Estoicismo de coisas monásticas e mundanas

I

Santiago estava tomando um café. Era uma noite quente, 35 graus às 20h00. Estava esperando o funcionário novo chegar. Um aprendiz. De pouco sabia da vida, mas da Morte sabia que ele não sabia era nada. A campainha tocou. Olhou pelo circuito, o rapaz miúdo, tacanho, sem nenhum estereótipo aparente. Estava mais pra um nerd, pensando bem, na segunda análise. Tomou um gole lento e saboroso do café, abriu a porta, esboçou um sorriso,

-Boa Noite Tadeu! Tudo bem? Está preparado?

-Boa Noite Senhor Santiago! Acredito que sim… Vai ser um desafio e tanto não é? Já temos algo? – disse o guri, com ares de surpresa, misturada com curiosidade e aquela pitada de medo do desconhecido, disfarçado com a fala rápida, afobada e insegura.

— Oras! Que entusiasmo! Aceitas um café, antes de ir pra sala de preparo? E pode me chamar de Santiago, tenho 35 anos apenas. Sou um jovem adulto, digamos assim!

Tadeu sentou-se na poltrona, olhou para o quadro na parede: “Ajudando na hora da partida”. Um quadro bonito, retratando um campo de lírios brancos.

— Bem melhor que crisântemos não é? – disse Santiago, estendendo o café.

— Crisântemos? Nem sabia o nome dessa flor. Pra mim, é tudo flor. Minha mãe gosta de plantas. Eu gosto de cactos. Não precisam de água, sobrevivem comigo.

—Crisântemos são bonitos, mas são flores tristes. Uma flor clichê. Fico feliz quando a coroa fúnebre não é de crisântemos. A Morte poderia ser menos clichê. Mas eu entendo: o clichê custa-nos mais barato.

—Vamos, vou te mostrar o laboratório. Coloque essas roupas de proteção, e não se esqueça das luvas e da máscara. O cheiro de formol é forte.

Desceram as escadas, na casa do fundo dava para uma garagem com 2 carros fúnebres e 2 furgões.

— Quando vamos no IML ou hospitais retirar um corpo, utilizamos as vans. Elas tem de ser higienizadas todos os dias, de preferência após a retirada do corpo. Se o cadáver estiver em decomposição, a desinfecção deve ser imediata, senão o fedor fica, e demora muito tempo pra tirar ou, nunca sai.

— Senhor, opa, Santiago, o cheiro é tão ruim assim?

— Acredite amigo. Quando sentir nunca mais vai esquecer. Ele gruda em você, é persistente. Parece atá que nossa alma fica com isso. Mas sai, com um bom banho tomado, um pouco de borra de café ou limão.

Entraram numa sala de tamanho mediano, com três macas de anatomia, uma bancada com aparelhos de infusão, uma mesa móvel com bisturi, dissecadores, aspirador nasal, tesouras, agulha e linha, um armário com produtos químicos e um rádio, que tocava baixinho uma frequência de músicas antigas. Tadeu ficou imóvel, olhando aquele ambiente branco, as canaletas de escoamento de material biológico, o líquido na bomba de infusão e sobretudo, o cadáver coberto na maca central.

— Venha, vamos preparar este corpo. – Disse Santiago, colocando um avental por cima da roupa de proteção. Tome, vista também. Vamos começar devagar.

Ainda meio paralisado, mas voltando a si, olhou para o corpo disposto na maca. Era um homem, aparentemente 45 anos.

— Este é o Fabiano. Vítima de bala perdida. Morava na região do Paiol. Infelizmente estava na rua quando começou o tiroteio entre facções rivais. A bala perfurou o pulmão, ele já tinha problema de enfisema pulmonar. A família deixou a roupa e os sapatos não quer que tire a barba, pois ele amava ela e tinha um cuidado especial com a mesma. Foi a única exigência, querem um velório simples, caixão compensado. Nada muito luxuoso.

—Vamos fazer um processo para higienização e conservação do corpo. Chama-se Tanatopraxia. Faremos infusão de soluções de formol através de uma incisão perto da clavícula, para pegarmos a carótida e a jugular e vamos introduzir uma cânula de infusão. Faremos também aspiração de cavidades abdominal e intracraniana. Intracraniana a partir das fossas nasais. Parece assustador né? Mas isso traz maior segurança para o velório e consequentemente um pouco de conforto para a família.

— Parece difícil, na verdade. O que eu vou fazer?

— Você ai massagear o corpo para auxiliar no dreno do sangue. Depois do processo, vai me ajudar na lavagem do corpo e tamponamento, para prevenir qualquer tipo de vazamento. Hoje, no processo mais complexo, vai observar. Aos poucos pegarás o jeito.

O corte necroscópico desenhava um Y no corpo. Um cheiro forte e incomum ao Tadeu, junto com o cheiro de solução de formol das bombas injetoras o faziam respirar devagar, mas o coração batia acelerado.

— Está pensando quem está aí?

— Oi? – disse Tadeu, num pulo.

— Sabe, eu sempre trabalhei sozinho. Sem exceções, desde o acolhimento da família, a venda, a preparação do corpo, o funeral: em todos esses anos, me deparo com essa pergunta.

— Não entendi, que pergunta?

— Conheço esse olhar meu caro. Você está se perguntando: “Quem realmente era ele? Será que viveu intensamente?” – disse, Santiago, com um olhar de quem sabia e viveu tudo aquilo, pois dia após dia, a Morte sempre bate na sua porta.

— Pois é… Desculpa, está certo. Só não queria demonstrar minha perplexidade. Quero ser forte, e fazer meu trabalho. Não quero que me aches um maricas. Mas isso… – disse ele massageando as mãos rígidas do cadáver – É o momento mais sórdido ao qual eu passei. Minha pergunta: Seria ele, essa pessoa boa ou má? Como lidar com isso? Dia a dia? Poderia ser meu pai, homem bom, de honra. Poderia ser um uma pessoa cruel, aqui nessa mesa!

— Independente de tudo, você sempre realizará o seu trabalho como se fosse uma obra de arte. Você vai lapidá-la. Se a pessoa era má, com o seu trabalho, você irá deixá-la muito boa.

— É complexo!

— É complexo meu caro, mas, ao mesmo tempo, além disso, filosófico, quase metafísico.

— Metafísico? Por conta dos questionamento do “além” da vida?

— Muito mais do que isso. Aqui nesta mesa, esse corpo frio é resultado de milhões e milhões de anos de evolução.

— Uma evolução explicada pela ciência, mas e a alma? Eu acredito que exista uma alma, mesmo ela a ciência não tendo explicações para o fato.

— E temos o que intriga os filósofos desde tempos antigos: a ótica do bem e do mal. O que será que este homem foi: bom ou mal?

II

— Sarah, já lestes “Admirável Mundo Novo”? – disse Hélio, enquanto tomava um gole de cerveja escura.

— Já sim, por que? – olhei pra ele enquanto colocava o molho de receita secreta, num anel de cebola de esfera perfeita.

— Lembra da cena, do enforcado, balançando, demasiadamente humano?

— Sim! Cena extremamente perturbadora. Fiquei dias pensando no corpo, balançando tal como um pêndulo e o quanto somos robóticos num mundo ao qual, deveríamos ser selvagens.

— Enquanto houver sensibilidade entre nós, estamos bem. Quando encararmos a vida como pêndulos, vamos terminar como sobreviventes na luta pela vida, cada qual a sua maneira, porque no fundo, a vida sempre foi isso mesmo: SOBREVIVER.

E então Hélio deu aquele sorriso triste de Pierrot: digno de uma cena tragicômica da commedia dell’arte, apertando os olhos daquele jeito que eu tanto amava.

Foi a última vez que eu vi Hélio.

Eu, Sarah Almeida, 28 anos, tal como um pêndulo, dei voltas, Fui uma bússola, mas por vezes vivi quase sem rumo. Meu corpo e mente foram ao sul, norte, nordeste. Esquerda, direita, centro. Ele se deteve no sudeste, numa São Paulo louca e apressada, e meus pés apontaram para o sol que nasce de frente pra minha janela, quando meu corpo parou de convulsionar de desespero.

AGORA,

Há uma fileira de formigas negras entrando e saindo pelas minhas narinas. Sinto o fervilhar de larvas brancas e macias dançando em meu ouvido esquerdo. Sinto o tragicômico pedaço de carne entalado na minha garganta. A garganta que já se entalou de anos e anos de pequenas decepções do cotidiano, mas que bradou feliz durante os momentos de felicidade. Dias atrás, derrubei gelo em meus pés quando me desesperei momentos antes da minha morte, enquanto gritava-me o desespero ao sentir-me sufocada. Tentei gritar, mas a voz não saia, o ar não entrava em meus pulmões. A casa impecável e limpa me recebia. O pedaço quente de carne tenra e saborosa obstruindo o ar que me mantinha viva.

O chão duro e frio era como a Morte me chamando:

VENHA.

III

Duas semanas atrás, antes da Indesejada vir me chamar em sua jornada solitária, a crueza do verão já não me era mais contemplativa.

Eu enxergava ao meu redor uma sordidez de sorrisos desconhecidos e alheios num misto de emoção e raiva atenuadas por uma pitada tênue, porém sagaz de emoção. Olhava meu destino no redemoinho de espuma que formava-se na dose de café forte com mancha de leite. Pedi um pão com manteiga levemente aquecido, com toda aquela gordura amarela e sorridente. Uma mordida, e minhas artérias entupindo… E eu imaginando minhas lamúrias ao longo de exames de colesterol, diabetes, triglicérides e eletrocardiogramas. O destino foi tão trágico que agora estou agonizando com o corpo decomposto largado ao chão. O piso antes branca está repleto de uma mancha marrom e preta.

Daqui a pouco os vizinhos reclamam do cheiro. Em breve. Logo vão reparar nas moscas zombeteiras no vidro da janela, e a quantidade de besouros que circulam pela casa. Apesar de morta e putrefata, sinto saudades do cheiro de café…

A saudade talvez seja a delicadeza mais triste que podemos ter. Sempre pensei nisso, quando viva.

A saudade de sentar numa cafeteria ou bar e observar a beleza e a crueza do caleidoscópio das relações humanas: lembranças, associações e detalhes, as pequenas ranhuras de um quadro que estava se formando ali, naquele momento. Os gestos, as expressões, as rugas, os olhos… Os olhos se apertando, os olhos sorrindo, os corpos se abraçando, os corpos se afastando e tudo isso me abraçando com tanta força a ponto de rasgar meus poros. É como se todas as falácias que sangram alimentassem minha vida, gritando nos meus ouvidos. Eu me refugiava nas minhas aquarelas tímidas e a cada pincelada eu construía traços que podiam servir de refúgio na minha pele. Os pássaros de Bukowski me acompanharam nas costas em forma de tatuagem aquarela. O pássaro azul trancafiado na costela do lado esquerdo. Os pássaros vermelhos das quatro e meia da manhã sempre voavam em liberdade do flanco das costas e se tornavam pequeninos em volta do pescoço.

O pássaro azul… Escapuliu com o descolamento da minha pele putrefata. Os pássaros de tom vermelho lançaram suas cores para o pecado. Estou morta. Mas ainda assim sou dura demais comigo mesma.

IV

Um dia antes de morrer, quatro horas despretensiosas da tarde, estava numa esquina observando os maxilares do motorista de ônibus se movendo com o pão cheio de vinagrete. A gordura da carne estava escorrendo pelos beiços. As mãos do churrasqueiro mexiam com a carne e dinheiro ao mesmo tempo. Os homens da construção ao lado do ponto de ônibus limpavam as bocas no antebraço. Os traços grosseiros cansados dos anos de labuta pesada, misturavam-se sutilmente com o instinto mais primitivo: a fome. Eu estava ali, parada e quieta nas minhas observações com um berro tresmalhado, uma virulenta congestão causada por um mero axioma da vida, com um alívio de culpa. Culpa por que? Oras, eu julgava a pausa merecida do motorista de ônibus, que pediu dois espetinhos e pediu para colocar num pão velho com vinagrete. Comeu com um sofrimento que doía, pois os olhos se fechavam quando a boca se abria inteira para devorar o pão e os poucos minutos da pausa merecida.

