Front

Já estive aqui antes, contemplando outros amanheceres. Já estive aqui, andando de um lado para o outro, com as mãos manchadas de sangue. Já vi meus velhos amigos perderem a luta em campos de batalha, minhas mãos e roupas cheias de sangue. Matei meu melhor amigo com um tiro na cabeça, porque ele me implorava para acabar com os sofrimentos que sentia. As tripas saltando da barriga, e ele segurando-as nas mãos, numa tentativa desesperada de botá-las para dentro de novo. Mate-me, por favor, por amor à sua vida, mate-me… Ouço isso me atormentando, dia após dia, ano após ano… Já ouvi os sinos da velha capela anunciar muitos funerais. Pessoas de luto a murmurar orações, cujos ecos invadem meus ouvidos, levando ao longe velhos murmúrios já tanto desgastados, e aquele som entalado na minha garganta. E Deus, aquele velho tolo que não existe… Estou sempre cansado de lamentações. Se eu pudesse, andaria milhas e milhas pelos campos de centeio, e como Holden Caulfield, eu salvaria as crianças de caírem dentro do abismo. Muito prazer minha amiga, sinta todo o calor de minhas mãos trêmulas. Mas você tem as mãos tão frias, que me sinto diante de minha própria morte. Teu rosto já tão fundo, as olheiras marcando um profundo desespero embaixo de teus olhos. Tens a fala mansa, muitas vezes eu não escuto. E olhando dentro dos teus olhos, vejo apenas uma garotinha aturdida, perdida. Talvez, falte algumas mãos empurrando-lhe, naquele balanço velho, perto do velho poço. Quando eu era um garotinho, sem barba na cara, você chegava e me pedia para empurrar-lhe no balanço. Você não tinha forças, minha cara amiga, para dar sentido ao teu próprio voo. Dizia-me que me encontraria algum dia, perto da velha capela. Fiquei esperando, anos e anos. Amigos morreram, guerras aconteceram, ouvi tiros, explosões, gritos de desespero. Cruzei rios, pegando cadáveres que boiavam ao meu redor. Esperava que com o tanto de peso que tinha, eu afundasse, para abraçar o inferno que tanto me espera. Mas era apenas eu e o fedor de meus companheiros mortos em campos de batalha. E hoje carrego no peito uma medalha  de ouro ridícula, pelo trabalho realizado, salvando vidas e a honra de companheiros. Consegue ver, o quão bonito é isso? Lembro-me das noites que passei em bares, enchendo a cara, e ao final da noite saía com prostitutas. Elas amavam um homem de farda. Algumas me davam de graça, e por mais que eu implorasse que aceitassem o pagamento, diziam que um homem de honra deve ter amor todos os dias. E que merda de Amor é esse?

Encarei a vida como um pássaro voando sem rumo no horizonte. Lembro-me, quando criança, de matar um a um com estilingadas, sentia todo o prazer de enterrá-los, um cemitério de pássaros, no jardim de minha casa. E você me ajudava, colhendo flores para fazermos o enterro. Eu já gostava do teu sorriso sádico, desde quando você era uma criança, descabelada, desdentada, com seu vestidinho branco impecável, sempre sujo de terra ao final do dia.  São essas doces lembranças que me fazem escorrer lágrimas de delírio.

