Relevo

Uma vez eu queria ser a maior
Dois punhos de pedra sólida
Com um cérebro que poderia explicar
Qualquer sentimento (Cat Power, na canção “The Greatest”)

 

E a voz da pessoa que falava comigo pareciam flutuar no ar, assim como o neon das placas luminosas e dos parcos veículos que trafegavam na rua. Eu apenas concordava com a cabeça, enquanto andávamos cansados chutando pequenas pedras no meio do caminho, e nem ao menos, acredito eu, que pensamos no tal poema do Drummond. Apenas chutávamos pedras, eu concordava com o que ele falava, enquanto aquecia as mãos dentro dos bolsos, tateando o fundo, em busca de algo ao qual eu não sei. O que procuro? Ele achou. Achou moedas.

 “Dá para comprar um cigarro solto…”

E deu risada.

Dei risada também…

Mas estava frio demais para rir.

Não…

 Eu estava fria demais para rir…

 Continuamos chutando pedras, ele falando, eu concordando, o vento no nosso rosto, a noite dando beijos em nossos rostos, sem pedir permissão. Corremos, achamos que era nosso ônibus, cansado da nossa lerdeza dos passos chutadores de pedras. Nos enganamos. O ponto de ônibus lotado.

Ficamos na beira-fio da calçada, em pé ao lado de um poste. Meu amigo acendeu um cigarro. Continuou falando do seu dia, dos problemas do trabalho, do professor filho da puta que o reprovou, e em pé ao lado do banco, à mercê da espera, estava um rapaz, de tez alva, olhos e cabelos claros que escondia embaixo de uma boina que por vezes tirava para ajeitar à sua maneira os fios dourados bagunçados. Alto e magro, carregando uma mala de viagem que segurava com força.

Todas as veias e tendões ficaram aparentes na brancura da pele, formando pequenos rios azuis, que naquela penumbra formada pelas luzes amarelas dos postes da avenida, tornam-se relevos quase sutis. Havia algo indecente naquele rosto, naqueles braços, misturando-se numa beleza sórdida. Sórdida e triste. A beleza triste, olhar distante e com um pé na loucura.

Lunático. Olhos de caleidoscópio.

A ponta da língua seguindo cada linha desenhada naqueles braços. O cheiro na pele. Dizem por aí: questão de pele.

Pele. Suspirei. Um devaneio.

Um devaneio impuro e um tanto insano.

 Os braços, pulsos obscenos, as mãos presas na alça da mala, ou as alças presas nas mãos? Meu olhar preso entre o chão, na crueza do terrível e mesquinho disfarce, o medo de nossos olhares se cruzarem. Mas meu voyeurismo queria ser mais escancarado.

Uma expressão de pressa, misturada com impaciência, ansiedade. Os lábios do meu amigo se movendo, desenhando palavras cujo som se perdia. Eu apenas concordava, balançando. Do outro lado da via, o ônibus de meu amigo se aproximou e parou no semáforo. Me deu um abraço.

Um abraço forte.

Atravessou a avenida correndo, como sempre fazia. Acenei com a mão. Voltei a cruzar os braços, estava com frio. O rapaz sorriu. De canto de boca. Seria ele talvez uma pessoa de meio-sorriso? Teria a vida cheia de amores? Amores não-resolvidos, amores caóticos. Era um homem belo, mas desde quando, a beleza é um padrão para quantificar amores? Os amores podem ser como os dramas de teatro. Os amores podem ser vazios e sem sentido. Os amores podem ser reprises incessantes da Commedia Dell’Arte: O Pierrot que amava a Colombina que por sua vez amava o Arlequin que talvez, não amasse ninguém…

Ninguém além dele: os amores podem ser amores de “Quadrilha”. Ahhhh Drummond…

Os amores podem começar pela visão de “uns braços”…

“Vai demorar muito?”, perguntou ele para a garota do seu lado.

Ela apenas balançou a cabeça, enquanto encolhia mais o corpo para se proteger do vento gelado.  E então, o rapaz fixou por quase um minuto cheio, o olhar perdido no horizonte. Pequenas rugas de expressão se formavam no canto dos olhos. As mãos apertavam com mais força as alças da mala que carregava. Arregaçou as mangas, ficando com os antebraços de fora, chegou mais próximo da luz, os relevos dos riachos de veias e tendões ficaram mais aparentes.

