu a vida: milhares de insetos carregando o meu DNA. E aquela mulher das 18h30? Qual era seu alimento? Qual seria sua morte? Ao lado dela um velho de costelas protuberantes quase que perfurando a pele, comia uma marmita com as mãos, pegando os grãos de arroz e feijão com as pontas dos dedos, mastigando de maneira afoita. A mulher que carregava um filho no ventre estava totalmente fora de si. Acendia, puxava, soltava. Delirava. E a criança gritava, dentro daquele ventre como se implorasse para sair dali. Um grito ensurdecedor, um corpo talvez já morto, tal como o meu, mas que não estava em paz. E o homem que engravidou aquela mulher? Foi amor ou apenas um escarro de violência, de esperma bruto, cruel e insensível? A dor que rasga as genitálias num ato de prazer não consentido. Quando na vida o prazer podia ter tudo para ser lindo, a sordidez da bestialidade humana dá um sorriso, e escarra…

“Escarra… Escarra nesta boca que lhe beija”, dizia Anjos.

Uma cópula forçada nas vielas da grande cidade. Ela estava lá, sozinha, tentando ter uma falsa paz teleguiada causada por pedrinhas amarelas venenosas e traiçoeiras. O velho da marmita escarrou no chão, limpou as mãos engorduradas na bermuda rasgada e entregou parte da marmita para a mulher grávida. Alucinada e quase paralisada, exceto pelas mãos trêmulas. Retribuiu um sorriso agradecido ao velho das costelas protuberantes. Foi o sorriso mais delicado e perturbador que eu já vi, nos cinco minutos de trânsito que foram uma eternidade dolorida.

VI

Na casa ao lado da minha uma mulher reclama do cheiro. Diz que há dias sente cheiro de “bicho morto”. Somos reduzidos a isso: bichos. Os jornais e correspondências se acumulam na minha porta há dias. Na primeira semana de minha morte, a vizinha da casa ao lado varreu minha calçada. Ninguém sentiu minha falta, o telefone tocou, mensagens chegaram, devem ser mensagens preocupadas, mas e as visitas? Cadê o “bater em minha porta”? Cadê a preocupação de fato? Como eu poderia dizer que estou ali, trancada e sozinha, esperando por um pouco de atenção e um velório com caixão aberto, para que possam olhar para meu rosto e dizerem o clichê: “ela era tão nova e bonita”, “para morrer, basta estar vivo”. Nenhuma mulher… Nenhum homem. Nenhum homem que eu amei.

Já amei muito nessa vida, já amei muito poucos homens. O pouco no muito. O muito, no pouco. Já amei muito os relevos que formam a tatuagem desenhada no peito e no antebraço. Duas cicatrizes artísticas que resumiam em cores e traços o homem deitado ali, que me ligava uma e meia da manhã querendo me ver. Falácia. Mentira. Não amei, mas fingi que amei. No primeiro acorde de uma canção desafinada eu fui embora sem olhar pra trás. Ele era cheio de acordes desafinados e cordas arrebentadas. Cinco minutos depois ele colocou uma foto de um outdoor em forma de guitarra paralelo à lua cheia que estava no céu. Era apenas a Lua e somente ela que ele amava. Essa coisa brega. Fui embora sem olhar pra trás. Ele nem sequer notou minha presença, mas o relevo das tatuagens dele, ainda permanecem na ponta dos dedos, não como uma lembrança, mas como um erro.

Já amei um homem que tinha olhos gentis e um abraço acolhedor. Uma mente brilhante e um olhar gentil. Mas foi platônico. Um velho amor de tempos de pré-puberdade, reencontrado anos mais tarde, mas que nunca foi real, via de fato.

Já amei um homem ao qual eu fui apenas um pequeno grão de areia existente em seu imenso planeta chamado “cama”. Entre uma canção e outra, fui apenas uma nota solta e esparsa.

Já quase amei um homem, mas gostei mais do guarda-chuva dele, ao qual nunca mais devolvi. Ele também nunca mais voltou. Estamos quites. Ao menos tenho como me proteger da chuva.