Queria agora, dar tiros em todas as direções, ver pessoas correndo de desespero, implorando por misericórdia, enquanto seguro a arma, ouvindo um coral de anjos desafinados a cada gota de sangue derramado, e eu poderia lhe ver dançando nua em cima do mar de sangue formando-se aos seus pés e então eu amaria cada pedaço de tua pele, como se fosse a coisa mais divinamente perfeita neste mundo. E diante de deuses em fúria, cometeria o maior pecado do mundo, e seria então feliz, discordando da boa moral e costumes das pessoas que eu mais amei, apenas você e eu, num mundo vermelho, manchado de injúrias, apenas com a dor e tristeza de passeatas fúnebres. Mas estou aqui neste funeral, e a marcha militar fúnebre vai começar. E o barulho dos tiros ao alto, sou apenas um homem na multidão, um homem condecorado, um herói de guerra, manco… Salvei vidas e quase acabei perdendo a perna. A ironia da vida quase me mata, e os gritos de sofrimento ainda me perseguem, ainda tenho o mesmo pesadelo durante anos. Ainda amo a mesma mulher, ainda desejo casar e ter filhos e contar-lhes crônicas de guerra. Ainda quero andar embaixo da chuva, mas sem que nenhum pensamento me atordoe. No próximo anoitecer, durante a madrugada, serei um andarilho miserável vagando pela casa com uma arma na mão, uma garrafa e murmúrios. Vejo você, dizendo-me que sou apenas um homem fracassado, largado à sorte de meu próprio destino. Se chover nesta noite querida, deixarei que cada gota d’água escorra para meus lábios e que lave este meu rosto de ressaca. Poderei estourar os vasos que herdei de minha mãe. Dentro de cada um deles tem as cartas que ela me enviava durante a guerra. Muitas se perderam no front de batalha, algumas têm manchas de sangue, algumas outras me trouxeram alguns minutos efêmeros de paz e aconchego. Minha velha mãe na soleira da porta me dando adeus. Foi a última imagem dela que eu tive em minha vida. E a saudade do aconchego dos braços de minha velha mãe, é o único calor que me traz um sorriso no rosto. O calor do amor materno, as palavras de apoio, os sermões. Se eu pudesse trazer algo de volta, seria ela, mas os anos passaram, perdi amigos, amei e fui amado. Tento parar de pensar nesses disparates, a fim de manter longe o canhão de meu revólver longe de minhas têmporas.  E é assim todas as noites. Tenho apenas uma bala no tambor do revólver, e sei bem como usá-la. Quando vier me visitar, limpe o meu sangue, troque os lençóis, apague a luz e feche as portas.

Something

O gato dos olhos amarelados no muro, encarando-a enquanto sentada na soleira da porta. Está no momento de frescura momentânea de tragar cigarros de menta. Dispensou o álcool esta noite, será que ela deveria? Talvez um vinho merlot descendo na garganta seja mais anestésico. Anestésico de quê? Talvez ela perca um pouco da razão que restou, já que grande parte dela foi embora, partindo com a ventania e o aroma de eucalipto, enquanto mirava seus olhos no horizonte, naquelas luzes amarelas, pequenas, distantes… O esplendor e a fúria do caos urbano lá no horizonte, como um sorriso, sarcástico, cínico. Ela sussurra uma canção, em tom baixinho, só pra ela. Nem o gato pode ouvir, mas parece que aqueles olhos grandes e brilhantes do gato gatuno a traduzem, lendo-a, como um caleidoscópio. Conheceu um único olhar de caleidoscópio, um azul claro, que muda de cor, fica cinzento, de acordo com o tempo.

