Relevo

Uma vez eu queria ser a maior
Dois punhos de pedra sólida
Com um cérebro que poderia explicar
Qualquer sentimento (Cat Power, na canção “The Greatest”)

 

E a voz da pessoa que falava comigo pareciam flutuar no ar, assim como o neon das placas luminosas e dos parcos veículos que trafegavam na rua. Eu apenas concordava com a cabeça, enquanto andávamos cansados chutando pequenas pedras no meio do caminho, e nem ao menos, acredito eu, que pensamos no tal poema do Drummond. Apenas chutávamos pedras, eu concordava com o que ele falava, enquanto aquecia as mãos dentro dos bolsos, tateando o fundo, em busca de algo ao qual eu não sei. O que procuro? Ele achou. Achou moedas.

 “Dá para comprar um cigarro solto…”

E deu risada.

Dei risada também…

Mas estava frio demais para rir.

Não…

 Eu estava fria demais para rir…

 Continuamos chutando pedras, ele falando, eu concordando, o vento no nosso rosto, a noite dando beijos em nossos rostos, sem pedir permissão. Corremos, achamos que era nosso ônibus, cansado da nossa lerdeza dos passos chutadores de pedras. Nos enganamos. O ponto de ônibus lotado.

Ficamos na beira-fio da calçada, em pé ao lado de um poste. Meu amigo acendeu um cigarro. Continuou falando do seu dia, dos problemas do trabalho, do professor filho da puta que o reprovou, e em pé ao lado do banco, à mercê da espera, estava um rapaz, de tez alva, olhos e cabelos claros que escondia embaixo de uma boina que por vezes tirava para ajeitar à sua maneira os fios dourados bagunçados. Alto e magro, carregando uma mala de viagem que segurava com força.

Todas as veias e tendões ficaram aparentes na brancura da pele, formando pequenos rios azuis, que naquela penumbra formada pelas luzes amarelas dos postes da avenida, tornam-se relevos quase sutis. Havia algo indecente naquele rosto, naqueles braços, misturando-se numa beleza sórdida. Sórdida e triste. A beleza triste, olhar distante e com um pé na loucura.

Lunático. Olhos de caleidoscópio.

A ponta da língua seguindo cada linha desenhada naqueles braços. O cheiro na pele. Dizem por aí: questão de pele.

Pele. Suspirei. Um devaneio.

Um devaneio impuro e um tanto insano.

 Os braços, pulsos obscenos, as mãos presas na alça da mala, ou as alças presas nas mãos? Meu olhar preso entre o chão, na crueza do terrível e mesquinho disfarce, o medo de nossos olhares se cruzarem. Mas meu voyeurismo queria ser mais escancarado.

Uma expressão de pressa, misturada com impaciência, ansiedade. Os lábios do meu amigo se movendo, desenhando palavras cujo som se perdia. Eu apenas concordava, balançando. Do outro lado da via, o ônibus de meu amigo se aproximou e parou no semáforo. Me deu um abraço.

Um abraço forte.

Atravessou a avenida correndo, como sempre fazia. Acenei com a mão. Voltei a cruzar os braços, estava com frio. O rapaz sorriu. De canto de boca. Seria ele talvez uma pessoa de meio-sorriso? Teria a vida cheia de amores? Amores não-resolvidos, amores caóticos. Era um homem belo, mas desde quando, a beleza é um padrão para quantificar amores? Os amores podem ser como os dramas de teatro. Os amores podem ser vazios e sem sentido. Os amores podem ser reprises incessantes da Commedia Dell’Arte: O Pierrot que amava a Colombina que por sua vez amava o Arlequin que talvez, não amasse ninguém…

Ninguém além dele: os amores podem ser amores de “Quadrilha”. Ahhhh Drummond…

Os amores podem começar pela visão de “uns braços”…

“Vai demorar muito?”, perguntou ele para a garota do seu lado.

Ela apenas balançou a cabeça, enquanto encolhia mais o corpo para se proteger do vento gelado.  E então, o rapaz fixou por quase um minuto cheio, o olhar perdido no horizonte. Pequenas rugas de expressão se formavam no canto dos olhos. As mãos apertavam com mais força as alças da mala que carregava. Arregaçou as mangas, ficando com os antebraços de fora, chegou mais próximo da luz, os relevos dos riachos de veias e tendões ficaram mais aparentes.

Aquilo tudo era de uma obscenidade imposta e escancarada. Assim, sem querer.

A saliva desceu seca em minha garganta, era o calor daquele ato minimalista das mangas de camisa arregaçadas e da força imposta pelo peso da mala.  Relevos… Relevos sutis de veias e tendões. E as linhas de expressão se formando no rosto.

Tensão.

A beleza imposta sem querer, é sempre mais obscena que corpos e pudores escancarados no ato de ter uma beleza voluntária. Era apenas um estranho na multidão, numa segunda-feira comum, um tanto fria para uma primavera. Um personagem do meu espetáculo ao qual eu sou uma voyeur.

O ônibus chegou, ele subiu.

As cortinas se fechavam, o espetáculo acabava ali, ao final da despretensiosa apresentação. Mas ficou em minha memória, aquela beleza parnasiana, exposta na galeria das emoções e pequenas paixões do cotidiano, com um “q” machadiano*.

*OBSERVAÇÃO: Machado de Assis tem um conto belíssimo chamado “Uns braços”.

 

 

Mãos, linhas de braço…

2 comentários sobre “Relevo

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