Quando eu era menina…

Seu eu morrer muito novo, ouçam isto: Nunca fui senão uma criança que brincava. (Alberto Caeiro)

Eu me lembro como se fosse hoje, a rua cheia de crianças. A velha rua sem saída que tinha a poucos passos de minha casa. Naquela época, ao menos, assim eu penso, analisando os dias de hoje, cerca de 18 anos depois, aqueles tempos era seguro brincar nas ruas, mesmo aquelas que tinham saída. Pode ser que no meu olhar de criança, eu não enxergava a maldade. Não existe nada mais belo que o olhar inocente de uma criança. Existe apenas a consciência do querer brincar pra sempre, de nossas mães ou aqueles que cuidam de nós, de nunca alcançarem o portão de casa e nos chamar porque estava entardecendo. Talvez este fosse o momento mais triste do dia. Quando eu era criança, eu não almejava o entardecer, quando ele chegava eu sabia de alguma forma muito simplista de que teria de me despedir de outras crianças e entrar para casa. Hoje, adulta, eu almejo os entardeceres, pois sei que minha jornada de trabalho está chegando ao fim e que eu posso chegar em casa, tomar um banho e relaxar. O mais engraçado é que quando éramos crianças, queríamos ser adultos. Esta é a coisa mais besta que uma criança possa querer. Eu falo aos meus irmãos menores que eles nunca devem ter pressa de querer ser adultos.

E a rua sem saída e demais ruas ao entorno era um palco de sorrisos e brincadeiras. Naquela época as crianças ainda fabricavam suas próprias pipas, e corriam para buscar as que caiam no céu. Dias atrás fui num churrasco com os amigos em um bairro da periferia. Lá pude ver as pipas no céu. Me trouxe uma lembrança doce dos meus tempos de criança. Estávamos na calçada com nossas “bebidas de adulto” e cigarros que já não eram de chocolate. Um menino desceu correndo atrás da pipa que foi derrotada. E quando ele subiu novamente e passou por nós, parabenizamos a criança: “Ehhhhhhhhhhhh!” e então o menino abriu um sorriso e levantou a pipa em sinal de vitória. Fazia tanto tempo que eu não via isso, e então pensei o quanto estou ficando velha ranzinza em um bairro de metrópole onde as crianças das famílias que existem por aqui brincam trancafiadas em casa com seus videogames, tablets, carrinhos de controle remoto. Não existem mais brincadeiras na rua. Não vejo mais carrinhos de rolimã, meninos soltando pião, rodinha de crianças jogando bafo ou bolinhas de gude. Como costumo dizer, as brincadeiras hoje se transmutam em divertimentos eletrônicos sem nenhum contato com o que existe real. Antes eu brincava na terra. Hoje uma criança dificilmente brinca na terra, talvez a única terra que elas “tocam” são as dos canteiros do Farmville.

Lembro-me que eu sentava na soleira da calçada e via os meninos descendo a mil nos carrinhos de rolimã. Às vezes um se ralava todo e a mãe saia correndo preocupada. Ficavam alguns dias de castigo e depois voltava, com um carrinho de rolimã novo. E não era só isso que tinha pelas ruas. Na rua de casa, tinham jogos de amarelinha desenhados no asfalto. Eu me lembro de que nós roubávamos giz colorido da escola para poder desenhá-las no chão. O céu era feito com giz azul, o inferno com giz vermelho, e os números, obviamente com giz amarelo. E pegávamos pedras da rua para jogar. Lembro-me o quanto era difícil acertar o número 10, mas as crianças que chegavam até o final da amarelinha, tinham o dia ganho. E as tardes semanais e finais de semana eram recheadas de pega-pega, pique-esconde, pula corda… Eu era muito ruim em pular corda. Ficava frustrada por ser desengonçada. Mas mandava bem nos patins. Um dia peguei uma ladeira e me arrebentei porque uma pedra apareceu no meio do caminho, e não deu tempo de desviar, foi a única vez que eu me arrebentei nos patins. Eu pulava, fazia manobras, coisa de criança doida mesmo. Carrego em meus joelhos e cotovelos as marcas da queda. No dia chorei, hoje dou risada. Lembro-me de que naquela época merthiolate tinha álcool. E ele era o terror das crianças travessas, o terror dos que andavam de bicicleta, patins e rolimã. Jogar futebol e chutar o chão ao invés da bola era lágrima certeira. Nada era mais terrível que o merthiolate, as crianças queriam voltar para suas casas com roupas imundas e pés sujos, mas não queriam voltar cedo e encarar aquele vidrinho daquele “negócio que ardia”.