Já amei um homem que cantava murmurando no banheiro da pousada de nosso romance de 2 dias. Um romance de dois dias ao qual eu olhava aquele homem cheio de inseguranças, encolhido como um feto. Fiquei na penumbra encostada na parede tentando entender toda aquela dinâmica de amores, desamores, política, educação e toda a modernidade tão líquida quanto o copo de água que em vão, foi uma tentativa falha de salvar-me do pedaço de carne traiçoeira. A carne que peca, que se contraí, tal como um copo de cólera, nos dá aconchego porém nos adoece. Tal como um lobo das estepes, à procura de alimento. Penso nos pecados da carne metaforizados na figura de um lobo: o lobo rastejando e arranhando a presa. Sentimos a dor, os uivos, ficamos cegos, pois o Lobo em sua fome nos arrancou os olhos, nos umedeceu com sua língua, nos enrijeceu com seu toque. Paramos. Nos lamentamos. E dizemos: “Nunca mais”. O tempo passa, e o Lobo está lá, na espreita, sempre com fome, com seus olhos brilhantes na penumbra. As cartas de amor se extinguiram, palavras de ceticismo tomaram seu lugar, num mundo mesquinho cheio de desespero e incertezas.

Alimentei meu ceticismo e pecados da carne mal sucedidos…

Com álcool.

VII

Displicentemente, tal como uma criança implorando por doce, afogava minhas maledicências diárias em um copo de uísque sem gelo. Descia garganta adentro, queimando. Calhamaços e mais calhamaços de lamúrias, piadas de humor negro e ossos do ofício ecoavam no boteco do bairro. Havia ali uma disputa entre poucos amigos. Quem bebia mais? Vira um, vira outro… E a conversa rolava solta, entre risos alegres e etílicos. Quando bebia sozinha, os monólogos eram ao mesmo tempo, incríveis e enfadonhos. Sozinha, eu não gostava de falar muito. Sou excelente ouvinte, péssima em dar conselhos. Ouvia meus monólogos internos. Jamais respondia, porque não sabia o que dizer.

— Parei de beber. Mas voltei. – disse Fábio, depois de pedir um velho Jack.

— Porque? Pensei que você era mais forte que eu. Que bom, não aguentava mais te ver com seu copo de água com gás, gelo e limão.

— Pensa pelo lado bom! Você voltava pra casa com segurança. Eu era o sóbrio da história toda. Teve aquela vez, que eu abri a porta pra você. Sua coordenação motora estava pior que o normal—rindo, de canto de lábio.

— Bullshit! Você sempre conta essa. Sempre consegui abrir portas. Mas me conta, porque voltou pra essa vida de boemia?

— Ser professor é complicado. Fiz uma proposta aos alunos. Pedi para representar um ponto de vista sobre a violência urbana usando literatura.

— Ótima proposta, mas o que lhe atormentou tanto a ponto de em menos de 5 minutos já ter matado mais da metade da dose de uísque?

Fábio pegou a pasta, tirou uma folha de caderno. Lá tinha o nome do aluno, série e data. O texto, cercado de rabiscos e desenhos aleatórios, era cercado de erros crassos de português. Olhei a série,

— Segundo ano do ensino médio?

— Sim. Mas leia o texto.

O texto falava de um jovem na comunidade. O funk rolando adoidado, a polícia também.

“Varios carro de som tudo tocano mc zax e jerry” (sic)

Ai a b.a.e.p pia… dano tiro de boracha ai acerta na perna se corre mancano locão a b.a.e.p passano por cima dos outro os mlk caino de moto sangue pra todo lado”

Me encolhi na cadeira. A princípio, me deu horror os erros crassos de português. Era o horror aos ossos do ofício, horror da ignorância alheia, horror à falta de perspectiva de tentar sair do que era comum. Depois me deu outro desconforto: o que estava escrito ali era muito mais horrível do que o analfabetismo em si, e talvez as falhas de um sistema educacional. Bebi outro gole de uísque. Olhei nossos copos então quase vazios. Chamei o garçom. Ele encheu os copos.