Aquilo tudo era de uma obscenidade imposta e escancarada. Assim, sem querer.

A saliva desceu seca em minha garganta, era o calor daquele ato minimalista das mangas de camisa arregaçadas e da força imposta pelo peso da mala.  Relevos… Relevos sutis de veias e tendões. E as linhas de expressão se formando no rosto.

Tensão.

A beleza imposta sem querer, é sempre mais obscena que corpos e pudores escancarados no ato de ter uma beleza voluntária. Era apenas um estranho na multidão, numa segunda-feira comum, um tanto fria para uma primavera. Um personagem do meu espetáculo ao qual eu sou uma voyeur.

O ônibus chegou, ele subiu.

As cortinas se fechavam, o espetáculo acabava ali, ao final da despretensiosa apresentação. Mas ficou em minha memória, aquela beleza parnasiana, exposta na galeria das emoções e pequenas paixões do cotidiano, com um “q” machadiano*.

*OBSERVAÇÃO: Machado de Assis tem um conto belíssimo chamado “Uns braços”.

 

 

Mãos, linhas de braço…

“Sobre todos nós, um pouco de chuva deve cair.”

Estas são as estações da emoção
E como os ventos elas se erguem e caem
Esta é a maravilha da devoção
Eu vejo a tocha que todos devemos carregar
Este é o mistério do quociente
Sobre todos nós, um pouco de chuva deve cair
Depois de um dia cheio e tumultuado, cheio de dores, não só minhas, mas de outras pessoas também esperando atendimento no hospital, fui abençoada pelo frescor e beleza da chuva que vejo agora através da minha janela. Em decorrência dos acontecimentos de hoje, eu não pretendia escrever nada. Hoje o meu dia foi de tristeza. Foi um dia daqueles que por mais que eu lembrasse das coisas boas, eu não estava conseguindo me sentir plenamente feliz. Eu queria ter um dia normal. Gostaria de ter ido trabalhar, ter ido almoçar com os amigos do trabalho, ter rido. Gosto dos desafios do dia a dia. Eu não queria passar a manhã inteira trancada na escuridão, por causa de uma dor de cabeça e um mal estar por causa de um remédio fortíssimo que tenho que tomar toda segunda-feira. E quando isso acontece, ter que fazer uma bateria de exames pra ver se meu fígado ou rim foi pra bosta. Hoje eu acordei e não me senti bonita, me senti um lixo. Estava pálida e com dor de estômago. E pra ajudar aquela maldita coisa que a mulher tem todo mês. OK, bom sinal, não estou grávida. Um filho nessa altura do campeonato não seria nada bom. E eu hoje, no hospital, 6 horas de espera, ouvindo histórias de pessoas que estavam piores do que eu, bem piores…Pessoas que viajaram horas e horas, para pelo menos ter a esperança de um atendimento. Posso parecer hipócrita, ao reclamar aqui que o meu dia foi um lixo, o que é a minha vida, comparada com noventa por cento daquelas pessoas que tratam pelo SUS?Eu sei que eu pago imposto, e tenho tanto direito quanto eles. Clínicas particulares não resolveram o meu problema, o Sistema único de Saúde sim. Hoje foi dia do meu check-up, coincidentemente não acordei bem. Hoje, eu amaldiçoei o maldito minuto que eu acordei. É meus amigos, o ser humano é mesquinho e ingrato, ele reclama, reclama, reclama, mas não olha pra trás. Eu me olhei no espelho hoje e me senti horrível. Conversando com demais pacientes eu comentei o quanto minha auto-estima fica lá em baixo por causa das manchas da psoríase. O quão eu sou insegura quanto a isso. Eu escutei três vezes que isso não importava, que eu era bonita com ou sem manchas. Mas a estética é fogo, eu sempre fui vaidosa, ter marcas no meu corpo que vão demorar pra sair não é coisa lá muito agradável. E nós somos tudo um bando de ingratos. Eu me recordei quando minhas pernas foram tocadas com a doçura e suavidade de um pianista e seu piano, e eu me recordei que me disse que minhas pernas eram lindas, mas eu me lembro do dia que elas não eram manchadas, e imagino que talvez você gostaria mais delas daquele jeito. Mas eu confesso que o meu dia fica mais radiante quando lembro que me disse que eu sou linda. Isso faz ganhar o meu dia, mas hoje, hoje eu me olhei no espelho, e queria EU me achar bonita. Mas não foi possível. Lamúrias de vaidades e dores a parte, agora que eu escrevo, um vento e cheiro divino de chuva invade meu espaço. E essa chuva, tão suava, serena, na véspera da meia noite, trouxe toda a minha auto-estima de volta. Fez o meu dia, que foi tão ruim, ter algo de belo ao final. Hoje eu vou dormir bem. Meu corpo vai sentir o frescor da chuva me trazendo um pouco de paz. Eu queria ver relâmpagos, e contar os segundos para prever a distância da queda, e depois, em segundos de êxtase, encantar-me com o barulho do trovão. Eu queria poder beijar-lhe agora, e que sobre nossos corpos caísse um pouco dessa chuva. Ahhhh…As doces armadilhas das nossas devoções, e toda a razão do nosso quociente. Amaldiçoamos nossos dias ruins, mas queremos que tudo acabe na doçura de um beijo e no calor de um abraço. Eis a maravilha das estações da vida.