Tinham as lendas que contavam para as crianças. Nunca me esqueço do homem do saco. O homem do saco era o terror para as crianças cujos pais as educavam para ficarem sempre por perto de casa ou dos pais durante os passeios. Um dia, fui à feira com minha mãe e me perdi dela para comprar pastel. Achei que fosse encontrá-la e me enganei. Então fiquei esperando na banca de pastel. Ela me encontrou e me deu o sermão do velho do saco. Quando chegamos ao portão de casa, um velho com um saco nas costas estava descendo a rua, e ele olhou pra mim e disse: “Que criança linda! Quer ir embora comigo?”. Então corri pra dentro de casa, e fiquei anos acreditando que o homem do saco existia, e tinha certo medo de ir pra escola sozinha e encontrar o velho, e ele me pegar à força e colocar dentro do saco. Eu acreditava mais no velho do saco do que em papai noel. Sempre soube que o papai noel era meu tio, mas o homem do saco não, ele existia e não era o papai noel, era um homem velho que sequestrava as crianças e depois as comia ou vendia.

Além do velho do saco, tinha o velho do muro… O velho do muro era um tio de um menininho que estudava na mesma escola que eu. Ele sempre ficava até altas horas no muro da casa dele, apenas com a cabeça aparecendo. Era um muro alto. Fiquei sabendo da real causa da aparência dele, anos depois, quando adulta. Eu tinha medo dele. Ele era um senhor de idade muito pálido, com covas profundas no rosto e sem nenhum cabelo, completamente careca. Quando a noite chegava e nas vezes que iá com meu irmão comprar tortuguitas na vendinha, ele estava lá, espiando a vida por cima do muro. E as luzes das luminárias de rua davam mais ênfase a palidez dele. E eu sempre dizia que não gostava do velho do muro. Um dia minha mãe me perguntava por que eu não gostava dele. Eu respondi a ela que era porque nunca tinha visto uma expressão tão triste em alguém. Eu não conhecia muito a tristeza até os meus 8 anos, quando tudo era teoricamente normal em minha vida. Aquele velho foi meu primeiro encontro com a expressão de tristeza no rosto de alguém. Dos meus oito anos em diante, descobri a tristeza em meu próprio olhar. Mas daí já é uma longa e talvez desnecessária história, ainda com dores não curadas, talvez alguns meses de terapia me ajudem. Mas só posso dizer que sei na pele o que é não saber conviver na mesma esfera de compreensão de uma criança.

Vocês dizem: “Cansa-nos ter de conviver com as crianças”. Tem razão. Vocês dizem ainda: “Cansa-nos porque precisamos descer ao seu nível de compreensão”. Descer. Rebaixar-se, inclinar-se, ficar curvado. Estão equivocados. Não é isso que nos cansa, e sim o fato de termos de elevar-nos até alcançar o nível de sentimentos das crianças. Elevar-nos, subir, ficar nas pontas dos pés, estender a mão. Para não machucá-los. (Janusz Korczak)

