Navio e armas de caça

– Não hoje. Hoje não é o dia de acordar de ressaca e ir trabalhar. Hoje é dia de fugir da cidade.

 Olhava lá embaixo e via a noite em volúpia. Não tinha medo de cair da janela, sabia que não era um gato com sete vidas, mas gostaria de sentir todo o torpor de uma queda. Seria torpor? Qual a sensação de cair? Seria como os sonhos? Ele é apenas um garotinho explosivo, bebendo para morrer, procurando os sonhos perambulando na cara de agonia dos outros amigos bêbados no sofá e em outros cantos da casa. Tropeçando em garrafas e vômito, encontrou a porta para dar o fora. Desceu as escadas cambaleando, com um indefectível cigarro mentolado na boca.

 -Coisa de mulher… Cigarros mentolados, cigarros de cereja…

Mas ele precisava de cigarro. Suzy fumava cigarros Black sabor cereja. E apenas fazia pose, segurando uma taça cheia de vinho barato. Mas era bonito, seus trejeitos de musa dos anos vinte, com sua piteira preta, talvez faltasse as luvas pretas…

 Chegou na rua, olhou no horizonte. As luzes amareladas penduradas no poste, mostravam um longo e reto caminho. Talvez, quem sabe, isso o levaria até Deus, aquele velho tolo.

 -Não posso parar agora, não posso… Existe algo na estrada me esperando.

 E andava, pisando em merda de cachorro, chutando lixo. Cantarolava canções incompletas e sem ritmo. Queria romper o silêncio. Os vizinhos xingavam, atiravam lixo na sua cabeça. Ele, de repente silenciou. Era preciso o silêncio, para encontrar as respostas que tanto precisava. O silêncio precisava ser ouvido… Escutou o barulho do líquido marrom balançando na garrafa… Acendeu outro cigarro, tomou mais um gole do velho Jack, que tanto lhe dava razão… Razão… Olhou pro céu. Pensou que as estrelas poderiam cair, de graça, um vacilo sabe? Talvez encher a rua de pequenos pedaços valiosos.

-Mas papai disse que estrelas são apenas brilho do passado. Papai bobo. Bobo… Morto… Papai Morto.

 Perdeu sua fé, elas estavam em slides do pastor da igreja. Queria encontrar o oceano, pegar um barco e desaparecer.

 -Barco não… Não quero um barco, quero um navio…

O oceano era agora, o que ele precisava para o seu dia. Queria ter um navio, igual ao que estava na vitrine da loja, ao qual parou. –

-Um navio… Papai tinha um desses, em cima da mesa, talhado na madeira.

O que ele escutava era apenas o som da sua própria voz, e o vento, fazendo papel de jornal voar pela rua, passar e enroscar pelas pernas.

Um navio… Quanto custava um navio? O da loja custava setenta reais. Mas ele não queria um navio dentro da garrafa, ou daqueles que enfeitam mesas… Queria um de verdade. Continuou andando na rua reta e longa…

-Não posso parar agora, não posso, talvez eu encontre Deus no final da estrada, eu não posso parar agora. Preciso de um oceano, profundo, tão profundo quanto meus dias.

Goles e goles do velho Jack Daniels junto a passos cambaleantes. Acabou os cigarros. Parou e sentou na sarjeta. Pensava… Pensava na temporada de caça. Quando menino, caçava capivaras com o pai.

 -Papai tinha uma espingarda…

 Ele apenas acompanhava, com sua arma de chumbinho. Era apenas um garotinho, com sonhos de pegar em armas, romper com o silêncio, barulho de tiros, bicho agonizando, queria ter o cheiro de ferrugem escarlate nas roupas.

-Você não aguentaria o tranco da espingarda… Você não aguentaria o tranco da espingarda. Você é apenas um garotinho franzino… – diziam as vozes paternas susurrando na cabeça…

 Vários tiros depois e as capivaras apareciam ensanguentadas. Ainda lembrava-se do cheiro de ferrugem do sangue coagulado na camisa do pai. Eram ícones de pesadelos escarlate. Nas noites do acampamento de caça, ele apenas queria fugir. E hoje, ele bebe até a morte. Hoje é o seu dia de rei, em busca de um navio. Ele era apenas um garotinho que queria uma arma de caça e algumas capivaras mortas pelos seus tiros e risos de sadismo.

-Quando eu terminar de percorrer o oceano, eu vou vender meu navio lotado de armas de caça. Vou dar o dinheiro para um abrigo de criancinhas. A temporada de caça acabou… Os meninos não colocam as mãos em armas de caça. Eles não sonham com navios, assim como eu… Como vou vender meu navio e minhas armas de caça?

 Andou mais alguns metros, encontrou um morador de rua tentando dormir. Ofereceu um gole de uísque. Sentou ao lado do velho, começaram a conversar como se fossem amigos de longa data. Acabou os cigarros, acabou a bebida. Restam-lhe boca seca, visão entorpecida e a praia a poucos metros.

– Hey amigo, neste longo caminho, tentei encontrar Deus e um navio. Deus não apareceu,mas a praia está ali, vou procurar meu navio e encher o convés dele de armas de caça. Se você tivesse dinheiro, você compraria meu navio e minhas armas?

O velho balançou a cabeça, talvez aquilo seja uma afirmação.

– Adeus meu velho… E se as estrelas caírem de graça, guarde-as e compre um barco. Não… Compre um navio, cheio de armas o que lhe sobrar, compre um pouco de sorte. Qual o preço que você pode pagar por ela? Deve custar um bocado de poeira de estrelas tolas. Eu não posso parar agora, eu tenho uma coisa me esperando ao longo da estrada.

 Ele procurou um oceano profundo, encontrou uma maneira triste de dizer que naqueles tempos ele era um escravo dos próprios sentimentos. Talvez, seus sonhos estejam enterrados na areia. Talvez ele tenha encontrado Deus no meio do caminho. Mas, pra ele, tudo era apenas ilusão, tal como as armas de caça e os navios. A ilusão nunca teve um gosto tão salgado…

Se eu fosse jovem, fugiria desta cidade
Enterraria meus sonhos debaixo da terra (“Elephant Gun”, Beirut)

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