Cenas e pensamentos avulsos

1 – O mundo é um moinho?

Na madrugada a rolar pela cama. Entre uma coceira de ansiedade e outra, a cabeça martelando 1 milhão de pensamentos após uma sessão de terapia. Tentou ouvir uma música, para relaxar, acendeu seu incenso favorito, ficou deitada na cama olhando para o teto. Acendeu a luz, eis que então uma barata atrevida entrou quando abriu a porta pra tomar um ar. Matou a barata, com uma frieza atípica, ao invés de um escândalo típico de mulheres. Sentou-se na escadinha na porta de casa, a rua vazia, com suas teimosas luzes amarelas. O ventinho da madrugada chegou, como uma carícia no seu rosto, e então abraçou os joelhos e se colocou a chorar, um choro quieto, silencioso e isento de lágrimas, como um poço que secou, vazio mas com aquele cheiro úmido da umidade das paredes. Nenhuma viva alma nas ruas às quatro da manhã, contemplou mais um pouco o silêncio e beleza da madrugada solitária. Entrou pra dentro, tirou as roupas, ligou o chuveiro e tomou um longo banho. Ela gosta de água, ajuda a colocar as idéias no lugar, inclusive a pensar que se continuar com as crises de insônia misturadas à doença autoimune que atormenta sua noite. E então ela pensa no trabalho, será que conseguirá realizar todas as suas tarefas tendo virado a noite?Os minutos vão passando, como gotas de chuvas, minuto a minuto…E a manhã chega, ela toma mais um banho, umas gotas de perfume atrás da orelha, e sai de volta a vida. Há milhares de moinhos lá fora, e ela acredita que todos eles são dragões.

Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinhos.
Vai reduzir as ilusões a pó

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés

2- Madrugada

Mostrando sua face, pouco a pouco, o mundo girando atordoado. Ela largada em sua velha poltrona, com suas crenças, mágoas, amores e desamores. Na madrugada quente, silenciosa, sem brisa, apenas o pio da coruja contando o tempo, os minutos e segundos se passando, as lues apagadas no vizinho, e uma lua cheia e solitária lá fora. É tênue a linha do sofrimento, na pele, o desespero. Os pios da coruja continuam ecoando na madrugada, como os passos desesperados da consciência, sincronizados com as danças atordoadas de um mente perturbada. Daqui a pouco amanhece, o sol irá sair e o mundo estará lá fora, esperando mais uma sucessão de erros ou acertos.

3 – Apenas um copo de sakê

Chegou cansada do trabalho, jogou os sapatos para o canto, perto da cama, ligou o ventilador, pois sentia o corpo todo derretendo, como um sorvete. Estava feliz, apesar do calor quase que insuportável e a falta de dinheiro devido ao final de mês. Acessou a página de notícias e viu que este fatídico dia era o mais quente do ano, marcando trinta e sete graus nos termômetros e que um ciclone extratropical de nome enfadonho “Sandy”, estava causando problemas nos States.
Um banho gelado lhe cairia bem. Deixou as roupas caírem no meio do caminho, mudou a chave do chuveiro, colocou um Coltrane para relaxar, e começou a cantar, pois cantar lhe fazia bem, apesar de sua voz não ser tão agradável, mas pra ela, isto era apenas um detalhe do qual não havia o porquê se preocupar, pois dizem por aí que o importante é ser feliz, e ela é feliz assim, deste jeito, cantando desafinadamente enquanto as gotas calmas e geladas caem calmamente no corpo, enquanto fecha os olhos e pensa no passado, presente e futuro. O que será daqui pra frente, quais os planos, será que um dia irá casar, ter filhos, fazer um doutorado?Irá estar presente no fim do mundo?Com esses pensamentos martelando na cabeça, ao final ela apenas ri, pois ela vai apenas vivendo, dia após dia, com as tristezas e alegrias, uma nova estória a contar, um sorriso, uma fúria. Assim é a vida, pensa ela, passando como uma folha arrastada pelos ventos de inverno, ou apenas como um copo de sake, bebido lento e aquecendo-lhe a alma.