Eu tive um namoradinho na infância. Eu inclusive já falei dele. Chamava-se André Luis. Era um menino que me escrevia cartinhas de amor com as canetas coloridas da irmãzinha. Já escrevi aqui também que um dia eu e ele encontramos uma pomba no chão, e ignorantes das certezas da vida, achávamos que ela “dormia” na calçada. Depois, descobrimos que era apenas uma pomba morta com vermes devorando as entranhas. Mas ela estava ali, no meio da calçada, como se tivesse feito um ninho. E eu me lembro daquele momento até hoje, e do cheiro das balas de doce de leite de Andre Luis, e do momento que eu chorava inconformada por causa de um pássaro morto, e ele simplesmente me deu a mão e fomos de mãos dadas até o portão de casa. Ele me deu um beijinho no rosto. Era um beijo melado, com cheiro e sabor de doce de leite. Hoje, quando vejo aquelas balas quadradas de doce de leite, lembro-me de André Luis, e seu cabelo loiro tigelinha. Ele tinha os olhos quase claros, de um castanho esverdeado. Era uma linda criança. Eu acho que eu era uma criança bonita também, os meninos do jardim me davam flores, mas André Luis foi o único a quem eu andei de mãos dadas naquela época. E o mais engraçado é que eu via os adultos se beijando na boca e tinha nojo daquilo. E comentava com André que ele não faria aquilo. E ele dizia: “Blergh, não… É nojento”. E ficávamos somente nos beijinhos de despedida e nas cartas inocentes com letras tortas, reféns de cadernos de caligrafia. Não posso dizer, (ou posso?), que eu vivenciei um amor na sua esfera mais pura, mas não sei dizer, 17 anos depois, se aquilo foi amor. Foi uma história de infância, cheia de timidez e risinhos. Era como um amigo com algo a mais. Eu e André Luis dividíamos o lanche, contávamos nossos segredos um ao outro, e, sobretudo, andávamos de mãos dadas, e eu acreditava que por ele estar comigo, estaríamos protegidos do homem do saco. Quando descia a rua de mãos dadas com André, eu nem me lembrava do “Velho do Muro” e sua fisionomia triste. Descobri muitos anos depois que aquele velho na verdade não era um velho. Era um homem de quarenta e poucos anos que sofria de câncer. Quando ele morreu, eu em minha consciência de criança, eu achava apenas que ele tinha enjoado de ficar ali. Descobri que as coisas e pessoas morrem quando vi a pomba morta no chão. E chorei dias seguidos com medo de perder alguém próximo. Os adultos me confortavam dizendo que as pessoas que morrem vão para um lugar bonito, onde não existia tristeza e demais coisas ruins. No ano passado confortei meu irmão menor que chorou dias e dias a morte de um amigo de minha família que vendia pastel na rodoviária e que por costume íamos até o trailer dele toda sexta-feira. Meu irmãozinho aguardava ansiosamente a “Sexta-feira do pastel”. E teve um dia que a pastelaria nunca mais abriu. O Senhor dos Pastéis foi executado cruelmente. Amarrado, colocaram-no de joelhos e deram-lhe um tiro na nuca. Tudo por causa de uma furadeira, uma televisão e cerca de quinhentos reais. E a notícia correu quatro cantos. Meu irmão viu a foto tirada ao longe do corpo sem vida do seu amigo pasteleiro jogado no canavial. Foi vítima do sensacionalismo barato. Ele chorou nos meus ombros. A Morte pra ele foi mais traumática. O meu primeiro encontro com ela foi através de um pássaro no meio da calçada, mas ele passou para um degrau filosófico muito mais pesado que aquele que eu passei. Ele em tenra idade passou a questionar quanto vale a vida… E ficava triste pelos cantos, até que o Tempo lhe curou as dores…

Quando eu era menina, e ficava triste pelos cantos, eu subia no telhado de casa. A vida era incrível lá em cima. Isso passou a ser corriqueiro na época em que eu me tornei uma criança triste, fragilizada emocionalmente. Era em cima do telhado que eu encontrava minha paz que tanto me fazia falta. Eu era feliz quando meu irmão Ricardo ia me visitar, e nós íamos ao cinema, escutávamos música, ou quando ele me levava para brincar em piscinas de bolinhas ou carrinhos bate-bate. Ele sabia que eu passei a ser uma criança sozinha em um mundo de adultos estressados, deprimidos e alguns deles, opressores. Quando ele não estava lá, eu ficava no telhado. Escondida, sim, escondida. Porque as pessoas passavam sempre olhando em frente ou olhando para o chão. Nenhuma delas olhava pra cima para ver o quanto o céu estava bonito, ou o bem-te-vi que sempre cantava em galhos nas árvores da minha rua. Outra alegria que eu tinha era levar minhas cachorras para passear. Ver a alegria delas cheirando pequenos canteiros e chegarem cansadas em casa era uma forma de eu ficar feliz. Um dia minha cadela Gabi, já velhinha, talvez ciente de sua morte, fugiu. Dizem que os cães sabem quando vão morrer, e alguns deles se afastam dos donos para evitar que eles sofram. Todos os meus bichinhos sabiam quando eu estava magoada. Eles deitavam ao meu lado e não saiam, e os mais novos faziam graça para tentar me fazer rir. E de certa forma, funcionava. Hoje, sinto falta de ter um cão. O amor dos animais é incondicional. Um amigo me disse que eles são mais humanos do que aqueles que recebem essa alcunha. Falam que o Homem é ser-HUMANO… Tenho minhas dúvidas. A criança sim, esta é um ser humano. Um ser em perfeição, tão incompreendido. Não penso em ter filhos, não agora. Penso que o mundo é cruel demais para seres tão perfeitos conviverem. E então eu pensei se ainda podemos oferecer para as crianças um mundo mais bonito. Mas o problema não está em nós, está ao redor. O que podemos fazer? Mantê-las em redoma de vidro? No momento sou egoísta o suficiente para apenas eu sofrer com as dores e intempéries do mundo, a ponto de querer ter de volta a inocência que eu tinha anos atrás. Eu era apenas uma menininha banguela, magrela que sorria brincando em balanços. Muitas vezes eu sonho com essa época, com as crianças que eu brincava, com André Luis… Um lapso momentâneo daquilo que perdemos ao passar dos tempos. Mas quando eu acordo, vejo que estou de volto para aquilo que corresponde à minha realidade. Hoje, não vejo mais crianças nas ruas. Não mais como antigamente… Não mais… Ser adulto é tão chato!