Estava ali um homem simples, com uma gratidão que não cabia dentro de si. Ele subiu no ônibus, cumprimentou cada passageiro cansado e suado da labuta de todos os dias. Cada corpo cansado e intoxicado do sol que insistia em provar sua existência. O sol que aquecia o corpo daquelas pessoas, era o mesmo cujos raios entravam pela janela e tentavam, em vão, aquecer meu corpo gelado e sem vida no piso na sala de jantar. A única coisa que me olhava, era um girassol sorridente no parapeito da janela.

Enquanto uns amaldiçoavam o verão, senhoras com traços brandos e alegres diziam que a tarde estava perfeita.

Perfeita… Quais nossos critérios para a perfeição? Lembro-me de que anos atrás, numa conversa despretensiosa com cerveja e batata frita, um amigo dizia em ares de contemplação:

“Porque ela era perfeita. Um ser intocável, loiro, olhos claros, shorts jeans e uma camiseta do Superman. Ela queria passar e eu estava no seu caminho. Ela me pediu com doçura: Com licença.”

Ela era perfeita. PER-FEI-TA. Os lábios dele se mexiam como se estivesse soletrando. E eu pensava se aquilo, aquela contemplação era de fato uma felicidade clandestina ao qual eu nunca tive. Uma felicidade clandestina unicamente dele, mas ele estava lá, dividindo comigo essas pequenas ilusões e devaneios, essa espécie de Amor Inventado, um Amor platônico que sustenta por anos. Talvez um dia, quando lhe baterem à porta e chamá-lo de volta, ele abandone aquele amor inventado de um metro e sessenta.

SESSENTA…

V

Sessenta besouros nascendo de minha boca e orifícios agora. Sessenta dias atrás pensei num poema do Augusto dos Anjos Eram 18h30 e horário de verão… Da janela do ônibus durante o trânsito caótico da cidade vi uma mulher aparentemente grávida fumando crack. Era um local conhecido por toda sordidez de acontecimentos mundanos da cidade. Com vestes sujas e mãos trêmulas, acendia um cachimbo improvisado. A cada tragada eu saia da minha introspecção e sentia meus pulmões queimarem. Eu sentia a dor dela, de alguma forma muito íntima, era como se eu também fosse um ser jogada à sorte do próprio destino, e agora, tal como ela, apodreço no chão da minha própria casa, com toda a impertinência de um abandono, exceto as bactérias e toda variedade de insetos necrófilos fazendo de meu corpo seu alimento e uma espécie de útero gigante. Da morte nasceu a vida: milhares de insetos carregando o meu DNA. E aquela mulher das 18h30? Qual era seu alimento? Qual seria sua morte? Ao lado dela um velho de costelas protuberantes quase que perfurando a pele, comia uma marmita com as mãos, pegando os grãos de arroz e feijão com as pontas dos dedos, mastigando de maneira afoita. A mulher que carregava um filho no ventre estava totalmente fora de si. Acendia, puxava, soltava. Delirava. E a criança gritava, dentro daquele ventre como se implorasse para sair dali. Um grito ensurdecedor, um corpo talvez já morto, tal como o meu, mas que não estava em paz. E o homem que engravidou aquela mulher? Foi amor ou apenas um escarro de violência, de esperma bruto, cruel e insensível? A dor que rasga as genitálias num ato de prazer não consentido. Quando na vida o prazer podia ter tudo para ser lindo, a sordidez da bestialidade humana dá um sorriso, e escarra…

“Escarra… Escarra nesta boca que lhe beija”, dizia Anjos.

Uma cópula forçada nas vielas da grande cidade. Ela estava lá, sozinha, tentando ter uma falsa paz teleguiada causada por pedrinhas amarelas venenosas e traiçoeiras. O velho da marmita escarrou no chão, limpou as mãos engorduradas na bermuda rasgada e entregou parte da marmita para a mulher grávida. Alucinada e quase paralisada, exceto pelas mãos trêmulas. Retribuiu um sorriso agradecido ao velho das costelas protuberantes. Foi o sorriso mais delicado e perturbador que eu já vi, nos cinco minutos de trânsito que foram uma eternidade dolorida.

VI

Na casa ao lado da minha uma mulher reclama do cheiro. Diz que há dias sente cheiro de “bicho morto”. Somos reduzidos a isso: bichos. Os jornais e correspondências se acumulam na minha porta há dias. Na primeira semana de minha morte, a vizinha da casa ao lado varreu minha calçada. Ninguém sentiu minha falta, o telefone tocou, mensagens chegaram, devem ser mensagens preocupadas, mas e as visitas? Cadê o “bater em minha porta”? Cadê a preocupação de fato? Como eu poderia dizer que estou ali, trancada e sozinha, esperando por um pouco de atenção e um velório com caixão aberto, para que possam olhar para meu rosto e dizerem o clichê: “ela era tão nova e bonita”, “para morrer, basta estar vivo”. Nenhuma mulher… Nenhum homem. Nenhum homem que eu amei.

Já amei muito nessa vida, já amei muito poucos homens. O pouco no muito. O muito, no pouco. Já amei muito os relevos que formam a tatuagem desenhada no peito e no antebraço. Duas cicatrizes artísticas que resumiam em cores e traços o homem deitado ali, que me ligava uma e meia da manhã querendo me ver. Falácia. Mentira. Não amei, mas fingi que amei. No primeiro acorde de uma canção desafinada eu fui embora sem olhar pra trás. Ele era cheio de acordes desafinados e cordas arrebentadas. Cinco minutos depois ele colocou uma foto de um outdoor em forma de guitarra paralelo à lua cheia que estava no céu. Era apenas a Lua e somente ela que ele amava. Essa coisa brega. Fui embora sem olhar pra trás. Ele nem sequer notou minha presença, mas o relevo das tatuagens dele, ainda permanecem na ponta dos dedos, não como uma lembrança, mas como um erro.

Já amei um homem que tinha olhos gentis e um abraço acolhedor. Uma mente brilhante e um olhar gentil. Mas foi platônico. Um velho amor de tempos de pré-puberdade, reencontrado anos mais tarde, mas que nunca foi real, via de fato.

Já amei um homem ao qual eu fui apenas um pequeno grão de areia existente em seu imenso planeta chamado “cama”. Entre uma canção e outra, fui apenas uma nota solta e esparsa.

Já quase amei um homem, mas gostei mais do guarda-chuva dele, ao qual nunca mais devolvi. Ele também nunca mais voltou. Estamos quites. Ao menos tenho como me proteger da chuva.

Já amei um homem que cantava murmurando no banheiro da pousada de nosso romance de 2 dias. Um romance de dois dias ao qual eu olhava aquele homem cheio de inseguranças, encolhido como um feto. Fiquei na penumbra encostada na parede tentando entender toda aquela dinâmica de amores, desamores, política, educação e toda a modernidade tão líquida quanto o copo de água que em vão, foi uma tentativa falha de salvar-me do pedaço de carne traiçoeira. A carne que peca, que se contraí, tal como um copo de cólera, nos dá aconchego porém nos adoece. Tal como um lobo das estepes, à procura de alimento. Penso nos pecados da carne metaforizados na figura de um lobo: o lobo rastejando e arranhando a presa. Sentimos a dor, os uivos, ficamos cegos, pois o Lobo em sua fome nos arrancou os olhos, nos umedeceu com sua língua, nos enrijeceu com seu toque. Paramos. Nos lamentamos. E dizemos: “Nunca mais”. O tempo passa, e o Lobo está lá, na espreita, sempre com fome, com seus olhos brilhantes na penumbra. As cartas de amor se extinguiram, palavras de ceticismo tomaram seu lugar, num mundo mesquinho cheio de desespero e incertezas.

Alimentei meu ceticismo e pecados da carne mal sucedidos…

Com álcool.

VII

Displicentemente, tal como uma criança implorando por doce, afogava minhas maledicências diárias em um copo de uísque sem gelo. Descia garganta adentro, queimando. Calhamaços e mais calhamaços de lamúrias, piadas de humor negro e ossos do ofício ecoavam no boteco do bairro. Havia ali uma disputa entre poucos amigos. Quem bebia mais? Vira um, vira outro… E a conversa rolava solta, entre risos alegres e etílicos. Quando bebia sozinha, os monólogos eram ao mesmo tempo, incríveis e enfadonhos. Sozinha, eu não gostava de falar muito. Sou excelente ouvinte, péssima em dar conselhos. Ouvia meus monólogos internos. Jamais respondia, porque não sabia o que dizer.

— Parei de beber. Mas voltei. – disse Fábio, depois de pedir um velho Jack.

— Porque? Pensei que você era mais forte que eu. Que bom, não aguentava mais te ver com seu copo de água com gás, gelo e limão.

— Pensa pelo lado bom! Você voltava pra casa com segurança. Eu era o sóbrio da história toda. Teve aquela vez, que eu abri a porta pra você. Sua coordenação motora estava pior que o normal—rindo, de canto de lábio.

— Bullshit! Você sempre conta essa. Sempre consegui abrir portas. Mas me conta, porque voltou pra essa vida de boemia?

— Ser professor é complicado. Fiz uma proposta aos alunos. Pedi para representar um ponto de vista sobre a violência urbana usando literatura.

— Ótima proposta, mas o que lhe atormentou tanto a ponto de em menos de 5 minutos já ter matado mais da metade da dose de uísque?

Fábio pegou a pasta, tirou uma folha de caderno. Lá tinha o nome do aluno, série e data. O texto, cercado de rabiscos e desenhos aleatórios, era cercado de erros crassos de português. Olhei a série,

— Segundo ano do ensino médio?

— Sim. Mas leia o texto.

O texto falava de um jovem na comunidade. O funk rolando adoidado, a polícia também.

“Varios carro de som tudo tocano mc zax e jerry” (sic)

Ai a b.a.e.p pia… dano tiro de boracha ai acerta na perna se corre mancano locão a b.a.e.p passano por cima dos outro os mlk caino de moto sangue pra todo lado”

Me encolhi na cadeira. A princípio, me deu horror os erros crassos de português. Era o horror aos ossos do ofício, horror da ignorância alheia, horror à falta de perspectiva de tentar sair do que era comum. Depois me deu outro desconforto: o que estava escrito ali era muito mais horrível do que o analfabetismo em si, e talvez as falhas de um sistema educacional. Bebi outro gole de uísque. Olhei nossos copos então quase vazios. Chamei o garçom. Ele encheu os copos.

“os mano da tiro leva tiro da facada leva facada e tudo numa boa. isso e a violencia.

ass: cachorro”

– Os mano da tiro leva tiro da facada leva facada… E TUDO NUMA BOA. – disse Fábio. – Tudo numa boa.

– Ok. – coloquei o papel na mesa. Suspirei, retornei pra minha zona de conforto, que já não era mais a mesma.

– Um brinde! – ergui o copo

– A que? – disse Fábio, erguendo o copo e parando poucos centímetros antes do meu.

– Ao estoicismo do seu aluno, tão resignado em aceitar seu destino e a nós que não sabemos levar tudo numa boa.

– Zenão era um cara meio louco não é? – disse ele ao tilintar nossos copos.

Também foi a última vez que eu vi Fábio.

IX

Tic-tac Tic-tac tic-tac

Há 15 dias eu escuto os segundos do meu relógio passarem. A vizinha viajou, meu quintal ficou sujo. Meu telefone tocou e eu não atendi. Eu trabalhava em casa, como tradutora e revisora. Estava sem trabalho, mas com dinheiro suficiente pra passar razoavelmente bem durante um mês, ou talvez dois. Uma vida tranquila, mas sem muito luxo. Estava pensando em chamar Fábio e Audrey para uma noite de conversas despretensiosas e a base de uísque barato, mas me engasguei antes de mandar a mensagem.

Meus pais morreram em um acidente de carro, quando eu tinha 23 anos. O caixão foi lacrado. O meu também vai ser. Meu rosto corpo está inchado, com uma coloração horrível. Dificilmente vão conseguir limpar esse lugar. Meu cheiro, minha morte, minhas larvas, minhas moscas… Estão por toda parte. Provavelmente meu braço descolará do meu corpo quando me jogarem dentro da padiola e por fim, uma voltinha no rabecão.

– Relaxa, pra tudo nessa vida dá-se um jeito! – Audrey sempre me dizia isso, quando eu estava na merda.

Mas agora estou numa merda sem volta.

Olha só. Pancadas na porta. Primeiro foram toques de campainha, primeiramente calmos, depois sem a paciência de antes. Quem seria? Quem estava ali?