4 – Philander

And I’m always gonna love you
And I’m always gonna stay
Here with my Philander
Up here on this platter
And I’m laid out for Philander

Havia um casal em um restaurante. Não era um restaurante popular, era um desses requintados, bem arrumados, com bom gosto, mas não exorbitantemente caro. Era algo que era possível de ir mais que uma vez no mês. Havia uma moça, sentado no canto, estava bonita, com lábios pintados, olhos marcados e uma roupa sensual, não beirando a vulgaridade. Estava nervosa, contorcendo as mãos e olhando constantemente o relógio no celular. Ela havia pedido uma água, um copo com bastante gelo e 2 rodelas de limão. Quando entornava o copo para beber, era possível observar suas mãos tremularem, e o esmalte vermelho nas unhas. Ficou desta forma, transbordando sua ansiedade, as mãos tremulas, os pés batendo freneticamente no chão. E em um momento um sorriso abriu-lhe na face. Pela porta do restaurante entrou um rapaz, de altura mediana, não era belo, daquela beleza de se encher o olhos, mas era belo, uma beleza simples, comum, um homem com barba a fazer e bem vestido. Ela se levantou para cumprimentá-lo. Ele beijou a face segurando o rosto dela com uma das mãos, algo que aparentemente ela não esperava. Havia ali, naquela mesa, uma tensão, quase sexual, olhos nos olhos, os pés dele apontando pra ela, ambos com o corpo inclinado na direção um do outro. Ela sempre molhando os lábios, e ele sempre conversando tocando nela, de leve. E a cada toque dele parecia que ela iria morrer, de desejo, paixão, pois seu rosto incendiava com o rubor. Talvez ele soubesse disso, pois talvez ele tenha visto os pelinhos do braço dela arrepiar. Era o flerte…Philander…

Vou estrelar você no meu filme
Eu sou a criação agora
Então vamos lá, o ator que pouco
Não me decepcione, flerte

Prosa em cenas

Cena 1: A mulher em modos ingleses

Chá. Eis aí uma coisa que Mariana aprecia. Numa tarde de domingo, ao invés de um passeio no parque, resolveu hibernar. “Hibernar”, uma palavra que sua vizinha deu a ela, quando ela perguntou o que estava fazendo no sábado, quando não a viu. Mariana respondeu que ficou escondida, embaixo das cobertas, pensando na vida, no universo e tudo mais. Então, sua vizinha disse: ‘Estava hibernando então?”, e então Mariana gostou desse termo…Hibernar…hibernar. E então ela se lembrou que nesta próxima semana ela vai trabalhar das oito da manhã até as dez da noite. E então de uma certa forma seu corpo avisou que precisará de descanso. Mariana colocou a chavena de água para ferver. Neste domingo ensolarado ela vai tomar chá e comer morangos com açúcar. Ler um livro e escrever uma crônica. Talvez ouvir música. E então ela olha pela janela e vê as pessoas na rua. Um momento só para mim, repetiu baixinho…isso é muito bom. Arrumou a escrivaninha na sua frente com seu bule e sua xícara. Se ela tivesse um quintal com um gramado e árvores floridas, se sentiria uma autêntica inglesa, e não uma moradora de um bairro de subúrbio de uma cidade do interior. Puxou um livro da estante, sentou na escrivaninha e arrumou as folhas de papel e a sua caneta favorita. E colocou-se a pensar em um Amor que está indo embora, e então no primeiro verso ela olhou e pensou: não vale mais a pena. Esse Amor já se foi, como o último gole de chá que sorveu de sua xícara de porcelana inglesa.