Lembro-me que eu usava polainas, sonhava em ser bailarina. Meu pai tinha me presenteado com um porta-joias que quando dava-se corda, a bailarina dançava. Então, eu sempre dava corda, e tentava fazer igual. Ao fim eu nunca me tornei bailarina, nem médica, nem toquei violino, nem astronauta... Não fui nada que eu sonhava quando criança. Mas eu sinto que essa menininha aí da foto nunca me abandonou...
Lembro-me que eu usava polainas, sonhava em ser bailarina. Meu pai tinha me presenteado com um porta-joias que quando dava-se corda, a bailarina dançava. Então, eu sempre dava corda, e tentava fazer igual. Ao fim eu nunca me tornei bailarina, nem médica, nem toquei violino, nem astronauta… Não fui nada que eu sonhava quando criança. Mas eu sinto que essa menininha aí da foto nunca me abandonou…

Entrelinhas

Apenas escreva… Vi isso no canto do editor de texto no modo “escrita sem distrações”. Com todo o sol do entardecer que entra na minha humilde casa, fica um pouco difícil escrever sem me preocupar com as coisas alheias que o sol já tímido deste fim de tarde toca. Eu olhei pela fresta da porta e vi que a ventania que estava de manhã já está querendo silenciar. Quando eu acordei, já tarde, devido à madrugada naturalmente e intimamente sem sono, eu pude perceber o quanto eu gosto do barulho da persiana se mexendo com o vento que entra pela janela. É muito melhor que o barulho do meu ventilador de teto, e me traz coisas mais significantes do que um mero barulho motorizado pendurado no teto. E eu pensei na poeira que deve estar na parte de cima das hélices. Besteira… Deixei pra lá. Pensei em dezenas de coisas bonitas. Pensei em sair lá fora para caminhar, sem pensar que a ventania deixaria meus cabelos mais indefinidos que eles já o são. Pensei em pegar um livro e ler enquanto tomo meu café com leite de todos os dias. Lembrei então que eu tinha roupas no varal a serem recolhidas. Levantei da cama e tomei um banho rápido. Quando saí lá fora e me deparei com este inverno indefinido, eu pensei nos meus tempos de inverno rígido no sul do país. Foram lembranças do tempo em que andar empacotada com quilos de roupa era um mal necessário. Mas era bom acordar e ver as casinhas de madeira, e subir no ônibus amarelo que me levava até outro terminal onde eu subia em outro ônibus para finalmente chegar na empresa em que eu trabalhava.

Quando eu saí lá fora, deixei a água do meu café com leite esquentando no fogão. Fui para a lavanderia que fica na parte de trás da casa e comecei a recolher minhas roupas. E o cheiro das roupas lavadas é o mesmo das que minha mãe me entregava para guardar na gaveta, quando vivia com meus pais. Compro o mesmo amaciante que ela usa nos lençóis. Assim quando eu vou dormir de certa forma faz-me lembrar de quando eu não tinha de me preocupar se eu tinha roupa no varal. Traz-me a lembrança de casa, da cama que meu pai comprou quando eu cheguei e dos meus lençóis cheirosos e coloridos. Não tenho fronhas, pois não durmo com travesseiro. Meu travesseiro é um bicho estranho que ganhei de meu ex-namorado. Acostumei a dormir sem travesseiro, e um dia eu pensei que mulheres sozinhas abraçam o travesseiro na hora da saudade. Eu não tenho travesseiro, mas abraço minhas lembranças empoeiradas nos confins de minha memória. Existem noites que eu estou tão cansada que eu nem sei mais o que são as lembranças, e meu cansaço ignora tudo o que eu tenho guardado. Às vezes torço pelo meu cansaço vir a galope, e que minha mente hiperativa trabalhe apenas para me trazer escritas sem distrações, ou leituras que não me acarretem em nada, ou filmes que não me façam pensar. Mas o tédio me acomete. Tentei meditação a fim de acalmar a mente. Tive um dia a concepção de que meditar é não pensar em nada, e eu tentei em vão não pensar em absolutamente nada. Errei! Estou sempre caindo em erros, alguns deles repetidos, mas eu sempre penso que todo erro cometido por Amor é um erro aceitável. Paixão não é erro. Talvez o erro seja apenas uma mera consequência que a vida nos traz. Em meus tropeços eu me reergo em passos de Aquiles. Dizem que o ponto fraco dele é o calcanhar. O Amor de certa forma é uma pedrada em meus calcanhares. Então eu assumo a forma de Ícaro e tento alcançar o sol. Mas minhas asas são de cera, e quando eu me aproximo, eu caio no oceano.  Mas eu não sou salva, eu acordo inconsciente na beira da praia, caminho algumas horas sem destino e quando eu chego em meu aconchego, aquela paz que é me tão necessária me atinge a trancos e solavancos. Da praia cheia de areia branca e águas-vivas que me queimam a sola dos pés, devido minha caminhada às cegas, vou para uma montanha solitária e silenciosa. Há tempos sou uma eremita tragando meu cachimbo de razão. Há tempos faço de meu silêncio o meu melhor aplauso. Estou tentando levar a minha vida de maneira mais justa e racional, a questão é que eu amo meus vícios. Eles me tragam, cheiram, injetam. E eles ficam enebriados com minhas idas e vindas, os meus sonhos de ir e vir nas minhas concepções de um mundo que poderia ser mais justo e perfeito, nas minhas crenças de que o mundo pode sim ser perdoado, se houver amor. Vidas sem amor devem ser jogadas aos confins das chamas do inferno. Não sei se o inferno existe, mas se existir eu creio que é pra lá que caminham as almas sem amor… O que diria Dante Alighieri? Tentei ler o capítulo sobre o paraíso, mas a Divina Comédia reside no inferno e purgatório. Talvez eu seja sádica e goste de imagens traduzidas em sofrimento e tristeza. Já me disse alguém um dia, que a tristeza é um mal necessário. Dizem por aí que meus olhos são tristes. Já me disseram que eles são expressivos. Eu já não sei mais o que meu olhar representa, mas sei que os olhos são o espelho da alma, talvez a minha seja um misto de tristeza, expressão e ressaca.