A imoralidade cantando uma doce canção, o vento lá fora e a sensação da chuva que caiu em seu corpo enquanto caminhava numa longa avenida num bairro pacato e distante da cidade. A cabeça, cheia de preocupações, de medos, sentimentos, verdades, meias-verdades, mentiras, quase-mentiras, as verdades camufladas, todas elas descendo, corpo encharcado e cada gota d’água que escorria nos lábios dela, era uma dádiva de sentir-se viva. Ela poderia sentir-se completamente bem, e tomar apenas para si, as íntimas sensações egoístas e despudoradas. Queria fumar um cigarro, mas ela estava no meio da chuva. Tinha onde abrigar-se, onde entrar e tomar um café quente. Tinha um livro na bolsa, um bloco de anotações. Talvez ela encarasse o biscoito no pires do café, e poderia rir sozinha, um riso bobo e tímido. Poderia encontrar outros olhos de dilúvio em olhares alheios, mas eles não contariam histórias. Gosta de histórias, de palavras, o silêncio a incomoda ao mesmo tempo em que a encanta. Ela gosta do caos, da desordem, da orgia das palavras criando falácias, traçando, transando e traduzindo o incômodo, desassossego, amargor, pequenas felicidades tímidas querendo uivar feito um lobo, mas aquele nó na garganta, que estrangula, impedindo a maldita e talvez nefasta vontade de colocar para fora todas as palavras que ficaram presas nas estações passadas. Ela poderia falar sobre as folhas secas que chutou durante o outono, as mesmas em que ela sentou em cima nas manhãs e finais de tarde. Ao olhar para a cópula da árvore de folhas multicoloridas, ela via toda a beleza e simplicidade dos raios de sol brincar com as cores, enquanto o vento balançava as folhas que por fim, caiam em seus pés. E teve toda a frieza, mistério e quietude do inverno, e agora a primavera, com todas as cores. Cores… Ela adora cores. Existem pessoas com cores lindas, mas que trancam suas cores dentro de uma caixa. Ela coloca todas as cores dela em um papel ou editor de texto. No dia-a-dia, em frente à outras pessoas, ela carrega as cores dela fechadas, dentro de uma caixa. Elas dançam lá dentro, pintam quadros, cantam, bordam… Tem medo de elas esvanecerem, são como aquarelas, diante das lágrimas do mundo, elas borram e a ação e exposição do tempo e outros eventos externos, fazem com que elas percam a força, a beleza e o poder. Ela não quer perdê-las em um mundo que não para de gritar.

E sentada na beira da cama, ela contempla o tempo cinzento lá fora. Só Deus sabe… Aquele velho bobo, louco e talvez inexistente, o quanto ela torceu para um dia ensolarado. Deixou seu egoísmo de lado, por ela, poderia cair um dilúvio, para poder ficar olhando a água descendo na rua, carregando pequenas flores e frutos da mangueira a alguns metros acima na rua de casa. Ela poderia ver as pessoas caminharem com suas cabeças baixas, escondidas embaixo de negros guarda-chuvas, poderia esperar que uma mulher passasse de mau humor e com uma sacola de supermercado na cabeça, ou um homem com um guarda-chuva prateado que me lembrasse de filmes de caos futurístico. Poderia ver crianças brincando na enxurrada, mas sabe… Faz tanto tempo que ela não vê isso. Ela contentou-se com as gotas d’água escorrendo na janela, e toda a beleza delas caindo, traçando rabiscos d’água no vidro da janela. Quando isso acontece à noite, com as luzes apagadas do quarto e apenas a luz externa, as gotas da janela pintam o chão e o e o corpo seminu deitado na cama, enquanto as hélices do ventilador de teto rodopiam. A chuva lá fora, garoa tímida ou dilúvio selvagem que também lhe contam histórias que ela pode ou não colocar no papel… Ela sente o cheiro de terra molhada, lembranças de texturas envolvendo-a em sonhos, e é tão real como o turbilhão de beijos oníricos e sinestésicos que a deixa em um misto de desejo incontido. É por isso que às vezes ela senta na soleira da porta, altas horas da madrugada, noite adentro na filosofia da beleza, desespero, algumas mesquinharias, bobagens e muitas lembranças. Às vezes toma um chá, seu método natural de afastar os demônios pessoais. Pensa muito no quão é egoísta… Tão egoísta que faz amor consigo mesma e filmes soft-porn são apenas poesias eróticas. Prefere pornografia literária sutil. Mulher com um “q” de elegância sutilmente vulgar, a vulgaridade das metáforas propositalmente colocadas sem querer. Poderia ser mais simples, pensa ela, enquanto fuma ridículos cigarros de menta. Queria ter a simplicidade de poder olhar nos olhos e fazer um discurso, mas a garganta, mesmo clamando para gritar verdades e inverdades, existe um nó quase cego, enquanto na cabeça ela desenha linhas e linhas.