“os mano da tiro leva tiro da facada leva facada e tudo numa boa. isso e a violencia.

ass: cachorro”

– Os mano da tiro leva tiro da facada leva facada… E TUDO NUMA BOA. – disse Fábio. – Tudo numa boa.

– Ok. – coloquei o papel na mesa. Suspirei, retornei pra minha zona de conforto, que já não era mais a mesma.

– Um brinde! – ergui o copo

– A que? – disse Fábio, erguendo o copo e parando poucos centímetros antes do meu.

– Ao estoicismo do seu aluno, tão resignado em aceitar seu destino e a nós que não sabemos levar tudo numa boa.

– Zenão era um cara meio louco não é? – disse ele ao tilintar nossos copos.

Também foi a última vez que eu vi Fábio.

IX

Tic-tac Tic-tac tic-tac

Há 15 dias eu escuto os segundos do meu relógio passarem. A vizinha viajou, meu quintal ficou sujo. Meu telefone tocou e eu não atendi. Eu trabalhava em casa, como tradutora e revisora. Estava sem trabalho, mas com dinheiro suficiente pra passar razoavelmente bem durante um mês, ou talvez dois. Uma vida tranquila, mas sem muito luxo. Estava pensando em chamar Fábio e Audrey para uma noite de conversas despretensiosas e a base de uísque barato, mas me engasguei antes de mandar a mensagem.

Meus pais morreram em um acidente de carro, quando eu tinha 23 anos. O caixão foi lacrado. O meu também vai ser. Meu rosto corpo está inchado, com uma coloração horrível. Dificilmente vão conseguir limpar esse lugar. Meu cheiro, minha morte, minhas larvas, minhas moscas… Estão por toda parte. Provavelmente meu braço descolará do meu corpo quando me jogarem dentro da padiola e por fim, uma voltinha no rabecão.

– Relaxa, pra tudo nessa vida dá-se um jeito! – Audrey sempre me dizia isso, quando eu estava na merda.

Mas agora estou numa merda sem volta.

Olha só. Pancadas na porta. Primeiro foram toques de campainha, primeiramente calmos, depois sem a paciência de antes. Quem seria? Quem estava ali?

Sarah??? Sarah?? Você está aí? Responda Sarah!

Era o Fábio. Ele vai se transformar em um alcoólatra inveterado depois dos próximos cinco minutos.

XI

—Caramba esse cheiro! Argh! – disse Fábio, respirando com o nariz nas dobras do braço.

—Ela tem animais em casa senhor? – disse uma voz.

— Não, mora sozinha. Ela era bem reservada, às vezes sumia, mas sempre dava notícias.

— Vamos ter que estourar a porta, saiam de perto. – disse o policial, pedindo pra Fábio e o vizinho que não sei o nome saírem de perto.

Porta estourada. O vizinho ao qual eu nunca conversei deu um grito. Fábio não gritou. Se encolheu num canto, com as mãos no rosto. O silêncio nunca foi tão perturbador.

A mosca que nasceu dentro do meu corpo, carregava meu DNA e deu seu último adeus, pousando nas roupas pretas de Fábio. Ele estava ali, no canto, encolhido como um feto que acaba de sair de dentro de um útero, tremendo e chorando como uma criança, observando meus fragmentos espalhados pelo piso gelado. Estava eu ali, despedaçada, na luz tranquila que atravessava o vitrô. Era minha densidade, minha libertação. Os meus cacos espalhados ali, formaram o meu mosaico, e ele tinha um milhão de histórias pra contar. Já não estava mais trancada neste mundo de coisas monásticas e mundanas. Eu me libertei de minha cela.

Um brinde Fábio.

Cheguei ao ponto final do meu estoicismo. Extirpei minhas paixões, abracei minha razão. Aceitei meu destino.

XII

— Chefe… – disse Tadeu com cara de quem chupou um limão azedo.

— É difícil lidar não é? – o cheiro, a situação. Morrer em casa, uma morte mesquinha, causada por hábitos do dia a dia.