Agora, neste parágrafo, o sol já foi embora, e agora o céu está dando lugar para nuvens cinzentas. Disseram-me ontem que neste final de semana a chuva será intensa. Costumo ler na Praça da Paz, um lugar lindo que fica numa universidade perto de casa. Às vezes me dá a loucura e vou pra lá caminhando, em passos lentos, escutando música. Quando chego lá tiro um descanso na grama. Fico pensando nas folhas que o outono deixou pra trás, e sempre vejo as formigas levando os pedaços delas para algum lugar. Existem muitos sabiás por lá. E eles ficam sempre por perto, voando de galho em galho embaixo da árvore que eu costumo ficar. E as pessoas passam correndo, para manter o corpo em forma, outras passeiam com seus cães. Alguns cães passam por perto fazendo graça e eu os chamo. Geralmente volto para casa com pelos de cães na roupa. Chego em minha casa, tomo um banho sento e escrevo. Gosto de colocar minhas reflexões nem que seja em apenas um pedaço de papel qualquer. Tenho reflexões nunca publicadas, notas mentais que eu esqueço-me e recordo-me duas semanas depois. Ontem fiz uma pequena faxina em casa, encontrei anotações tardias, e pensei em produzir algo. Elas me olham agora em cima da minha mesa. Mas eu finjo que elas não existem. São como retratos de pessoas que já se foram. Eles estão na sua frente, sabe você de alguma forma que estas pessoas não vão voltar, você olha, admira, mas no fim, ignora. Sei que essas anotações me olham diretamente nos olhos, mas ignoro a metáfora. O que é passado deve ficar no passado, existem anotações ali que não me fazem mais sentido algum. Existem pessoas que não me fazem mais sentido algum. É como ter vinil sem ter onde tocar, uma ressaca que lhe dá indigestão, mas queira ou não você gosta delas. Entende? Você gosta! Elas não fazem mais parte da sua existência atual, elas não lhe retornam mensagens e não perguntam se você está bem. Elas simplesmente existem, na concepção delas, no mundo delas, no exato instante que você olha para as estrelas elas também olham, mas não compartilham isso com você, ou pelo menos não aparenta compartilhar. Penso que compartilhar vidas seja tão imoral quanto ter inspiração. Eu já não sei dizer mais o que é inspiração. Agora escrevo independente dos dias, das estações, do meu humor, do meu estado de felicidade, se estou amando ou não. Parei de pensar nisso, cansei de ter musos de inspiradores. Eu não sou o eco de ninguém. O eco é tão traiçoeiro que acaba por lhe devolver aquilo que você não almeja. Eu poderia me inspirar em velhas fotografias, em um presente não entregue ou em entardeceres intransigentes. Poderia continuar a escrever sobre o amanhecer tão estoico, mas a saudade foi inteiramente corroída pela razão. Eu não sou mais a menininha amedrontada da bicicleta de rodinhas, velha, amarela e enferrujada. Um dia meu pai me pegou pelos braços e me disse que eu tinha muito de ver na vida. Eu tinha oito anos, nunca me esqueço. Eu brincava numa rua sem saída cheia de buracos… E eu já pensava desde tenra idade o que eu teria de ver tanto na vida. A vida pra mim era tão simples. Consistia em ir e vir de patins na calçada lisa e íngreme da vizinha fofoqueira do outro lado da rua. Era emocionante pegar velocidade e se arrebentar. Hoje não sei mais como fazer isso. Tenho um par de patins profissional com rodas 90 mm e morro de medo de pegar descidas. Eu ainda sou uma garotinha amedrontada escrevendo entrelinhas.