Sarah??? Sarah?? Você está aí? Responda Sarah!

Era o Fábio. Ele vai se transformar em um alcoólatra inveterado depois dos próximos cinco minutos.

XI

—Caramba esse cheiro! Argh! – disse Fábio, respirando com o nariz nas dobras do braço.

—Ela tem animais em casa senhor? – disse uma voz.

— Não, mora sozinha. Ela era bem reservada, às vezes sumia, mas sempre dava notícias.

— Vamos ter que estourar a porta, saiam de perto. – disse o policial, pedindo pra Fábio e o vizinho que não sei o nome saírem de perto.

Porta estourada. O vizinho ao qual eu nunca conversei deu um grito. Fábio não gritou. Se encolheu num canto, com as mãos no rosto. O silêncio nunca foi tão perturbador.

A mosca que nasceu dentro do meu corpo, carregava meu DNA e deu seu último adeus, pousando nas roupas pretas de Fábio. Ele estava ali, no canto, encolhido como um feto que acaba de sair de dentro de um útero, tremendo e chorando como uma criança, observando meus fragmentos espalhados pelo piso gelado. Estava eu ali, despedaçada, na luz tranquila que atravessava o vitrô. Era minha densidade, minha libertação. Os meus cacos espalhados ali, formaram o meu mosaico, e ele tinha um milhão de histórias pra contar. Já não estava mais trancada neste mundo de coisas monásticas e mundanas. Eu me libertei de minha cela.

Um brinde Fábio.

Cheguei ao ponto final do meu estoicismo. Extirpei minhas paixões, abracei minha razão. Aceitei meu destino.

XII

— Chefe… – disse Tadeu com cara de quem chupou um limão azedo.

— É difícil lidar não é? – o cheiro, a situação. Morrer em casa, uma morte mesquinha, causada por hábitos do dia a dia.

— O rapaz disse que ela quer ser cremada. Colocaremos bastante pó de grafite, cal e então lacramos o caixão e mandamos pro crematório. – disse Santiago, enquanto batucava no volante do furgão, esperando o semáforo dar permissão de avanço.

— Que triste. Morrer sozinha. E só perceberem por causa do cheiro. Ela devia ser uma mulher detestável. Quem era Sarah Almeida? – disse Tadeu, passando um pouco de Vick Vaporub na narina, para disfarçar o cheiro pútrido do cadáver de Sarah.

— Olha caro aprendiz… Presenciei muitos suicídios, mortes mesquinhas, ao qual as pessoas eram muito solitárias, mas sempre tinha alguém no velório, ao mesmo tempo que já realizei um funeral de uma pessoa que não valia nada e mesmo assim, do meu bolso, coloquei uma roupa nela. Mas, hoje, eu não consigo mais realizar um pré-julgamento de alguém que morreu sozinho. Não sei mais lhe dizer se a pessoa era boa ou má. Talvez a questão mais pertinente é se era feliz ou triste. Existe alegria na maldade, existe tristeza nas pessoas boas. Aprendi isso com nossa profissão.

Tadeu concordou com a cabeça, ligou o sistema de ar, Passou mais Vick nas narinas, pegou um chiclete no console.

— É pesado não é? Como conseguimos suportar tudo isso? Minha irmã morre de medo de morrer sozinha. Ela tem pesadelos ao qual volta do trabalho e encontra a casa sem móveis, com o vidro das janelas pintadas de preto, com muito mofo na parede. Quando ela entra no quarto, ela se vê morta no chão. Isso entra em conflito com a opção dela não querer casar e ter filhos. Eu sempre peguei no pé dela, pra ela ter filhos, ter um marido, mas sabe aquela vez que fomos no asilo São Vicente? Dois cadáveres de uma só vez. Eles tinham filhos que nunca mais foram visitá-los. Morrem de depressão e abandono. Parei de brigar com ela. Ela seguirá a vida dela, e o que tiver de ser será. Acho que essa profissão me deixou frio como uma pedra de gelo.

— Asilos são depósitos. Uma ode ao individualismo contemporâneo, à falta de gratidão. Não nos tornamos frios Tadeu. Tornamo-nos racionais demais.

— Chefe… Me lembro que um dia você disse que nosso trabalho era por deveras filosófico. Ontem minha namorada me perguntou se eu acredito que exista algo depois da Morte.

— O que você respondeu?

— Teria importância se soubéssemos o final da história antes de terminá-la?

— Eu penso assim também. Tudo o que eu tenho são minha esposa, minha filha, quatro cães e minha bicicleta. A funerária é nosso sustento. Sou órfão de pais, passei uma boa jornada na solidão, beijando suicídios, afundado em drogas. Mas eu saí. Se eu morresse agora, morreria feliz, pois além de não estar sozinho, sei que deixei algo de bom. Eu não vivi em vão. Se estamos neste planeta, temos de fazer barulho, e não apenas respirarmos. Isso me lembra Ouro de Tolo:

Eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes  esperando a morte chegar.

— Sabe o que estava escrito no quadro da parede da sala da moça? – disse Tadeu, enquanto olhava as mensagens no celular.

— Não vi. Na verdade tenho o costume de não reparar muito em objetos de decoração da casa dos defuntos. Mas o que estava escrito? – disse Santiago, rindo.

— Enquanto houver sensibilidade, entre nós, humanos, estaremos vivos.

Silêncio.

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Death Contemplating Life – David Ho

PS: O título foi retirado de um trecho do livro “Um copo de Cólera”, do escritor Raduan Nassar, um dos meus livros favoritos.

Agradeço ao amigo Marcos da Silva, profissional da área fúnebre, pela nossa conversa numa manhã de sábado, ao Wagner Galesco e suas experiências com a docência e aos amigos que me deram força para voltar a escrever num momento tão difícil.

Cama de gato – Lay, Lady, Lay

De que adiantavam aqueles gritos se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? Meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo. E me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a candeia do corpo. E, se eles eram bons, é porque o corpo tinha luz. E se os olhos não eram limpos é que eles revelavam um corpo tenebroso.  (Lavoura Arcaica, Raduan Nassar)

A carícia da língua na pele nua arrepiada em uníssono com os lençóis em desalinho finalizou com o despertador ao lado da cama. Era o fim das horas nuas, do sono regado à softporn e filosofias obscenas perdidas e jorradas no dilema Eros vs Psiquê, deixando seu corpo abandonado na cama, inundado pela meia-luz que queria penetrar o quarto por completo. Aquela manhã acordou estranha, um cheiro ruim invadiu as narinas. Abriu os olhos devagar, subiu as cobertas até a cabeça, se cobrindo para que a luz não a atordoe. Ouviu um miado, era seu Gato, ela se descobriu, olhou para o lado, e lá estava o Gato, sorridente, lambendo as patinhas. Lá estava o Gato, o seu Gato… E um pássaro morto.

No mês passado ele lhe trouxe uma barata. Brincava em cima da cama com aquele inseto asqueroso, e desde então as baratas tiveram um cheiro peculiar. Ele tinha o mesmo olhar de sempre, olhos sádicos. Sádicos felinos. Levou uma bronca, o pobre do Gato, como se gatos entendessem broncas, mas ela interpretou aqueles olhos amendoados do gato rajado como um pedido de desculpas. Trocou os lençóis, mas o cheiro da barata continuou ali, como se o fantasma da pobre coitada rondasse por ali e deixasse sua marca. Um velho amigo lhe disse um dia que as baratas tinham um cheiro peculiar. Desde então ela nunca esqueceu: sua mente criou um cheiro e deu um nome infame de “cheiro de barata”. Tudo tem cheiro, inclusive a Morte. Dizem que os cães sabem quando seu dono vai morrer, logo, a Morte também tem cheiro. Pode ser uma dedução imbecil, mas o ser humano é tomado de devaneios imbecis na maior parte do tempo.

E ali naquela manhã existia um cheiro. Cheiro de pássaro morto, junto com o cheiro de sarcasmo dos olhos zombeteiros de seu gato. Os modos aristocráticos ao qual ele se limpava a irritava, naquele momento. Como ousa? Como pode achar que aquilo seria um presente para trazer à dona. Ela ficou paralisada, olhando aquele pássaro, aquele pardal com pequenas tripas saindo pra fora e a marca de sangue seco nos lençóis brancos. Desde que seu homem foi embora, ele passou a lhe trazer presentes. E sempre deixa ao seu lado na cama. Um dia, ensandecida no embalo da noite regada a jogos de cartas e gin, a paixão pelos pecados do céu noturno e calado a chamava na varanda. Na boêmia solitária tropeçou e caiu. A pancada a fez adormecer. Derrubou a garrafa no chão que se espatifou em estilhaços, cortando a pele, o sangue se misturou junto ao leite que trazia num pires para o Gato. Misturou o gin, misturou o leite, as cartas do baralho se misturavam no meio das almofadas cheirando a mofo, amor, desamor, licores humanos e cheiro de livros velhos e empoeirados. Tudo naquela casa, naquele cenário, se misturava. Os cinco sentidos eram uma sinfonia sinestésica. Bob Dylan cantava “Lay Lady Lay” naquela noite, e o gato lambia seu rosto e corpo embebidos em leite, gin, sangue e ela inconsciente, deitada na mais vã das filosofias, em um chão mundano de um quarto com paredes descascadas fadadas ao esquecimento daqueles que já se amaram entre elas. E ela embalava seus sonhos etílicos e obscenos enquanto Dylan no repeat cantava, e seu velho homem deitado na cama, com as costas arranhadas. Mas agora era só lembrança, o pássaro morto em sua cama lhe dava uma compaixão pavorosa.

O pássaro morto continuava ali, ela também, paralisada num misto de asco, surpresa, devaneios, lembranças. E o Gato fazia graça, os pelos eriçando, ele se esticando, ronronando, entrando por baixo das cobertas, aninhando-se entre as pernas delas que se encontravam num tremor de assombros. Ela se lembrou de um poema do velho safado, que dizia ter um pássaro azul trancafiado no peito:

Há um pássaro azul no meu coração
que quer sair, mas eu sou demasiado duro para ele”

E o pássaro estava de uma maneira sutil, trancafiado em sua morte, disposto como uma mensagem sórdida e metafórica embalada à saliva, tripas, sangue e pelos e penas. Seu funeral era ali, em cima de sua cama com lençóis de brancura impecável, mas de uma maneira única, sentia seu coração sufocado por ele. Uma espécie de amor pela dor, e a dor estava ali, com as tripas para fora, uma ofensa. O Amor é uma ofensa. O medo também, com uma diferença que o medo não nos traz prazeres. Levantou-se, foi para o outro lado quarto. Encostou na parede úmida e gelada. A cena toda não parecia menos assustadora. O Gato rajado a encarava, balançava o rabo peludo, piscava os olhos amendoados numa calma insuportável. Pulou saltou da  cama, enroscou em suas pernas novamente, chamou-a pra cama de novo, tal como um amante insaciável. Voltou pra cama, para “seu” pássaro imóvel,  Pensou nos vermes que vão invadir o corpo do pobre pássaro e consumir suas entranhas. Sentiu o corpo todo formigar, como se ela fosse devorada. Os olhos sem brilho do pássaro contavam uma história triste. Os olhos de sarcasmo do Gato queriam lhe dizer algo, uma história zombeteira, uma metáfora mesquinha, uma filosofia obscena escancara na pureza hipócrita da brancura de seus lençóis. Levantou-se, colocou um velho vinil para tocar. Tirou-lhe o pó. Deixou-se arrepiar pela chiado, deitou-se na cama, ao lado do Gato e seu pássaro morto.  Bob Dylan cantava novamente, numa epifania perturbadora:

Lay, lady, lay, lay across my big brass bed
Lay, lady, lay, lay across my big brass bed…

Nada era mais obsceno que aquilo.

Um café para Irene

“Let me fly
Let me fly
Let me rise against that blood-red velvet sky” (“Undertow”, Pain of Salvation)

Irene… Ele chamou com a boca seca. Era cedo e os primeiros raios de sol já anunciavam a alegria trágica de mais um dia. Olhou para lado, os lençóis manchados, em desalinho, Irene não estava lá, nem sentada na poltrona velha com espuma saindo que fica no canto do quarto. Ele se lembra que ela costumava sentar-se lá após o banho, enrolada na toalha, e ficava horas lá lendo livros, e a toalha escorregava e ela ficava com os seios arrepiados a mostra e os cabelos molhados escondendo o pescoço. Irene… Chamou ele. A garganta doía. Ele pegou friagem durante a noite, enquanto fumava um maço de cigarros lá fora e tomava um velho Jack. Estava de ressaca e Irene estava novamente sentada na cadeira em volta da mesa jantar lá, com os olhos mirando o infinito, em seu mundinho particular, falando com os olhos. Desde que aquele acidente aconteceu, ela apenas fala com olhos. E ele sofre de refluxo estomacal cada vez que senta ao lado dela e tenta uma aproximação.