Cena 2: Um passeio no parque

Lívia tira seus domingos para dar uma volta no parque. Coloca uma roupa confortável, pega um ônibus e para em frente do bonito parque de sua cidade. Várias pessoas. Tipos diferentes correndo, caminhando, andando de patins. Ela gosta disso, pessoas, pessoas em seus diferentes biotipos, dramas e sorrisos. O que seria do mundo se todo mundo fosse igual, pensou ela. Um rapaz passa ao seu lado e lhe devolve um sorriso. Ela fica envergonhada e pensa que com certeza o sorriso não era pra ela. E então por um instante ela lembra daquela fisionomia, ela o viu na semana passada, naquele mesmo local, naquela trilha cheia de árvores no parque. Então ele se lembrou de mim?De uma certa forma, pensou ela encabulada. E então ela continuou caminhando. Ajustou o IPOD no modo shuffle e colocou-se a caminhar mais rápido. Talvez ela correria, se continuasse no pique, mas não queria calçar seu salto alto na segunda-feira com dores nas pernas. Parou no meio do caminho para avistar um sagui brincalhão na árvore. Em frente da árvore tinha um banco e então ela sentou, e abraçou as pernas. O homem bonito que sorriu passou do seu lado novamente. Parou e perguntou se já estava cansada, e então ela sorriu de volta e disse que não, que apenas parou para admirar um sagui curioso que estava na árvore em frente. E tentou encontrar o tal sagui novamente, mas ele já tinha se retirado. O homem riu e perguntou se ela o acompanhava na última volta no parque. Ela levantou e seguiu com ele, correndo. Definitivamente, ela amava aquele lugar.

Cena 3: Chimarrão e estrangeirismo

*Dedico essa cena para minha amiga Lisiane, guria querida!

O escritório estava ansioso. No meio da metrópole de Porto Alegre, estávamos todos aguardando a visita de uma instrutora da filial de Campinas. Estava tudo pronto, café bem passado, biscoitos dentro do vidro hermeticamente fechado, xícaras especiais para visitantes, toalha bonita na mesa do café. Marcelo chega correndo com sua chimarreira. “Gurizada, está tudo pronto!Comprei a melhor erva-mate e um pouco de erva-doce para misturar. E a cuia mais bonita!”. Era tradição no escritório, e em todo Rio Grande do Sul, todo visitante tinha de tomar chimarrão. A campainha tocou e o porteiro do prédio anunciou que dona Luciana se encontrava no recinto e perguntou se podia subir. Então todo mundo se preparou na frente de seus computadores, afinal, era uma empresa séria que em plena segunda-feira não comentava o último churrasco com chimarrão(churras e chimas) no domingo. No bairro que eu morava, em Porto Alegre, todo domingo, o quarteirão todo cheirava churrasco e o fundo com carros dava para escutar “Canto Alegretense”, ou qualquer outra música gauchesca.