O vento na janela

Vede a criança, rodeada de porcos a grunhir,
Desarmada, encolhendo os dedos dos pés.
Chora, não sabe fazer mais nada senão chorar.
Será alguma vez capaz de ficar de pé e de caminhar?
Coragem! E depressa, penso eu,
Podereis ver a criança dançar;
Logo que conseguir manter-se de pé,
Haveis de a ver caminhar de cabeça para baixo.

Friedrich Nietzsche, in “A Gaia Ciência”

Ela estava concentrada olhando a ventania lá fora sacudindo as árvores e também sua saudade, já tão abandonada às moscas que ansiosamente debatem no vidro da porta querendo entrar. A casa cheirava à peixe. Sua mãe fritou os peixes que seu pai havia trazido pela manhã, após uma semana lançado aos infortúnios e surpresas do alto mar. Já era uma mulher crescida, mas a brisa marítima que entrava na casa em frente à praia quase intocada daquela cidadezinha à beira mar, trazia a certeza dos seus dias de sol e a lembrança dos dias que corria descalça pela areia branca da praia enquanto chovia, e a voz de sua mãe, ainda nos tempos sem os cabelos brancos, “Volta pra casa menina, você vai tomar um raio!”. Os ecos da saudade do tempo de menina eram trazidos com o prenúncio dos ventos da tempestade.

Ficou preocupada, de noite anunciava tempestade e o seu pai estava no pesqueiro em alto mar. Lembrou do dia que o barco de seu velho naufragou e ele ficou à deriva por quatro dias. A família já velava a morte mesmo tendo nenhum cadáver anunciado devorado pelos peixes, mas já esperavam o pior. Encontraram-no quatro praias depois, cheio de queimaduras e desidratado. Ficou uma semana internado, e assim que saiu já queria ganhar o oceano novamente. Ela sempre viu o pai como uma fortaleza, e a primeira vez que o viu chorar foi quando ele voltou pra casa do hospital e vou suas redes e linhas de pesca. O que mais o deixou triste foi a possibilidade de não poder mais trazer o sustento da família, e de não vê-la crescer. Ela ensinou seu pai a ler e escrever, e um dia ele até arriscou um poema, escrito por linhas tortas, e entregue no dia do professor, escrito em um saco de pão:

Amanhece minha menininha
As redes de pesca bagunçadas
Seus cabelos também
Cheiro de café, cinco horas da manhã
Dorme minha doce e travessa menininha

O seu velho pai ainda a vê correndo pela areia e a sorte ou a falta dela o acompanha todos os dias em alto mar.

Rêveries de l’aube en français

(Publiquei, porém estou aos poucos aperfeiçoando o texto em francês, com a ajuda da Aline Pascholati, que mora em Paris há um tempo! 😀 )

J’ai vendu mon sourire à l’aube insomniaque . Je voulais fermer mes yeux ce soir et me réveiller en rêvant encore des bisous des intempéries dans la caresse de la nuit, mais le temps c’est passé, et il pourrait revenir d’un claquement de mes doigts… Mais la vie n’est pas comme ça, la vie est pleine de raisons, les personnes impliquées dans les vérités les plus amples, ou les raisons qui nous apportent des mensonges ou des demi-vérités, on est tellement à l’aise dans l’incertitude, qui nous caresse l’âme, pour masser notre égoïsme… Nous sommes si petits! Avale notre désamour et embrasse les mensonges confortables. Donc, c’est celle là ma vie ? Je vois les glissements du temps à travers mes minces doigts, et il n’y a rien que je puisse faire.