Eu não tenho culpa… Foi um acidente Irene! Você precisa entender isso. Murmurava ele enquanto a água fria escorria da torneira. Molhou as mãos, levou ao rosto, coçou a barba áspera perto das têmporas, a água fria paralisou a face e por instantes que olhou o espelho, mesmo ele não estando quebrado, ele enxergou vários eus, todos fragmentados. Uns tinham sorrisos sádicos, outros, davam risada e contavam piadas sujas de humor negro, como se fossem comediantes de stand-up. Mas era um riso forçado. Outro tinha ares cruéis, outro vomitava sangue, o outro simplesmente sorria e dizia: Um brinde!

Vestiu uma camisa, colocou os chinelos, abriu a persiana. Os urubus estavam nas cercas, nas árvores, alguns com as asas abertas, outros pulando de jeito engraçado pra um lado e para outro. O fedor do matadouro de porcos os atiçavam, o mau cheiro, de carne apodrecida, ele já se acostumou. Ele acreditava que Irene também se acostumou, pois ela não reclama mais. Desde o acidente, ela não reclama mais. Visitas não vão mais em casa. Irene se sente sozinha. Irene odeia aquele lugar.

Querido, temos que sair daqui… Deixe me ir? Deixe-me voar… Com os urubus lá fora. – dizia ela, com risos irônicos.

Ele engole em seco, descendo as escadas viu Irene, ela estava lá, sentada na mesa de jantar, indefectível, simples e humana. Tão humana…

Querida, eu parti suas asas, você não pode voar mais, nem correr… Você nunca esteve tão humana querida, quando eu olho pra você, eu vejo… O quão humanos nós podemos ser. Lembra querida? Das nossas conversas noite a dentro? Você sempre foi tão humana… Mas nunca como hoje. Nunca como nos últimos dias.

Em direção ao sol que ela tanto amava… Os olhos de Irene fitavam o sol que tentava entrar e iluminá-la. Mas se ele abrisse as cortinas, a paisagem horrenda dos urubus na cerca a assustaria. Irene odiava aquele lugar, aquele cheiro, as moscas… Moscas no vidro da janela, moscas em todo os lugares.

Querida, você está presa em um cadeira, deixe-me levá-la para ver o campo mais tarde. Você está pesada, mas eu vou te levar, eu vou te amar. Faz tempo querida, que nós não fazemos sexo. Porque? Eu lhe prendi tanto assim? Porque você caiu da escada, numa briga infantil e agora não fala comigo, não quer comer, não quer me amar…

As panquecas com carne e molho que ele fez pra ela no jantar da noite passada estavam lá. Ela nem mexeu nos talheres, não tinha a marca de seus lábios no vinho Carmem que ela tanto gostava. Ela não bebe, não come…

Ele acendeu um Luke Strike e colocou na boca dela que estava sempre com um sorriso sem graça.

Irene, vou preparar um café, e torradas com mel, que você tanto gosta. Aceita? , ajoelhou aos pés dela, afagando as pernas, roxas de hematomas. Beijou cada um deles. Vai sarar querida, eu prometo… Acariciou as coxas e meteu as mãos entre as pernas, mais ao fundo. Olhou para o rosto pálido, com sardas, com os olhos inchados, com olheiras. Irene sofre de insônia. O cigarro estava queimando, ela não se preocupava com as cinzas caindo no colo e nem com os dedos dele no meio de suas pernas.

E depois, vou lhe dar um banho, já que você se recusa. Você está parecendo uma porca imunda. E poderia ao menos simular uma cara de prazer ao invés de ser uma  imunda e frígida.

Tirou as mãos do interior dela. Lambeu os dedos. Ela nunca teve um gosto tão forte.

Você gostava quando eu fazia isso Irene, lembra? Você delirava, e agora nem se esforça mais… Nem para fingir.

Ele foi ao armário, pegou a cafeteira italiana, o café extra-forte. Matou a barata que passeou em volta dos seus pés. Outra subiu pelas pernas. Ele chacoalhou as pernas, como numa dança insana. A barata caiu e ele pisou em cima, veio outra, mesma coisa.

Lembra querida? Você gostava de dançar. Você me chamou pra dançar várias vezes, mas eu sempre recusava. E quando eu finalmente aceitei, você me pegou e conduziu. Hoje sou eu que cuido de você querida. Eu lhe conduzo, e faço isso porque eu te amo. Eu faço o seu café na sua cafeteira italiana e passo mel nas suas torradas. Faço o seu chá que tanto você adora e colho as flores que você plantou, mas você não enxerga isso. Você acha que eu não te amo mais, você acha que eu lhe quero morta pra sempre na sua vida.

O café começou a subir com a pressão dentro da cafeteira…

Querida, o café… Quer mais um cigarro? Prometa pra mim que vai comer. Se fizer isso, prometo vou levá-la para ver o pôr do sol, vou-lhe tirar deste inferno, eu não vou mais matar os porcos, vou abrir outro negócio, e os abutres vão embora da nossa cerca. E essas moscas? Eu vou proteger a casa inteira. Eu vou proteger você. Promete? Promete querida? Os olhos dela sempre concordavam com tudo, concordavam agora com as roupas jogadas no chão, ela perdendo sangue, ele lhe arrancou os pedaços, mas ela concordava e o grito interno que partia sem voz, era um pedido de liberdade.

Ele levou as torradas com mel. Ela não comeu as panquecas. Continuava com aquele olhar. O olhar de Irene, mas tinha algo ali, sem brilho, parecia que dentro daquele corpo, não existia mais Irene. Aquele vestido branco com manchas verdes e marrom, com desenhos de vermes, pareciam um quadro surrealista.

Está calor querida, deixe-me tirar suas roupas? Não… Não o faça. Eu quero fazer. Abriu os botões do vestido com os dentes.  Rasgou o tecido com uma força bruta de um homem sedento, beijou cada mamilo, as linhas do pescoço, beijou a boca, a boca inteira. A devorou como um garotinho afoito que não sabia beijar, e a pele dela grudava no corpo dele, o cheiro dela tempestuava os poros, foi um sexo sujo, sedento e selvagem. Quase um canibalismo. Ele transou como um animal, ela era sua presa, indefesa, tão paralisada, fria, cansada, se desmanchando, pouco a pouco, e sua alma se esvaindo, o corpo aos poucos caindo ao chão, e o que sobrasse dele, seria queimado e jogado aos ventos. Mas ele a amava… Ela o amava. Seu corpo se esvaiu, explodiu. E nele a sujeira rastejava, o desgosto pousava. Ele gania, como um animal, um lobo predador. Um animal fragmentado na própria dor e desespero. Irene caindo da escada, degrau a degrau… Ele se lembra disso enquanto transa com ela, e enquanto ele urra de prazer, lágrimas de tormenta escorrem… Ele está num rio, nadando contra a correnteza, navegando em águas sombrias e profundas.

Ele abotou o botão das calças. O barulho de vários carros era denunciado pelo cascalho da estrada. Os urubus crocitaram, pularam de um canto pro outro. As moscas que estavam no vidro continuaram lá, mas um som veio na porta. Ele espiou lá fora. Estava cercado…

Chegou a hora querida… Está na hora de você ficar livre. Mas eu quero partir com teu gosto nos lábios. Beijou-a, mordendo os lábios. Irene sorriu, depois de 7 dias sem ter expressão alguma no rosto. Os vermes se alimentavam dela e do jantar. E um deles saiu de sua boca e caiu dentro do café.

Adeus querida, disse ele. Eu sou tão patético que mordi meus próprios lábios para meu sangue se misturar com o teu. É poético isso não é querida? Fiz um pacto de amor eterno contigo…

Com sangue nos lábios, foi até a gaveta. Tinha apenas uma bala no revólver. Morrer… Um tiro dentro da boca. Caiu no chão, os vasos brancos de Irene tingidos de escarlate.

O seu último desejo, foi fazer um café na cafeteira italiana que ela tanto gostava. Um café, um bom, forte, quente e denso café… Um café para Irene. E ele morreu com um sorriso de ressaca nos lábios e o gosto de Irene misturado com café e e o próprio sangue.

“Let me out
Let me fade into that pitch-black velvet night” (“Undertow”, Pain of Salvation)
O gosto dela na boca, ela delirava quando ele fazia isso. Delirava.
A pintura chama-se “Doubt”, do artista Karien Deroo

Confessionário

O prazer é um pecado, e às vezes o pecado é um prazer. 
(Lord Byron)

As luzes lá fora já se apagaram. Os quatro comprimidos sublinguais de Rivotril duas miligramas estão se desmanchando na boca. O conhaque Presidente está pela metade, sorrindo pra ela, o gato oportunista passeando entre as pernas, entrelaçando-se, olhando pra cima e emitindo o som estranho que vem dos gatos: ronronar… Ronronar. Ela sempre gostou desta palavra, soa estranhamente erótico. Doente… Pensou ela… O gato, de alcunha Byron, queria carinho? Não, ele quer comida, está sempre faminto, com olhares piedosos, tal como o gato do desenho do ogro verde e o burro falante. O prato de Byron, o Gato está vazio. Talvez tenha um pouco de leite não coalhado na geladeira e um resto de comida de gato enlatada. Byron a encara, na penumbra da madrugada aqueles olhos amarelos lhe dão arrepios e ele a segue sentindo-se satisfeito quando ela coloca a tigela de comida ao chão.

Gatos desgraçados, tão classudos, comendo sentados, parando para respirar, olhando ao redor. Aqueles olhos amarelos de reprovação, enquanto ela toma goles longos de conhaque e acende a porcaria dos cigarros mentolados que ela esconde na gaveta. Os comprimidos de Rivotril, numa pasta nojenta, misturando com o conhaque made in Paraguai na boca. Aquela sensação relaxante, quente, densa e consoladora, com um peso de um homem entre as pernas, seu velho homem.

Os olhos do gato dizem: tal como o peso daquele seu velho homem ao qual você nunca teve.

Dá uma alta risada de escárnio, e vai se derretendo no sofá, com o olhar perdido no teto mofado com pintura descascada. Talvez toda a concepção que ela tenha a respeito de sexo, seja como aquelas paredes, aquela pintura… Incompleta, inacabada, cheia de manchas. Talvez ela se junte ao trovador bêbado que passa todas as noites declamando versos desconexos embaixo de sua janela, mas hoje, justamente hoje que ela precisava se deleitar do escárnio dos desgraçados, eles não cantam suas emoções. Fica somente o eco das vozes na escuridão, repetindo como trechos de canções em disco riscado…

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

É o que diz no disco riscado do Pink Floyd. Enquanto “Echoes” toca e ela delira no sofá, os olhos do gato, reprovadores, encarando-a como os olhos do padre durante a confissão. Lembrou-se que só se confessou uma vez na vida, na primeira comunhão. Entrou em uma sala no pátio da Igreja Nossa Senhora Aparecida, da cidadezinha pacata onde todos puxam o “r”. O padre estava sentado numa grande cadeira de madeira maciça e couro. Conte-me seus pecados minha filha, do que você se arrepende? Mas eram pecados de criança, tal como roubar doces, gastar dinheiro do lanche com fliperama,  subir no telhado escondido, simular sexo com a Barbie e o Ken, e fazer desenhos sem educação sobre a professora chata. Vou-me confessar Byron… Só você me entende, eu sei e você agora está com aquele olhar de que quer me ouvir…

Byron, o gato, se aproximou, lambeu-lhe a mão, não gostou muito, tinha gosto de conhaque, nicotina e sangue. Ela cortou a mão na lata de comida pra gato e não percebeu. O chão da cozinha estava manchado, contando histórias no chão. Mas o gato ficou lá, sentado, olhando pra ela, seminua e bêbada no sofá.

Byron eu pequei… Eu peco todos os dias, todas as noites…

O gato arrepia os pelos, lambe as patinhas e volta em sua posição de olhos atentos.