— O rapaz disse que ela quer ser cremada. Colocaremos bastante pó de grafite, cal e então lacramos o caixão e mandamos pro crematório. – disse Santiago, enquanto batucava no volante do furgão, esperando o semáforo dar permissão de avanço.

— Que triste. Morrer sozinha. E só perceberem por causa do cheiro. Ela devia ser uma mulher detestável. Quem era Sarah Almeida? – disse Tadeu, passando um pouco de Vick Vaporub na narina, para disfarçar o cheiro pútrido do cadáver de Sarah.

— Olha caro aprendiz… Presenciei muitos suicídios, mortes mesquinhas, ao qual as pessoas eram muito solitárias, mas sempre tinha alguém no velório, ao mesmo tempo que já realizei um funeral de uma pessoa que não valia nada e mesmo assim, do meu bolso, coloquei uma roupa nela. Mas, hoje, eu não consigo mais realizar um pré-julgamento de alguém que morreu sozinho. Não sei mais lhe dizer se a pessoa era boa ou má. Talvez a questão mais pertinente é se era feliz ou triste. Existe alegria na maldade, existe tristeza nas pessoas boas. Aprendi isso com nossa profissão.

Tadeu concordou com a cabeça, ligou o sistema de ar, Passou mais Vick nas narinas, pegou um chiclete no console.

— É pesado não é? Como conseguimos suportar tudo isso? Minha irmã morre de medo de morrer sozinha. Ela tem pesadelos ao qual volta do trabalho e encontra a casa sem móveis, com o vidro das janelas pintadas de preto, com muito mofo na parede. Quando ela entra no quarto, ela se vê morta no chão. Isso entra em conflito com a opção dela não querer casar e ter filhos. Eu sempre peguei no pé dela, pra ela ter filhos, ter um marido, mas sabe aquela vez que fomos no asilo São Vicente? Dois cadáveres de uma só vez. Eles tinham filhos que nunca mais foram visitá-los. Morrem de depressão e abandono. Parei de brigar com ela. Ela seguirá a vida dela, e o que tiver de ser será. Acho que essa profissão me deixou frio como uma pedra de gelo.

— Asilos são depósitos. Uma ode ao individualismo contemporâneo, à falta de gratidão. Não nos tornamos frios Tadeu. Tornamo-nos racionais demais.

— Chefe… Me lembro que um dia você disse que nosso trabalho era por deveras filosófico. Ontem minha namorada me perguntou se eu acredito que exista algo depois da Morte.

— O que você respondeu?

— Teria importância se soubéssemos o final da história antes de terminá-la?

— Eu penso assim também. Tudo o que eu tenho são minha esposa, minha filha, quatro cães e minha bicicleta. A funerária é nosso sustento. Sou órfão de pais, passei uma boa jornada na solidão, beijando suicídios, afundado em drogas. Mas eu saí. Se eu morresse agora, morreria feliz, pois além de não estar sozinho, sei que deixei algo de bom. Eu não vivi em vão. Se estamos neste planeta, temos de fazer barulho, e não apenas respirarmos. Isso me lembra Ouro de Tolo:

Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes  esperando a morte chegar.

— Sabe o que estava escrito no quadro da parede da sala da moça? – disse Tadeu, enquanto olhava as mensagens no celular.

— Não vi. Na verdade tenho o costume de não reparar muito em objetos de decoração da casa dos defuntos. Mas o que estava escrito? – disse Santiago, rindo.

— Enquanto houver sensibilidade, entre nós, humanos, estaremos vivos.

Silêncio.

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Death Contemplating Life – David Ho

PS: O título foi retirado de um trecho do livro “Um copo de Cólera”, do escritor Raduan Nassar, um dos meus livros favoritos.

Agradeço ao amigo Marcos da Silva, profissional da área fúnebre, pela nossa conversa numa manhã de sábado, ao Wagner Galesco e suas experiências com a docência e aos amigos que me deram força para voltar a escrever num momento tão difícil.

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