J’observe le grains d’un vieux sablier, je peux attendre que l’aube vienne et m’apporte les réponses, celles dont je sais que je ne suis pas seule dans les rêves d’aller et venir, dans l’espoir d’une lettre à la main, mais je suis une sotte… Je l’espère pour le bien des causes perdues, les moulins étant quand à eux des dragons ou pas, ma lutte se poursuit, jusqu’à ce que je meure … Aujourd’hui? Demain? Peut-être, honnêtement? Je ne sais pas, et le doute est l’avantage de l’incertitude

(Eu vendi o meu sorriso no insone amanhecer. Queria eu fechar os olhos nesta noite e acordar ainda sonhando com os beijos de intempéries na carícia da noite, mas o tempo já foi, e ele poderia voltar no estalar de meus dedos. Mas a vida não é assim, a vida é cheia de razões, as pessoas envolvidas nas verdades mais amplas, ou razões que nos trazem mentiras ou meias-verdades, encontra-se a incerteza tão confortável, que acariciam a alma, para massagear o nosso egoísmo. Somos tão mesquinhos! Engula o nosso desencanto e abrace as mentiras confortáveis​​. Portanto, esta é a minha vida? Eu vejo os deslizamentos de tempo através dos meus dedos magros, e não há nada que eu possa fazer.

Observo os grãos de uma velha ampulheta, posso esperar o amanhecer chegar e me trazer respostas, aquelas que eu sei que não estou sozinha nos sonhos de ir e vir, na esperança de uma carta na mão, mas eu sou uma tola… Eu espero por amor às causas perdidas, os moinhos sendo eles dragões ou não, minha luta continua até que eu morra… Hoje? Amanhã? Talvez, sinceramente? Não sei, e a dúvida é o benefício da incerteza.)

Abaixo, uma canção francesa do século XIV, de amor cortês:

Durante a chuva

Existem pedaços minúsculos espalhando sonhos e possibilidades. Respiramos metade de nossas convicções, aquelas que achamos que podem vir a calhar. O resto jogamos fora, largado num pedaço não iluminado no porão de nossos possíveis e eventuais fracassos. E os homens e mulheres seguem suas vidas querendo tocar o céu de seus amores, tristezas e alegrias, mas este céu possui tantas cores, que não é possível unifica-lo numa cor só, e fazer um tecido, cobrir o corpo nas horas de frio, aquele frio que não passa. É uma metáfora maldita, ou talvez incompreensível, penso na capacidade de abstração das pessoas. São tão limitadas que a capacidade de abstrair acaba se tornando coisa de homens e mulheres loucos. Vou ignorar a abstração aqui, voltarei ao céu, aquele do entardecer, que ao meu ver é o mais bonito aos olhos. Agora neste momento começou a chover. Estava esperando um céu indeciso desde ontem, quando acordei depois de parcas horas de sono e vi o céu com nuvens cinzas de agonia. Recolhi-me ao meu canto, esperando a chuva cair e então me fechar em uma grande esfera impenetrável de pensamentos silenciosos, ora confusos, ora cheios de razão. Mas esse momento não veio, chegou agora, e então eu coloco “Rain Song” do Led Zeppelin para não fugir de meus dias clichês de chuva. E cada vez que olho lá fora e vejo as pequenas gotas de chuva escorrendo pelo vidro de minha janela, eu penso que cada gota daquele vai cair e lavar nossas almas. Robert Plant tinha razão, quando ele escreveu essa música, sobre chuva e estações. Falou sobre o Amor talvez na sua forma mais primitiva, em comunhão absoluta com as intempéries do tempo. E eu penso agora que daqui a pouco as pessoas passaram a reclamar da chuva, sendo que antes reclamavam da secura do ar que lhes entravam pelas narinas. O ser humano é tão ingrato…

Quando chegar a primavera, os toques que eu desejo tanto talvez sejam executados numa fração irrisória de milionésimos de segundo, naquele momento cheio de canções, de notas musicais breves, usadas em exaustidão. Um tom desafinado, petulante, beirando o silêncio que tanto me atordoa e ao mesmo tempo, tão necessário. Um dia José Saramago escreveu que o silêncio era o melhor aplauso. E então eu refleti, e cheguei a conclusão que o Silêncio é necessário, mas que as palavras devem ser usadas em seu momento certo. Silêncio por demais atordoa, nos leva à descrença e mágoa, uma vontade de não estar. Palavras são necessárias, mesmo que sejam apenas jogadas ao vento ou por puro sentimento de obrigação. Nos calamos perante a Beleza, nos permitimos apenas encará-la com os olhos, pois a Beleza que nos atordoa e nos faz por algum motivo perder a razão, é aquela tal como um verbo que não se conjuga. Quando nos calamos perante aquilo que nos perturba ou nos assusta, nos tornamos cínicos, mergulhados em pura ironia. Vamos olhar nossos demônios pessoais, encarando-os com os olhos, para que o Tempo passe devagar. Se a Beleza lhe és maldita, faça dela um poema com os olhos a sorrir. Escreva um poema em memória, mas não deixe de sorrir com os olhos. Seja por puro orgulho, ou na singela falta de não saber como lidar. Seria tão bom se todos soubessem usar as palavras, mas eu penso que ao mesmo tempo o Silêncio é um aplauso necessário. E então sigo minha vida perdida entre palavras jogadas ao vento, e elas navegam no oceano de minha reclusão. Passo meus dias como uma eremita sem cachimbo, perdida numa selva de pedra. Enquanto as pessoas amaldiçoam o mal tempo, eu penso nas intempéries dos “por quês” de tudo aquilo que me aflige ou me move.