Eu queria beijar-lhe a boca inteira, afundar minhas mãos nos negros cabelos,

 Daquele seu velho homem que você nunca teve, disse o gato, com os olhos…

 Eu poderia lamber-lhe a cara, eu poderia beijar todos os pelos do rosto. Aquela barba negra por fazer. Eu poderia Byron… Eu poderia pensar em um milhão de coisas sujas e vulgares, eu poderia dançar nua pela sala, eu poderia fazer uma rima pobre e podre, mas eu não sou poeta. Eu poderia percorrer-lhe o corpo inteiro, como um inseto ou morder-lhe como um animal sádico, brincando com a presa. Aquele velho homem… Velho… Antigo, empoeirado, um quadro inacabado perdido em um souvenir.

Tomou mais um gole de conhaque; desejar sem poder é pecado? Até onde minhas entranhas expostas são um grito desconexo de utopia? O que é utopia? O que eu tenho medo? Qual o índice da minha maldade? Da nossa maldade, sem exceções? É matar alguém com 200 facadas, é torturar uma criança até a morte por inanição? É ver um cadáver na rua esperando o rabecão e tomar uma cerveja na calçada da esquina? Eu posso sufocar meu tesão com um travesseiro e pedir desculpas depois? Eu posso lhe arranhar as costas, posso traçar mapas de desejo no meio do suor, pelos, veias e tendões? Qual o prazer em sentir dor? De ver meu corpo rasgado e com marcas profundas de dedos, pequenas irritações causadas nas pele por causa do passeio de um rosto barbado? A preguiça masculina de 3, 4 dias de pelos na cara. E o meu corpo no espelho, dilacerado, desalmado e talvez amado? Qual foi o meu pecado? Pecado Byron… PE-CA-DO…

 Byron subiu no sofá, sentou no ventre nu e suado daquela que balbuciava eloquências e metáforas, e com olhos piedosos passou a língua áspera no ventre dela, como se quisesse caçar as mariposas no útero. E os pelos do gato como uma carícia, as patinhas pressionando como dedos. Ele se deitou, encarou-a com os olhos de incógnita e o piscar de felino. Trouxe-lhe a exata sensação de que o pecado era para ser vivido, mesmo na utopia. Dormiu, sonhou com o seu velho homem, que tem olhos e jeitos de felino. Dorme e sonha com dias poéticos, desgastados, descascados, com um pouco do mofo das tristezas, cores sinestésicas e os ventos de alegrias cheias de tragédia. Versos, neologismos, dor, beijos e gemidos.

 O gato olhou para a janela, poderia dar um passeio lá fora, no mundo paralelo dos gatos, perturbando o sono alheio com as transas felinas que atiçam o sono dos incautos, mas ficou com sua dona, e pensou nos albatrozes, “imóveis no ar”, do disco riscado do Pink Floyd. A noite foi como eco, cheio de vozes e desejos ensandecidos. A noite apenas começou, com seus encantos, prazeres, pecados e desejos, deitando em metáforas, aforismos, metonímias e falácias. O bêbado trovador passou embaixo da janela.  Todos os olhos felinos piscaram e sorriram, enquanto lambiam-se uns aos outros, as patas, a cara, o corpo, o sexo…

Escrito ouvindo isso aqui várias vezes:

Cloto, Láquesis e Átropos

“Segue o teu destino…
Rega as tuas plantas;
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
de árvores alheias” (Fernando Pessoa)

Uma mulher se contorcia em cólicas, gritava e suava, sentada numa cadeira na sala de espera de um hospital lotado. O líquido da bolsa já havia escorrido entre as pernas, numa mistura de sangue, e as pessoas olhavam a cena toda com um misto de nojo, emoção e inconformidade. Seu marido estava na beira do desespero, implorando ajuda médica. “Todos os médicos estão numa emergência”, disse a atendente. Não adiantou, Luis, de mecânico, virou médico e com a ajuda de duas mulheres fez o parto de sua esposa. Nasceu assim Joana, numa noite chuvosa de 29 de julho. Num canto da sala de espera, uma mulher tricotava, sempre atenta aos detalhes. Era uma moça bonita, de jeans e camiseta, lábios vermelhos, cabelos presos numa trança. Parecia não esboçar nenhuma emoção. Aos pés, tinha uma sacola de bordados  diversos, de vários tamanhos e cores. Joana, a recém-nascida  foi entregue para a mãe, depois dos procedimentos neo-natal. A mãe foi internada, amamentou e desmaiou, inconsciente. Foi entubada, corria risco de parada respiratória, a pressão estava nas alturas.  Bernardo ficou na sala de espera, andando de um lado para o outro, entre lágrimas e orações. A moça continuava bordando, mas agora, ao lado, estava com uma mulher, que aparentava ter lá seus 35 anos. Ela estava vendo os bordados que estavam na sacola da mulher que bordava.

– Cadê o manto? Precisamos modificar o manto dele. Muitas coisas vão mudar a partir de hoje…

A mulher pegou um manto verde, e começou a desfazer e refazer. Bernardo apenas olhava aquela cena, com um ar total de dúvidas e muitas perguntas. O que faziam aquelas mulheres bordando dentro de um hospital? Poderia ser que esperavam alguém receber alta, mas achou uma total falta de respeito a frieza diante tais acontecimentos, não que elas fossem obrigadas a se “emocionar”, mas pelo simples fato de ter sido uma cena de dor e desespero. Enquanto todos no recinto demonstravam sua indignação, aquela garota e agora, a mulher junto dela, se mostrava concentrada em seu bordado, como se nada estivesse acontecendo. Mas continuou, andando de um lado para o outro, sempre perguntando da esposa para todo mundo que saia da porta que dava caminho para dentro da ala de internação.

Depois de uma hora esperando, uma enfermeira se aproxima de Bernardo, disse que era para ele ver a esposa. O médico também se aproxima e pede para ele ser forte, pois a esposa estava numa situação entre a vida e a morte. Ele ficou inerte, parado, sem expressão, até ajoelhar-se no chão e cair em desespero. As pessoas da sala de espera o acudiram, colocaram-no numa cadeira, ofereceram-no água e várias palavras, desajeitadas, para dar-lhe esperança. Ele olhou à frente e lá estavam as duas mulheres, encarando-o. Alguns minutos depois, entra uma senhora bem velha, curvada, aparentemente cega. As duas mulheres cedem o lugar do meio para ela. Ela se senta e pega um manto vermelho da sacola. Começou a desfazê-lo, e as linhas de lã começam a cair no chão. Bernardo começou a berrar:

– Qual o problema de vocês? O que vocês fazem aqui? Aqui não é lugar de tricotar, aqui é a porra de um hospital e minha mulher está prestes a morrer. O que vocês fazem? Tricotam para os doentes? Para os médicos, enfermeiras…

– Tricotamos para todos, sem distinções meu senhor. Pra você, sua esposa e sua filha. Não vendemos o que produzimos, apenas fazemos e desfazemos o destino.

Num acesso de raiva, Bernardo pega a sacola com os bordados e atira longe. Começa a chamá-las de malucas. A velha está quase no final no desfazer do manto. Tinham duas colunas para serem desfeitas.

– Acho melhor que vá ver sua esposa Senhor, antes que seja tarde… – disse a velha.

Ele se levantou e foi ver a esposa, depois que se aclamou um pouco. Entrou no quarto, viu sua esposa deitada, mergulhada numa poça de sangue. A enfermeira e o médico entrou, disseram que não havia mais nada a se fazer, pois era a terceira hemorragia e a transfusão de sangue não resolveu o problema. Bernardo segurava a mão dela e 5 minutos depois ela faleceu.

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As três deusas mitológicas do Destino, também conhecidas como Parcas:

Cloto: tece o fio da vida

Láquesis: Cuida da extensão e caminho. Tece o destino no decorrer da vida

Átropos: Desfaz, corta o fio. Representa a morte.

João e Maria

Era de se admirar. João ficava no canto da cela com os olhos baixos como se a saudade fosse a única que restasse. Os remédios já o tranquilizavam. Ele brincava na solitária com seus brinquedos de criança. Pensam que o louco não tem memórias, e tenho um amigo que me diz que lembranças e saudade enlouquecem o homem. Ali, no canto, perto da cama dura de hospital, João achava que era um herói. Um dia, sua tia lhe deu um cavalinho de plástico. Não queriam deixar ele entrar no hospital com seu cavalinho. Não era um louco perigoso, mas cortaram as patas do cavalo. Ele era louco de fazer de um brinquedinho de plástico uma arma? Talvez, mas era feliz com seu cavalo, ele falava inglês e João dizia à enfermeira que era necessário um dom para ouvi-lo. Uma enfermeira indagou João, que o cavalo dele não poderia levar o Herói João e a mocinha Maria… Ele não tinha patas. João ficou um tempo de cabeça baixa, enquanto a enfermeira aplicava-lhe a injeção. Pensou em algo coerente ou incoerente para responder àquela enfermeira pequenina com olhos de menina e lábios carnudos de musa renascentista. Disse-lhe que teu cavalo podia não ter patas, mas ele voava no confins dos sonhos de toda uma humanidade. A enfermeira deu um sorriso e o questionou se ele era realmente louco. Pensou baixinho, consigo mesmo. Queria desvendar aquela homem ali, que em acessos de loucura disse à todos que não iria mais ao jardim tomar sol porque o demônio dançava pelado no jardim. O que eram os sonhos de uma humanidade para um louco?

– Você é a noiva do cowboy! – disse João, segurando uma boneca de pano que pertencia à irmã, que nunca mais o visitou.

– E quem é este cowboy, menino João? – disse a enfermeira, ao ver o boneco velho também sem pernas, considerado pontiagudo demais para conviver em pacífica consciência com João, o Louco.

– Agora o herói sou eu Rosaly… E você é a Maria, além das outras três ali, mas hoje minha rainha é você, e estou levando-lhe para um faroeste em Paris… Você fala a língua de Paris?

– Não, não falo. O que vai ter neste faroeste em Paris? Não quer mais ser cantor de rock? O que faz um cowboy em Paris?

– Tonta! Já lhe disse, eu sou um herói! Eu tenho o cavalo Rocinante, eu mato dragões que cospem champagne e caviar. Sabia, eu tenho batalhões, todos vestem chapéu e carregam o coldre com uma pistola de cada lado. Levo um punhado de dólares. Ainda sou cantor de rock, sou um astro, maior que o sol.

– Mas tu disseste que és cowboy…

– Eu canto apenas de manhã, e o sol que entra no quarto agora indica que já é tarde. Agora eu enfrento batalhões, tenho de matar Hitler com uma facada no pescoço, beber até a última gota de sangue. Depois transar contigo… Além das outras três.

E as outras três bonecas de pano jaziam no canto do quarto. João, o Louco, só queria Maria…

– Estás muito bonita hoje Rosaly… Maria Rosaly – disse João enquanto pegava um copo de água da enfermeira Rosaly.

– Como sabe que o meu primeiro nome é Maria? Tu és bem espertinho!

– Você tem os olhos de mulher louca… Sabe? Crazy eyes… Eles se movimentam, fora de órbita. E o M na frente de seu crachá. M. Rosaly… Sou louco mas não sou burro. Agora saia. Quero brincar que sou rei. Cansei do faroeste. Minha mão está cheia de pólvora. Tenho alergia à pólvora. Saia, por favor…

– Pensei que agora eu seria tua rainha e seríamos felizes, cavalgando as tardes nas colinas! – e Rosaly saiu, fechou a porta e viu João atirar o cavalo pra longe.

