A desumanidade presente na busca de uma vida perfeita. Marta trancada em seu mundinho de poucas pessoas, na calada da noite, uns poucos convites para tomar uma cerveja. De repente todos somem, as paredes do quarto a engolem, ela se olha no espelho e se vê desconstruída, mil fagulhas queimando-lhe o ventre, de dentro pra fora. A gota d’água pingando sem parar na torneira do banheiro, os gritos do vizinha noite afora durante o sexo, o sorriso do namoro dos gatos no muro em frente. Sai para fumar um cigarro na soleira da porta enquanto o pio agourento da coruja canta uma maldade sem razão. Antes, a hipótese da maldade a assustava, a hipocrisia alheia lhe apertava a garganta ao ler as páginas do jornal nos primeiros minutos do trabalho enquanto o cheiro de café invadia as narinas. Café… Seus olhos realmente estavam abertos de fato depois de três goles de café. As sombras, o toque, o vento, o barulho das teclas dos computadores alheios se tornavam palpáveis depois do amargo gole, era depois disso, que a vida tinha sentido, era depois disso, que seus assombros ganhavam contornos de aquarelas tristes. Era isso que queria pintar na tua pele, mas não há espaço para todos aqueles contornos, por mais que metaforicamente eles fazem cicatrizes em tua pele, a dor é invisível. A coruja continua piando, o primeiro cigarro acabou, mas ainda tem cinco dentro do maço, acende outro, gato sorri com os olhos, ela sorri intimamente, por dentro. Uma gargalhada dissonante, quase úmida e de um sarcasmo digno de uma tragédia tragicômica com máscaras e ventríloquos assustadores. Ahhh se ela pudesse contar histórias, seriam todas da boca pra fora, mas seriam cantadas em verso e o riso seria seguido com lágrimas, a tragédia do rir para não chorar, ou chorar, para depois cair no deleite do riso.