Não me perguntes onde fica o alegrete
Segue o rumo do teu próprio coração…

Nas ruas, senhorezinhos tradicionalmente vestidos, com suas bombachas e o tradicional bigodão na cara. Eu sempre brinco que quem usa bigode ou é militar, encanador ou gaúcho. Voltando para a cena do escritório, Luciana entra na sala e todos se levantam com um “Oi”, tímido e meio seco. Depois de 2 horas de treinamento, a gauchada já estava rindo e contando causos. E o assunto do dia foi o famigerado churrasco paulista. Luciana defendia o churrasco paulista, dizendo que não via diferença entre a peça inteira de picanha no espeto e a mesma cortada em bifes, na grelha. Depois disso, o churrasco no CTG(Centro de Tradições Gaúchas) foi marcado e a presença dela foi obrigatória. Depois do almoço, nós preparamos um mate bem amargo para ajudar na digestão. Com todo carinho arrumamos a erva na cuia, erva da melhor qualidade, nos atentamos para a temperatura da água, para não queimar a erva. Enfim, todo um ritual para receber um “estrangeiro” e o presentear com uma mate bem amargo. Enfim, tudo pronto, a primeira cuia(entende-se a primeira cuia cheia de água), foi oferecida para a visitante. Ela olhou e disse, “Nossa…será que vou gostar disso aí, dizem que é muito amargo…’. Ela pegou com as duas mãos e pegou na bomba, que ela gentilmente chamou de “canudo esquisito” e começou a mexer como se fosse milkshake de ovomaltine do Bob’s (que aliás, é a única coisa que eles tem de bom). Depois da cara de “eu não acredito que esta criatura fez isso” e um facepalm coletivo, seguido de gargalhadas, Marcelo pega a cuia, verifica se não entupiu a bomba, e arruma todo o mate novamente. Oferece novamente para Luciana, dizendo “Regra número 1: não mexas na bomba guria!”, “Você quis dizer, esse canudinho aqui”, “Não, a bomba, esse canudinho que tu disses se chama bomba!”. No meio de tantas gargalhadas espalhafatosas, Luciana deu o primeiro gole. “Toma”, ela disse, oferecendo a cuia de volta, depois de sorver o primeiro gole fazendo caretas de assustar o Tinhoso. A gurizada olhou pra cara dela, se contorcendo em caretas, dignas de dublê de cena do filme do Exorcista, causadas pelo primeiro contato do gosto amargo da erva-mate fresquinha. “Regra número 2: Tu tens que tomar até roncar cabeça!!”, disse Marcelo, rindo. “Ahhhh, mas não dá para por um pouco de açúcar não?”. “Nãoooo guriaaaaa!Regra número 03: tu jamais pedes para colocar açúcar!”. Luciana tomou, a contragosto, e fez a cuia roncar. Todo mundo se divertiu, Luciana respondeu, quando indagada a respeito do chimarrão, se gostou ou não: “Talvez um pouquinho de açúcar ficaria melhor…” E todo mundo em coro: “Bahhhhhhhhhh…esses paulistas!”

Que saudades…que saudades de Porto Alegre, das tardes com chimarrão e vento minuano no Parque da Redenção!Eu sou paulista, mas gaúcha postiça de coração!

Cena 4: Gustavo na yôga

Gustavo entrou para a yôga. Estava cansado da vida devassa dele, e resolveu levar uma vida mais “zen”. Se matriculou numa escola de yôga, depois de várias pesquisas. Na primeira aula, saiu com dores quase espalhafatosas, mas ficou com o corpo deveras são e mais saudável. Ele fazia aulas todos os dias e estava aprendendo sobre bionergia na alimentação, que diz que carnes são prejudiciais para o equilíbrio entre corpo e mente, o que causava uma certa dificuldade na execução dos asánas(“posturas” do yôga). Gustavo adorava carnes. Nada o satisfazia mais que um belo pedaço de picanha mal-passada. Quando ia nos churrascos, a carne era um prazer imenso que ele dividia com copos de cerveja. Saía do restaurante, entrava no carro e desabotoava os botões da calça e da camisa. E já pensava na próxima carne do final de semana. Nas primeiras semanas, ele foi abandonando a carne, vagarosamente. Mas o problema era nos finais de semana. O cheiro de churrasco o enlouquecia. E cada vez mais ele se sentia inclinado a largar as aulas de yôga, todo final de semana era uma tortura, um verdadeiro karma. Ele era sincero, não conseguia mentir, e a cobrança por partes dos instrutores, por um corpo mais bioenergético e saudável, apertava. Um belo dia, ele saiu em um churrasco com os amigos, e ficou somente na maionese(sem carne!) e uma farofa sem linguiça e bacon que ele comprou. Comprou salsichas veganas para por no espeto e espetinho cafta de soja. Todo mundo sorrindo, se esbaldando, bebendo (quem pratica yôga tem de ser abstêmio de álcool também), e Gustavo ali, só nos vegetais e refrigerante(hipocrisia…). Olhou pra tudo, ficou de saco cheio, afinal, vacas são feitas pra quê?Ele olhava as coxas de frango pingando, molhadinhas no espeto e por nenhum momento conseguiu sentir dó de uma galinha. Foi no barril de cerveja, puxou um chopp e deu uma gostosa e viking mordida na costela no bafo que acabou de sair. Nunca mais apareceu nas aulas de yôga. Hoje ele corre ao ar livre.