João pegou sua coroa de papel. Ele era Luis XIV. Era o sol, era um juiz, era o professor supremo, amado por tudo e por todos, desde as pessoas sadias, aos loucos das montanhas. Os solitários, os extravagantes, a lua e as estrelas. Todo mundo obrigado a ser feliz. Quem não era, ia para a guilhotina e com o sangue fazia chouriços para alimentar o povo. Só faltava a princesa. Aquela era a terra de ninguém, era apenas ele, e os sonhos de correr com sua amada, pelas ruas floridas do seu reino. Ela poderia andar nua se quisesse, mas a enfermeira Rosaly achava que ela era apenas um brinquedo, uma boneca de pano jogada no quarto. João era louco, ela não poderia dar-lhe a mão, não poderiam jogar pião no jardim. O demônio andava por lá, ele tinha medo. João poderia montar-lhe em cima, e fazer dela o seu brinquedo, o seu bicho favorito. Queria não sentir medo. Queria que ela não sentisse medo, queria que eles se dessem as mãos. Mas ele era louco. O medo sempre foi a maior loucura dos homens e a maldade, ainda existe. E João ficou, na sua solitária, olhando lá fora na janela cheia de grades e vidro blindado. Murmurava ” Não fuja, não fuja não…”, e por vezes procurava enfermeira Rosaly no jardim. Rosaly era sua Maria. Ele a mandou embora, pois em sua consciência de louco, sabia que tudo ali era um faz de conta. Para além das fronteiras do jardim do manicômio, sua Maria some, e nem dele vai se despedir. Ela se aninha nos braços do marido, faz a janta das crianças, carrega-as no colo e lhes conta uma história de ninar. E em seus sonhos de romance, ele como homem, desmistificado de toda sua loucura, as noites com Maria não teriam fim. Rosaly apareceu no jardim. Pela primeira vez ela viu que João a observava da janela. Sorriu e mandou um aceno. Será que aquilo era sincero?

Quando estava anoitecendo, Rosaly entrou na solitária. Queria se despedir de seu louco favorito.

– E agora João, quando anoitece, o que você é agora?

– Agora Mariazinha, eu sou o louco consciente, que se pergunta o que a vida afinal vai fazer de mim.

Silêncio…

Epifania de uma personagem sem nome.

“Bem, tem sido um longo tempo
Desde que vi seu sorriso

Eu apostei meu medo
Até as luzes da manhã brilharem
Manhã de domingo
Somente névoa sob os limbos
Eu chamei novamente
O que você sabe?
E eu preenchi nossos dias
Com cartas e gin…”

 

Na noite de um sábado, enquanto deitada na cama confortavelmente vestindo calcinha e sutiã, nossa personagem sem nome estava esparramada na cama de sua humilde residência de mulher independente que mora sozinha. Muitos livros na estante, lápis coloridos comprados em um impulso de querer desenhar e pintar. Fã de vinhos e nostalgia, ela guarda uma garrafa de vinho chileno com duas rosas, enfeitando a estante. Estava lendo um livro e pensando em coisas da vida, no universo e tudo mais. Num momento, dá um pulo na cama, um insight, uma lembrança que a sempre consta em mente, mas ali, naquela noite de 27 de abril de 2013, ela se recordou, por vezes com um sorriso iluminado e com lágrimas de saudade, e ela sussurra, “Como sou brega”, ela que tanto pregou contra as pieguices do ser apaixonado, caiu numa “armadilha” que deste então povoa seus sonhos e caminhadas pelo bairro onde flores nascem em pleno asfalto.

Era sábado, estava um dia quente, mas não muito exagerado, como os dias fatídicos de verão. A “personagem sem nome” estava nervosa, após tentar quase sem sucesso arrumar o lugar que paga aluguel e chama de seu.

Olhava para o guarda-roupa, sem saber direito o que vestir. Fazia tempo que não tinha um encontro, ela estava desacostumada e achava que estava sonhando, chegou por vezes a se perguntar se aquilo realmente estava acontecendo. Pra quem veio de um relacionamento de três anos e meio com alguém que foi seu segundo namoro, e depois de um período brincando de eremita, enchendo em cara com colegas de trabalho e lendo o dia inteiro ou passeando em parques apenas para comer churros e pensar na vida, enquanto patos atravessam para cair na lagoa. Tinha na cabeça que seguiria a vida como uma mulher assexuada cheia de cachorros cagando alucinadamente no quintal. Dava risada sozinha, enquanto tentava espairar a cabeça folheando livros lidos e relidos.

Olhou para o cabide e viu um vestido de malha roxo, com detalhes em verde musgo na cintura e na amarração que contornava o pescoço. Mas ele era sem manga, e ela estava com as marcas na pele de uma doença filha da puta que acabava com sua vaidade. Era ali mais um motivo para sua insegurança, estampada com um suor frio e respiração ofegante. Queria estar bonita, tirou o vestido do cabide, e apesar de estar passado, ligou o ferro mesmo assim. Escolheu um casaquinho preto de crochê, e um sapato verde, no mesmo tom dos detalhes do vestido. Olhou no relógio, tinha marcado com ele às sete horas, em frente ao terminal de ônibus do bairro em que morava. Eram cinco e meia.  Acendeu um incenso e algumas velas no banheiro. Escolheu o que tinha de melhor, aprendam, mulher se prepara para vocês, mesmo que ela ache ou tenha a insegurança de que pode estragar tudo. Trinta minutos embaixo do chuveiro, talvez a água morna e o cheiro do óleo de pimenta rosa fizesse sua ansiedade diminuir. Depois de todo ritual, finalmente vestida, não do jeito que queria. Se estivesse sem aquelas manchas terríveis teria com um vestido na altura do joelho e com os braços de fora. Olhou no espelho, e perguntava-se se estava bonita. “Foda-se, pensou ela”… Passou três borrifos do seu mais caro e melhor perfume, pegou o livro que comprou no dia anterior num saldão da FNAC no meio de títulos de autoajuda pedantes e livros para mulherzinhas mal resolvidas e foi para o ponto de ônibus. Visivelmente nervosa, colocou o IPOD no modo shuffle, é um ritual que sempre dava certo. Chegou ao ponto de ônibus, não se atrasou apesar dela ser meio esbaforida e odiar horários, chegou meia hora mais cedo, vai que ele tivesse a tal da pontualidade britânica, olhasse no relógio e dissesse que ela estava 1 minuto e 45 segundos atrasada?

Na frente do terminal, tem um hortifruti cujo dono é um simpático senhorzinho japonês, e ao lado, também de frente para o terminal, há uma banca de pastel. Não pensou duas vezes… Suco de laranja da pastelaria a faria acalmar os nervos. Tomou dois copos, enquanto estava lendo. Resolveu olhar o celular e viu que tinha ligações perdidas. Eram dele, já pensou em um milhão de desgraças, mulher é um bicho difícil, entendam… Mas ficou otimista. Saiu da mesa da barraca de pastel e sentou-se em frente do hortifruti. Encontrou a paz necessária no livro que se encantou, mas deu misto de inquietude por ser um livro tão perturbador. O livro falava sobre o delírio das moscas, dilatação de porcos, sobre um homem despedaçado frente ao espelho do banheiro. Por alguns minutos, desligou-se completamente das coisas que a cercavam, até o momento em que sentiu um arrepio e passos leves e logo em seguida o seu nome bradado. Assustou-se um pouco, levantou os olhos do livro e então aquela calma perturbadora saiu de foco e voltou ao nervosismo, mas era um nervosismo causado pelo desconforto perante a beleza que os grandes olhos amendoados e sempre perdidos dela estavam encarando timidamente. De estatura mediana, um pouco mais alto que ela, olhos azuis, cabelos castanhos claros e barba por fazer, de uns dois dias e um sorriso que desde então apostou todos os seus medos.

Deu-lhe um tímido e quase atrapalhado beijo no rosto não barbeado ao qual ela agradeceu ele não ter tido a estupidez de ter tirado. Ela sempre pensa porque todo homem acha que toda mulher gosta de barba feita. E foi ali, o primeiro momento que ela se contorceu toda, numa felicidade nervosa. Estava com o livro nas mãos, aquilo foi bom, pois disfarçava as mãos trêmulas. O suco de laranja não tirou-lhe o nervosismo, o encanto de dois olhos azuis inquietantes trouxe-o de volta.

“O que está lendo?”

Depois de ter ficado tanto tempo escondida, aquela pergunta a fez pensar que ali ao seu lado, caminhando devagar não estava um homem que enxergava apenas oito bits de cores, talvez o universo cheio de cores e nuances dela seja pela primeira vez compreendidos, não em sua totalidade, ela não acredita nisso, uma das graças da vida, é a inquietude perante a não compreensão. E ela já percebeu pelo seu rosto de britânico, mas, com descendência italiana de que ali ao seu lado, estava um fractal cheio de equações complexas, e achou isso encantador. Ele não tinha denominador comum. Era único, e ela começou a sair da toca, já estava com o pé direito pra fora da sua caverna de proteção.

Estava ventando e o cabelo da “personagem sem nome” estava um ninho de mafagafos, e ele lá, tão bonito com seus olhos claros e cabelos cor de mel. Ela respirava fundo, baixinho, pois não queria que ele percebesse o quanto ela estava nervosa. Ela era uma atriz de quinta categoria, não sabia representar, ela era nua e crua, dentro da sua natureza nenhum pouco convencional. Até uma criança pura e sem malícia perceberia que ela estava tão nervosa quanto um cachorro que apronta e disfarça, mas lá dentro existia uma ponta de arrepio e certo tremor. Se ele perguntasse por que ela estava tremendo, ela lhe diria que era porque tinha hipoglicemia, mas não seria verdade. Ela não sabia mentir, tudo ali a denunciava.

Entrou no carro, ela disse a ele que o cabelo dela estava um fuá, e ele então passou a mão nos cabelos negros dela. Ali, naquele momento, veio-lhe o segundo arrepio, e não foi o vento, não foi frio, um pouco de nervoso e um pouco de tesão que depois ela reprimiu e desviou para qualquer outra coisa para não pensar em coisas, digamos, mundanas. Ela era muito sexual, não no sentido de ver malícia em tudo, de ver um perfume cilíndrico numa loja e pensar em sexo, tal como Freud explica sobre símbolos fálicos, coisas simples, ela não precisava ver um outdoor com um homem lindo de cueca para sentir desejo, coisas simples e banais a movem, e a mão dele no cabelo naquele momento inicial a fez querer agarrá-lo, mas ela era uma mulher contida. Despistou os pensamentos pecaminosos falando da escova progressiva da irmã e da mãe, e que foi a única da família a gostar de sua herança de cabelos ondulados, indecisos, levemente cacheados. O pensamento dele puxando-lhe os cabelos e beijando-lhe o pescoço foi ocupado pela lembrança de o quão bonito eram os cachos da irmã dela. Obviamente ela preferia o pensamento voluptuoso a pensar nos cachos da irmã, mas ela fez isso para não ficar arrepiada e com as bochechas vermelhas. Ainda bem que os olhos dela são castanhos bem escuros, a pupila dilatada seria muito difícil de ser percebida, a não ser que ele fosse o Chuck Norris ou tivesse o poder de ler mentes. Se ele visse auras, naquele instante ela estava num vermelho rubro de puro desejo. Reza a lenda que homens pensam na sogra para não gozarem rápido demais, ela em gatos mortos, erros de português e na família…

Durante o tempo que se passou, no caminho até a livraria, foram se conhecendo, ela perdera parte da vergonha, e não estava mais insegura, aos poucos perdeu a tensão, mas não o tesão. Na livraria ele lhe sugeriu um livro, dizia ele que ela era parecida com o personagem principal, um velho pescador que nunca perdia a fé, mesmo perante do fracasso de ter o marlim devorado por tubarões. Ela também sugeriu um livro a ele. Viu naquele homem um menino sonhador que guardava a beira de um abismo. Se algum menino se aproximasse, ele agarraria. Ficaria ali, o tempo todo, cuidando para que criancinhas indefesas nunca caíssem no abismo. Ele tem a alma de Holden Caulfield, se pudesse, ele se fingiria de surdo mudo, pois seus olhos são desacostumados, segundo ele o mundo é cheio de “pessoas cinzas e valores rasos” e o silêncio, tem o ajudado a tolerar:

“… Mas não me importava que tipo de emprego ia ser, desde que eu não conhecesse ninguém e ninguém me conhecesse… Ai bolei o que é que eu devia fazer: ia fingir ser surdo-mudo. Desse modo não precisava ter nenhuma conversa imbecil e inútil com ninguém… Com o dinheiro que fosse ganhando, construiria uma cabaninha pra mim em algum lugar e viveria lá o resto da vida. Ia fazer a cabana bem pertinho de uma floresta, mas não dentro da mata porque ia fazer questão de ter a casa ensolarada pra burro o tempo todo. Cozinharia minha própria comida e mais tarde, se quisesse casar ou coisa parecida, ia encontrar uma garota bonita, também surdo-muda, e nos casaríamos. Ela viria viver comigo na cabana… Se tivéssemos filhos, iam ficar escondidos em algum canto. Podíamos comprar uma porção de livros para eles e nós mesmos íamos ensiná-los a ler e escrever.”