Pensou em vários disparates, que pra ela era uma incógnita agradável. Hoje seu amigo faz aniversário. Vive dizendo que está velho. Ela esperou que o dia fosse ensolarado, esperou que o vento estivesse ideal, que o calor do sol fosse um abraço e não um estorvo de 40 graus. Mas o dia amanheceu triste. Esperou que os olhos e a alma dele não ficassem cinzentos com o dia de hoje.  Pode ser que ele tenha, após ter acordado, ficado algum tempo deitado de barriga pra cima, olhando para o teto, enquanto faz uma retrospectiva dos anos que passaram. Sonolento, incompleto e mal humorado até tomar uma ducha, e enquanto a ducha cai nas costas, aquela sensação de paz, calma, relaxamento e a carícia de uma toalha, como um toque, leve, gostoso. Quando era de manhã, o dia estava meio tristonho, mas isso não deve ter-lhe tirado a vontade de ter um dia só pra ele. Talvez tenha saído lá fora, recolhido o jornal, brincado com a sua bolota preta e gordinha que pula nas pernas e fica cheirando-o quando ele chega de algum lugar em que ela não foi junto. Acendeu um cigarro? Ou ele não é daqueles que acendem um cigarro na primeira hora após acordar? Prefere a beleza e a simplicidade de um café e um pão com manteiga? Ela almejou que ele tenha tido o teu bocado de sorte diária, e que a tal da fração diária da tal sorte tenha sido comprada por um preço justo. Ela já ouviu dizer por aí, que a sorte não prevalece em tudo, dá-se de um lado e tira de outro. Provavelmente ele deve ter pensado na falta de sorte em umas coisas e a existência dela em outras, nada mais normal quando 356 dias de existência se completam novamente. Geralmente pensamos em crônicas de sonhos e pesadelos, boas e más lembranças, realizações, metas, sonhos perdidos, ilusões… Perdas e ganhos. Longe da selva de pedra, ele saiu para um lugar só pra ele, longe de formalidades e falsidades. Ela é péssima em receber e dar felicitações, mas muitas vezes temos de ser hipócritas o bastante e sermos mais “humanos” ou “convencionais”, ela não sabe ao certo qual palavra utilizar para isso.

Nada como um dia após o outro. Hoje o dia foi ranzinza, mas ela almejou que ele não tenha levado as cores frias do tempo para dentro dele, pois apesar dos olhos dele serem de dilúvio, ela gosta de vê-lo quando segue em direção ao sol, e o vento acariciando o rosto barbado ou imberbe e quem sabe um breve arrepio aparece. Lembrou do rosto de menino, do dia em que ele resolveu tirar a barba áspera cuja textura ela gostava tanto. Queria permitir-se dar a ele um texto singelo e levemente imoral, um presente feito de palavras jogadas sem rodeios. É a melhor coisa que ela poderia oferecer ao invés de dizer a ele apenas um “Feliz Aniversário”. E hoje, enquanto a chuva caia torrencialmente em seu corpo cansado, enquanto caminhava na longa avenida daquele bairro bonito e distante do caos urbano, ela não desejou a ele, felicidades para sempre. Ela não deseja utopias para as pessoas que ela gosta, mas deseja que elas tenham sabedoria suficiente para se levantar dos tombos que levarão por serem levianas ou idiotas. Na concepção dela, ignorância é desejar felicidade sempre, desejar uma utopia é o mesmo que desejar a cegueira à alguém. Ela se acha absurdamente hipócrita ao dizer “muitas felicidades” para os outros. Nada como um dia após o outro, nada como os ponteiros de um relógio ensandecido o suficiente para não nos preocuparmos com ele. Todos nós temos algo a dizer… Todos nós, sem exceção. Algo…

Era o relógio de meu avô, e quando o ganhei de meu pai ele disse Estou lhe dando o mausoléu de toda a esperança e todo desejo; é extremamente provável que você o use para lograr o reducto absurdum de toda a experiência humana, que será tão pouco adaptado às suas necessidades individuais quanto foi às dele e às do pai dele. Dou-lhe este relógio não para que você se lembre do tempo, mas para que você possa esquecê-lo por um momento de vez em quando e não gaste todo seu fôlego tentando conquistá-lo. Porque jamais se ganha batalha alguma, ele disse. Nenhum batalha sequer é lutada. O campo revela ao homem apenas sua própria loucura e desespero, e a vitória é uma ilusão dos filósofos e néscios.