Cena 05: A passarela

Depois de um dia de trabalho, Sandra está voltando do trabalho pelas escuras ruas próximas de uma rodovia. Ela tem que cruzar uma passarela para chegar ao outro lado. Coloca os fones de ouvido, e respira fundo, “Mais um dia de trabalho”, suspira ela. E então ela respira fundo mais uma vez e agradece aquela brisa noturna suave, misturada com monóxido de carbono vindo da rodovia. E ela vai caminhando, ora com olhos baixos, ora observando ao redor. Passa na passarela, maconheiros aleatórios falam sobre a vida, o universo e tudo mais. Ela para na passarela e observa as luzes furiosas e velozes dos carros, caminhões e ônibus que passam lá embaixo. E a noite para ela é bela, com todas as luzes de neon e as luzes amarelas dos veículos. Ela olha pra cima, e o brilho de um passado muito distante está sorrindo pra ela. “O brilho do passado”, lembra ela, de ter visto isso em um livro sobre o universo, essas enciclopédias que todo mundo tem em casa. E ficou um tempo lá, na passarela, olhando o movimento. Uma moça passa por ela e pergunta se está tudo bem. Ela riu, disse que não iria se matar. Estava apenas observando a vida em movimento…embaixo do brilho de milhões de milhões de anos atrás. Desceu a passarela, seu ônibus passou, ela subiu, e foi dormir…com um sorriso no rosto. Da hora a vida…pensou ela…a vida em movimento.

Cena 06: Coisas pequenas

Esta cena é um relato pessoal. Cheguei do trabalho hoje,(ops…ontem!sou uma eterna escritora nas madrugadas), as 22h00. Sou o tipo de pessoa que não liga de trabalhar até tarde quando precisa. Eu amo meu trabalho, e não vejo nada de mal isso, pois a recompensa sempre volta. Cheguei do trabalho em casa, tirei os sapatos, dei uma espreguiçada básica, e me sentei em frente do meu quase inseparável e sempre conectado notebook. Enfim, entrei no facebook para ver as últimas atualizações e falar com os amigos. Meu irmãozinho criou um facebook pra ele. Ele tem 9 anos. Isso é bom, porque assim eu sempre, de uma forma mais prático, mantenho contato com ele. Eu sou irmã coruja e guardiã, tô sempre “stalkeando” para ver se ele está fazendo coisas erradas, ou se tem algum espertinho. Nos tempos de hoje, todo cuidado é pouco. Ele me mandou uma mensagem perguntando se estava tudo bem e porque eu cheguei do trabalho naquele horário(eu coloquei essa informação no status). Eu disse que estava tudo ok, e que a semana toda ficarei trabalhando neste horário. Meu irmão tem apenas 9 anos, mas a cabeça dele é bem desenvolvida para entender as coisas. Já escrevi aqui, sobre o fato dele viver rodeado de adultos estressados, logo, assim como eu, ele vai amadurecer muito rápido. Para quem não leu, escrevi isso no texto https://suburbanwars.wordpress.com/2012/07/11/cinema-aspirinas-e-urubus/. Sendo assim, eu perguntei pra ele como estavam as coisas em casa. Ele disse que Nicole, minha irmãzinha de 1 ano e 5 meses acabou de dormir e que meu pai estava roncando desde às 20h00. E naquele momento, que ele escreveu que meu pai estava roncando, eu senti muitas, mas muitas saudades do estrondoso ronco do meu pai. Estava conversando com um amigo, e relatei pra ele, sobre a saudade, e ele comentou que, nos tempos de rebelde dele, quando ele chegava na casa dele doidão, ele deitava no sofá e escutava o ronco do pai dele ecoar pela casa. E então ele me disse, que aquele barulho o dava a sensação maravilhosa de segurança. Porque de uma certa forma, enquanto aquele ronco se manifestasse, ele estaria seguro. Eu brinquei dizendo, que ele se sentia seguro porque o pai dele estava em ronco profundo e não saberia que ele chegou doidão em casa. Mas, brincadeiras a parte, ele traduziu exatamente o que eu sentia, e o porquê de tudo isso. Porque, naquelas noites, eu sabia, que enquanto o meu pai roncava assustadoramente, aquele homem ali naquela cama, ao lado da minha minha mãe, está vivo e me protegendo de tudo o que pudesse acontecer. Se eu passasse mal à noite, eu saberia que ele poderia me acudir a qualquer momento. Eu poderia simplesmente levantar da minha cama e dar um beijo nele enquanto ele dormia. Agora que eu moro sozinha, que eu escuto apenas a minha respiração e o cooler do notebook, parece que falta algo…e isso é o ronco do meu pai!Engraçado como, em alguns momentos das nossas vidinhas, sentimos falta das pequenas coisas(nesse caso…estrondosas coisas!).