 

Ele comprou o livro e ela reservou o que ele sugeriu, pois não tinha na loja e chegaria dentro de cinco dias. Foram para a cafeteria da livraria. Ele pediu um café simples, e ela exagerada, um café duplo com chantilly. Os olhos dele eram desconcertantes, a ponto dela baixar os olhos em direção à mesa, pois diante de tal beleza ela poderia talvez perder o juízo. Naquele ponto ela estava definitivamente fora da toca. Ele a tirava do sério. Respirava fundo, sentiu a cafeína estimulando as “endorfinas naturais” e ela precisava perder o foco da beleza dos olhos dele para que ela não se contorcesse por dentro. Os olhos dele falavam, e a prova disso era o biscoito que acompanhava o café que ele não comeu. Ela foi cara de pau o suficiente para pedir. Ela teve um insight de Clementine Kruczynski, de “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças”, na cena em que Clementine e Joel Barish estão na praia e ela pega a coxinha de frango do prato dele. Joel pensa que ela chegou assim, sem pedir permissão. A “personagem sem nome” pelo menos pediu, poderia ser mais invasora no mundo encantador dele, cheio de perguntas, umas com respostas, outras perguntas sem respostas, que podem ser completas ou incompletas, e cheias de viagens na maionese. Talvez, tal como Holden Caulfield, ele pode pensar para onde vão os patos no inverno. E ela amava essa essência indagadora dele, essência que a assustava, pois estava ali, sentado ao seu lado, um homem que sempre achou que só existia no mundo dos livros. Estava ali um homem que assim como ela, tenta salvar as crianças de cair no abismo, um homem que falava com os olhos, que a fazia rir e tal como ela, assistia “A Praça é nossa” com o avô. Ela assistia com a avó. Ela poderia ouvir e compartilhar piada ruim de gosto duvidoso o dia inteiro, sentada com ele no gramado da praça da universidade. Eles poderiam rir, como duas crianças, sem medo de ser feliz. Quando ela conta piadas, todo mundo olhava pra ela com cara de merda, mas ele ria, e ela se encantava com as covas que se abriam no rosto de barba acastanhada por fazer.

Eles saíram da cafeteria e decidiram ir para um bar num bairro charmoso e boêmio. Ele pediu uma cerveja e porções de bolinhos. Ele perguntou se ele acendesse um cigarro a incomodaria. Cigarro era o de menos. Ela vinha de uma família e noventa por cento de seus amigos eram fumantes. Ele pediu um energético, dizia ele que precisava acompanhar o pique de mulher que sofria de insônia. Ela contou-lhe sobre a doença que tanto aniquilava sua autoestima, e que se sentia incomodada com as manchinhas marrons que estavam espalhadas pelo corpo. Ele disse que não havia que se preocupar, ele também sofria do mal da doença de pele, pois tinha a pele muito clara. Contou algumas coisas que aconteceram com ele, levando as mãos dela ao rosto dele, para sentir um pequeno cisto imperceptível. A partir do dia em que o conheceu, ela deixou de lado as camisas de manga comprida, e saiu de vestido na altura do joelho e braços de fora. Ele a fez sentir-se plena novamente, ela recuperou toda a beleza que achava que havia sido raptada por uma doença. Contou a ele que nunca havia ganhado flores, ele riu, disse que era inconcebível, uma mulher não ganhar flores. Continuaram a conversa e alguns minutos mais tarde uma florista estava caminhando por entre as mesas dispersas na calçada. Sempre havia a primeira vez pra tudo, é o que dizem por aí. Ele chamou a florista, e pediu para que nossa “personagem sem nome” escolhesse duas flores. Ela se emocionou, como toda mulher, e por mais que um ramalhete de rosas morresse, ela ainda conserva as duas rosas dentro da garrafa de vinho que compraram para tomar embaixo de uma noite enluarada, com estrelas por vezes encobertas por nuvens tímidas, em cima de uma enorme pedra, longe da cidade, que poderia ser vista com suas luzes amarelas, no horizonte. Antes de irem para aquele local deserto, tomado pelo cheiro de imensas árvores de eucaliptos, ele estava preocupado se ela passaria frio, pois era um lugar aberto e logo, o vento seria intenso. Ela disse que já estava protegida, depois de dois anos morando no sul do país. E partiram, e ali naquele local, a cena hilária da tentativa bem sucedida e até aquele momento desconhecida pra ela, de abrir a garrafa de vinho usando tênis. Hoje, as flores a encaram da estante, dentro da garrafa de vinho chileno cujo conteúdo foi consumido no meio de um vento que o fez tremer de frio. Ela, acostumada com os ventos minuanos do sul, sentia-se plena e contente, e ao vê-lo tremendo de frio, não poderia deixar desamparada uma pessoa que lhe deu flores.  Fez uma massagem terna nos braços dele, explicou um pouco sobre o que aprendeu sobre chakras e centros de energia. Ela, enquanto esquentava os braços dele, sentiu os tendões aparentes, as veias pulsantes, os pelos dos braços dele, eriçados. O frio também a invadiu, mas não era um frio de sensação térmica, era um calafrio causado por endorfinas… Entende?Endorfinas naturais…

E então, ali naquele momento, ele fazia um carinho leve, gostoso, e o perfume dele estava mais forte do que outrora. Ela lhe disse sobre á inquietude dela diante de cheiros. Enquanto ele estava explorando aquele lugar em que eles ficaram, ela estava andando naquela estrada, com os sapatos de salto 15, tropeçando nas pedras. Pegou uma folha de eucalipto e cheirou-a, enquanto o observava, oras pensando na beleza da vida, na beleza daquele lugar que até então ela desconhecia, aquele pedaço de paz, vento e árvores balançando. E ao mesmo tempo em que ela sentia o perfume daquela folha de eucalipto, ela lembrou-se de quando se aproximou para ver a programação dos bares no celular, e então ela sentiu o cheiro dele. Ela tinha problemas com cheiros. Na hora, ela pensou: “Fudeu”, e depois veio um “Se controle…”. Ele disse que leu “A casa dos budas ditosos”, ela se contorceu de novo, era seu livro erótico favorito. “Droga… se controle, se controle, foca…controle, relaxa, você é boba”, pensava ela, enquanto tentava sem sucesso dissipar-se da vontade de agarrá-lo. Ela ria, mas por dentro se contorcia, e as pernas tremiam, e ela fingia que estavam apenas conversando sobre o universo, a vida e tudo mais, e que nada daquilo a excitaria, e ela não transaria na primeira noite, coisa que nunca fez. Sempre teve uma opinião de que a mulher deve deixar o homem curioso, com o desejo que nos próximos dias que estão por vir, uma fresta por vez do vestido será desnuda, mas não tudo de uma vez. E naquela madrugada de domingo, dia 28 de janeiro, ela quebrou as barreiras das convicções dela, e ela nunca se arrependeu. Deixou-se levar pelo desejo, pela chama, pelo lugar, pelo ser cativante e inspirador que ele emanava com paz e tranquilidade. Ela já estava cativada, enquanto ele a acariciava, ela tentava manter a eloquência de raciocínio, até que ele percebeu que ela estava perdendo o rumo dos pensamentos, que às vezes ela parava e suspirava forte, foi aí que ela se entregou e aceitou a ideia de que ela não conseguiria resistir. Ela relutava, enquanto deitada ali, e no primeiro beijo que ele deu nos seios dela, especificamente no seio direito, o tesão que latejava no meio das coxas a denunciou, e então ela perdeu o rumo. O hálito de vinho merlot dos lábios dele e o frio do vinho que ele derramou nos seios dela, os beijos nas costas nuas, no caminho da espinha, fizeram-lhe sair completamente da toca, e o barulho do sexo ao ar livre era uma melodia que em nada perdia para uma orquestra sinfônica. Ela não sabe dizer se algum carro passou ali e algum stalker viu aquela cena toda. Ela estava excitada demais com a respiração ofegante e forte no pescoço dela, que nem ao menos o vento intenso daquele local, que fazia as árvores balançarem de um lado para o outro, mas ela sentia… E sentia intensamente. Era apenas ele e ela, ali naquele momento, em chamas, embaixo daquele luar enlouquecedor e a garrafa da bebida que tanto influenciou os poetas desse nosso mundinho ordinário, porém maravilhoso.

E a licença poética daquele lugar, escreveu na memória dela um conto erótico, e ela não poderia, sentada numa mesa, ao som apenas das hélices do ventilador, deixar passar as impressões daquele dia que ocorreu há exatamente três meses atrás. Ela queria que esse conto fosse um presente entre ela e ele. Um presente sincero, talvez assustador, uma epifania pintada em cores de Almodóvar, mal escrita, mas com a sinceridade de um Woody Allen…

"Se eu tivesse um conto que pudesse contar a você Eu contaria um conto que pudesse fazer você sorrir Se eu tivesse um desejo que pudesse desejar a você Eu desejaria que o sol brilhasse o tempo todo."
“Se eu tivesse um conto que pudesse contar a você
Eu contaria um conto que pudesse fazer você sorrir
Se eu tivesse um desejo que pudesse desejar a você
Eu desejaria que o sol brilhasse o tempo todo.”

Epifania: Clarabella.

Clarabella acordou numa manhã disposta a arrumar a casa. Na verdade, ela fazia isso quando se sentia magoada, o ato de se reorganizar era uma forma de colocar sua alma tão aturdida em uma paz teleguiada. Era como se ao limpar o chão, varreria do porão da memória toda a angústia que a atormenta. Começou pelo quarto, arrumando a cama, com os lençóis cheios de vincos, lembrança de uma noite que tentou sem sucesso ter algum pingo de amor do marido. Ele chegou tarde e cansado, ela preparou-lhe um jantar e o aguardava apenas de lingerie. Passou o fim de tarde toda preparando um assado, ele olhou, comeu um pouco apenas para não vê-la triste. Dizia-se cansado, o trabalho estava massacrando-o e ele se sentia estilhaçado. Tomou um banho, deitou na cama, dormiu. E ela então colocou seu velho pijama confortável para dormir, mas havia perdido o sono, e quando ela ficava magoada, sentia fome. Fez um prato de comida, e foi para o sofá, carregando todo o peso dos estilhaços, uma tristeza vítrea. Se ao menos, ela pudesse ter alguém para reconstruir-lhe sua alma já tão minimizada, talvez um artista conseguisse enxergar a beleza dela, e faria um vitral com o Amor que ela tão esperançosa acreditava. Ali, naquele sofá da sala, assistindo filme romântico de fim de noite, estava uma mulher adormeceu com o controle remoto em cima do peito, subindo e descendo conforme respirava, e nos sonhos , ela vivia em um mundo menos mesquinho e cheio de noites de Amor. Não culpava o marido, apenas não sentia aquele amor todo que sempre almejava. Tentava amar aquele que sempre lhe ofereceu a mão, que esteve ao lado dela nas dores da vida, mas faltava algo.

Na limpeza do quarto, encontrou um velho baú ao qual guardava suas memórias. Fazia um tempo que ela não o abria, pois quando ela fazia isso, uma saudade da época em que não tinhas tantas obrigações, invasões de tal forma que ela passava a relembrar o passado com olhos perdidos, e uma espécie de torpor causado pela saudade, fazia desligar-se do mundinho real, inserido naquele contexto ao qual ela não almejou.

Dentro do baú ela encontrou a doçura e a inocência de seus tempos de criança. Havia uma boneca que ela carregava para todos os cantos. Ela dizia que era sua filha. E ali, naquele momento, Clarabella, já adulta, experiente e de olhos ainda desacostumados com as provas que a vida escancarava na sua janela,  sabia que o mundo é egoísta e destruidor de sonhos, mas ela não desistia, era uma Dom Quixote de saias, sempre lutando com seus moinhos de ventos transmutados em dragões. Naquele momento, com a boneca nos braços, começou a balançá-la enquanto murmurava uma canção de ninar:

“Dorme, dorme menininha…Eu estou aqui…

Vá sonhar, ainda é tempo, menininha

Vá, vá dormir…Sonha sonhos cor de rosa

Passeia no céu e no mar

Apanha o mundo no teu sonho, menininha

E não deixa ninguém roubar…

Olha, não reparta com ninguém os teus sonhos de menina

Dorme, dorme…Dorme e sonha menininha

Sonha, é tempo ainda…”

 

Naqueles braços, a boneca lhe trouxe as memórias do sonho de ter uma filha. O nome da boneca era Sophia, e ali, agarrada, sentada ao chão em frente de seu baú de memórias, olhou para o relógio e viu que as horas estavam paradas, ignorou o fato de ser apenas um relógio com pilhas mortas, e em um esconderijo de fundo falso no guarda-roupa, as roupas de recém-nascido que compra todo mês, um sonho antigo, eterno. Era ali seu segredo, ela queria uma criança, mas o marido não. Ela queria um pedaço dela nos braços, mesmo que não tenha ali, o DNA de seu amor verdadeiro, um homem que conheceu há anos, e nas idas e vindas de um amor já antigo, a vida lhe deu soco no estômago que lhe impossibilita de viver aquele Amor.

Olhando para a boneca Sophia, apaixonada pelo gesto de ternura, pelo sonho de ser mãe, ficou preocupada, achando que seria daquelas mulheres presas dentro de um hospício, falando sozinha, no canto de uma cela, com uma boneca no colo e injeções diárias de antidepressivos. Passaria o dia dormindo, sonhando com uma criança correndo entre os irrigadores do jardim. Então, rapidamente guardou a boneca, e as roupas de bebê no fundo falso perfumado com sachê de rosas. Sentou na beira da cama, e com o rosto entre mãos, derrubou lágrimas tristes e convictas de que nunca conseguiria ser mãe.

Foi numa tarde de domingo, que numa caminhada para aliviar a tensão, encontrou uma linda cadelinha numa feira de adoção. Levou-a pra casa, colocou uma fita vermelha no pescoço, e presilhinhas nas orelhas. A cadelinha agradeceu o carinho lambendo-lhe o rosto e adormecendo nos braços de Clarabella. E ali teve uma epifania, e o mundo não parecia mais tão egoísta.

“Se alguém disser pra você não cantar
Deixar teu sonho ali pr’uma outra hora
Que a segurança exige medo
Que quem tem medo Deus adora

Se alguém disser pra você não dançar
Que nessa festa você tá de fora
Que você volte pro rebanho.
Não acredite, grite, sem demora…

Eu quero ser feliz Agora

Se alguém vier com papo perigoso de dizer que é preciso paciência pra viver.
Que andando ali quieto
Comportado, limitado
Só coitado, você não vai se perder
Que manso imitando uma boiada, você vai boca fechada pro curral sem merecer
Que Deus só manda ajuda a quem se ferra, e quando o guarda-chuva emperra certamente vai chover.
Se joga na primeira ousadia, que tá pra nascer o dia do futuro que te adora.
E bota o microfone na lapela, olha pra vida e diz pra ela…

Eu quero ser feliz agora

Se alguém disser pra você não cantar
Deixar teu sonho ali pr’uma outra hora
Que a segurança exige medo
E que quem tem medo deus adora

Se alguém disser pra você não dançar
E que nessa festa você tá de fora
Que volte pro rebanho.

Não acredite, grite, sem demora…

Eu quero ser feliz Agora”

PS: Os trechos em aspas são músicas do Oswaldo Montenegro. 😀

Lena.

A embriaguez batendo, rodopiando, batendo palmas. O cheiro etílico dela se aproximando devagar, com traços aromáticos de chacota. Lena deitou e rolou no chão, no meio do bar, e o blues melancólico em notas de Eric Clapton e B.B King. Na multidão cheia de rostos e risos de escárnio, rostos pintados, partindo para uma guerra de quadro impressionista. Foi embora pra casa, caminhando bêbada pela rua Augusta. Sabia que sua casa ficava em algum ponto da Avenida Paulista. Talvez ligasse para seu vizinho abrir a porta, caso ela não conseguisse. Acontecia…Várias e várias vezes.

Ligou para Ramires, seu vizinho barbudo tresloucado comunista. Ele abriu a porta e lhe fez companhia. Deu um banho em Lena, banho gelado: “Ahhh Lena!!! Se eu for embora algum dia, quem vai cuidar de você hein cupcake?”. Ela entendia apenas os risos tímidos de vergonha alheia, mas Ramires sempre esteve ali quando precisava, nas horas bêbadas e cuidava da gata persa cinzenta, que vomitava bolas de pelo no apartamento inteiro. Fez-lhe uma bebida quente, e quando ela melhorou, despediu-se dela com um beijo na testa. “Descansa Lena, amanhã venha jantar em casa, terá pizza, aquela que você gosta, e depois vamos jogar mahjong!Ahhh, dei banho na Mary, ela estava precisando, “tava” de “enrosque-enrosque” com o gatão vira-lata do 151. Até sua gata tem um bofe minha linda…E você aí, triste e bêbada ”. Fechou a porta, deixou apenas a luz do abajur acesa, herança de família, brilho antigo que desde criança ilumina sua penumbra, que conta histórias, acompanha os sonos insones em que ela caminha sozinha entre vales e bosques, fugindo do medo que não adormece. Mary ronronava nos seus pés deitava e lambia as patinhas. Queria ela ser como gato, se caísse, cairia sempre de pé, e teria, reza a lenda, seis vidas para desperdiçar. Daria valor apenas na última vida, consertando as besteiras que cometeu nas outras seis.

Quando criança, Lena ajudava a avó a fazer bolo. E o cheiro doce de cobertura de chocolate impregnava a casa, e ela amava aquilo, se envolvia, era uma fúria infantil, brigava com os irmãos pela lambeção do tacho. Hoje ela bebe sua fúria em copos de licor de chocolate com conhaque de procedência duvidosa… Alcoólatra atingida, mas tingida de todas as cores. Enxergava-se como uma caixa cheia delas, mas fechada hermeticamente. Queria alguém sádico o suficiente que se envolve-se em seus fios coloridos, e com sinestesia suficiente para ver notas musicais, um samba no amarelo, tango no preto, salsa no verde. Estava bêbada, nada mais aceitável do que ter ideias de bêbada. Sentiu saudades do bolo da vovó… Começou a passar mal…

O enjoo foi em passos de loucura até o lixo ao lado da escrivaninha. Não foi Lena, foi o enjoo. Lena foi movida por aquilo que sentia, ela não estava mais ali, apenas náusea, enxaqueca e a vontade de não estar. O banheiro estava longe, ela chapada demais para se arriscar, podia bater a cabeça e morrer. E ela pensou, que seria a coisa mais poética ser encontrada morta no próprio vômito, com traumatismo craniano. Seu piso branco de banheiro tingido de sangue com pedaços de morango. Sakê, whisky com energético, conhaque, vodka com soda e batatas fritas. Cheiro etílico, fritura, uma fruta silvestre em pedaços e sangue semi-oxidado. Seria legal, poderia sair naqueles sites sensacionalistas de tragédias, fotos circulando nas redes sociais, povo adora tragédia. Seria mais legal ainda se ao invés de batatas fritas e pedaços aleatórios de morangos regados ao cheiro de pandemônio boêmio, fosse sopa de ervilha apenas. Poderia cair de forma batesse na pia e seu pescoço torcesse de tal forma como a personagem do filme “O exorcista”. Mas eram apenas pensamentos de uma mulher embriagada.

No dia seguinte, arrumou a casa, fez um almoço para os amigos. Tinha bolo de sobremesa, com cobertura de chocolate. Jogaram Mahjong a tarde inteira. No final da noite foram para a casa de Ramires, o Comunista, e pediram pizza, ela não quis comer pizza, disse que estava de regime, pois estava gorda e queria um namorado. Foram todos embora antes da noite chegar, cheios de elogios e chamando a atenção dela para sua percepção errônea sobre o corpo, “você é linda” de um lado, “você não é gorda” do outro. Agradeceu os comentários e tentativas fracassadas e falsas. Fechou a porta, deu um sorriso pra gata, que a esperava na beira da janela.

Foi no armário, tirou cinco pacotinhos de sopa de caneca e preparou. Era sopa de ervilha. Enquanto a água esquentava, tirou todas as roupas, passou seu perfume favorito, penteou os cabelos. Sentou-se no sofá, comendo sopa, tomando wisky no gargalo e assistindo canais adultos.

“I can feel your body
When I’m lying in bed
There’s too much confusion
Going around through my head”
Eric Clapton cantava na sua mente enquanto assistia aquelas baboseiras eróticas. Atiçou-se, fez um amor solitário, depois atirou-se nua, crua e úmida da janela do décimo quinto altar. Não pareceu uma cena do filme o exorcista, o corpo espatifado no chão era uma massa de carne e ossos quebrados, misturados nos cacos escoceses do velho Johnnie. Ao menos não morreu sozinha, velho Johnnie sempre a acompanhava. Mary, sentada na janela, lambia as patinhas…
Woman – Karien Deroo

Conhaque, comprimidos e lapsos de razão.

Marlene preparava a comida favorita de Carlinhos, ovos com bacon e linguiça. Sabia ela que aquilo que enojava seu estômago era melhor que o conhaque e comprimidos de falsa felicidade que substituía sua alimentação. Ela olhava para Carlinhos, que brincava com seu carrinho na mesa, enquanto esperava a comida. Ele era lindo, puxou a beleza do pai. Ela queria segurar a mão dele e não largar nunca mais. Ficou ali, parada, com a frigideira antiaderente nas mãos delicadas, com unhas pintadas de vermelho. Colocou a comida no prato do filho, que a retribuiu com um sorriso banguela de criança. Ficou estarrecida, emocionada, mais do que o normal, se é que existe uma concepção para a sensação “normal” de sentir-se feliz. Segurou a mão de Carlinhos, “Segure a mão de mamãe, e não solte nunca mais”. Carlinhos comia os ovos mexidos, com a outra mão segurava as mãos da mãe, que chorava numa tristeza sem limites para as lágrimas que escorriam de seus olhos verdes. “Vá brincar lá fora querido, e saiba que eu te amo”. Chovia lá fora, e Carlinhos pegou a sua capa de chuva azul, seu barquinho de poliestireno amarelo com listras vermelhas. Pegou seus bonequinhos marinheiros, foi brincar no oceano imaginário feito de poças do quintal. Ela ficou olhando o filho, linda criança tão inocente em seu mundo imaginário, sentada numa cadeira velha que era de seu avô, madeira de lei, almofadas artesanais. Tinha saudades do marido, mas ele enlouqueceu, ele guardava as salsichas cozidas dentro dos bolsos da calça, e não comia. A mãe dele, vienense, forçava-o a comer toda a comida no prato. Ele não queria. Ela abria a goela e forçava dentro. Ele vomitava, e depois apanhava. Cresceu revoltado e aos poucos a loucura tomou conta. Com medo de não chatear a esposa que tanto amava, escondia a comida nos bolsos e em outros locais. Um dia, ela encontrou vários pães mofados embaixo do colchão. “Mamãe dizia que se eu não comesse eu era estúpido feito meu pai, eu não quero ser estúpido”, e ele emagrecia, cada vez mais. Paranoico e anoréxico passa seus dias no hospital psiquiátrico em ala solitária. Não reconhece nem a esposa e o filho. Ela sentia saudades lúcidas do marido, e toda vez que o via através da janela da solitária, algo a dizia que em seus olhos de homem louco, ele a reconhecia. Na última vez que viu seu amado lúcido, ele estava recebendo uma injeção em casa, comendo alimentos via sonda. Tomava sedativos frequentemente e ela se recorda que na última noite ao ser levado pela ambulância, ele segurava as mãos dela e dizia: “Segure minha mão, até que eu durma”. E foi assim, ele adormeceu e agora talvez apenas seus sonhos de homem esquizofrênico mantenham uma lembrança lúcida da imagem dela.

Carlinhos voltou no fim da tarde, a mãe lia um livro na varanda. Ele estava cansado e sujo de lama. Ela lhe deu um banho quente, preparou um lanche. “Mamãe, quero dormir contigo hoje!”. Ela o levou pra cama, deitou-se ao lado dele, junto com o Julinho, seu boneco que era o homem das estrelas. Carlinhos segurou as mãos da mãe, deu-lhe um beijo no rosto, disse que a amava… ”Mamãe, segure a minha mão até que eu durma”. E ela viu ali, uma reconstrução infantil do homem que tanta amava, e ela sabia que Carlinhos, ao acordar, reconheceria seu rosto ao acordá-lo e levar café com bolachas. Parou com o conhaque e psicotrópicos, a sua vontade de viver dormia ao lado.