 Agora já parou de chover. Foi apenas uma chuva rápida, talvez apenas para me dar um pouco da felicidade da espera terminada. Almejei a chuva desde ontem, e eu sei que as estrelas não aparecerão nesta noite de céu nublado. Talvez todas elas, escondidas atrás das nuvens, são apenas um brilho mórbido. E a Morte nunca me pareceu tão bonita aos olhos. As estrelas morrem ao perder combustível e ao olhar para este céu a enegrecer, eu ainda busco por quasares pulsantes, ao entardecer, na calada da noite, até o quase amanhecer, hora ao qual eu fecho meus olhos. E é neste momento, que minha alma tão inquieta, descansa, como um diamante bruto na natureza, nunca antes encontrado. Qual é o nosso preço? Dizem que somos poeira de estrelas, sendo assim, nós humanos malditos e inquietos, não temos preço para compra… Ao pó retornaremos. Sem mais, apenas as gotas de chuva a secar na janela.

O espelho dell’ Arte

Cansou o Pierrot a sorrir.  Na verdade ele nunca sorriu, era uma pessoa triste, aos cantos, nas praças, nas praias, onde quer que fosse. Era completamente mergulhado no estigma de seu personagem da Commedia Dell’ Arte. Alegre antes com sua Colombina cheia de amores, a tristeza do desdém amargo em canto de boca. Cálidos beijos silenciosos, pintura desbotada. Sentado em uma cadeira na coxia de um teatro escuro, com um lenço nas mãos borrado de maquiagem improvisada. Amou a Colombina, mas ela nunca viu teu verdadeiro rosto. Sonhou com ela lambendo-lhe a face como um cão sem dono, e a sua língua era áspera com pontas afiadas, machucava a pele como uma navalha . Não havia nada de angelical, era tudo trágico, com pequenos demônios atentando-o em partes baixas. O seu amor era como os dramas do teatro. Desejou-a como as estrelas, mas elas nunca caem no céu, apenas perdem o combustível até morrer. O Pierrot perdia sua identidade, já não tinha mais no rosto toda a alegria pintada, era tristeza, parcialmente borrada. Ao lavar o rosto na pia cheia de tinta e cabelos, viu a água branca como cal. Com uma velha toalha retirou o que restou do personagem. Na frente daquele espelho já velho e embusteado, estava um homem inteiro, mas quebrado em milhões de cacos. Nunca vira o rosto de sua amada. Ela era apenas uma personagem embaixo de tantas cores, e ela nunca mostrou além daquilo. As cortinas se fechavam, o espetáculo acabava ali, ao final da apresentação.

VERSO, POESIA E ESTÉTICA, por Wilson Rocha

O texto abaixo foi encontrado enquanto acompanhava as postagens dos leitores na página do Literatortura. Me encantei com este ensaio sobre a construção da poesia e seu papel na sociedade. Wilson Rocha escreveu este artigo para o jornal “A Tarde”, de Salvador, Bahia. Meus agradecimentos à leitora Rrose Selavie por compartilhar este texto! Espero que os leitores do blog, assim como eu, se encantem e espalhem esse ensaio, escrito com tanta maestria.

“A condição essencial da subjetividade lírica depende antes de tudo do domínio da arte poética, da técnica de versificação, que comporta uma forma estrutural em que o mundo sensível, a interioridade e individualidade poética, ou estilo, possam mais facilmente submeter-se às formas teóricas que a arte exige, pois a estética, mais que uma necessidade, é uma exigência acima de tudo. Todos sabem que neste mundo sempre há quem escreva versos sem ser poeta. E também – como disse Tomachevski – que a língua vulgar contém tudo o que está na poesia, menos poesia.

Na era tecnológica em que vivemos, a decadência da vida civilizada está exaurindo a arte e secando as fontes da criatividade e da vida espiritual do homem. Por isso o conceito de poesia está morrendo na alma do homem contemporâneo, que parece estar-se voltando para a vida tribal e fixando-se no psiquismo consumista, na irracionalidade do drama ecológico e na imensa e indomável economia das drogas.
Os poemas atualmente produzidos são quase sempre meros atentados contra a língua e a estética, sobretudo em um país provinciano e tradicionalmente iletrado como o nosso onde os pequenos literatos são tão abundantes e televisivos e os poetas se confundem com os fazedores de modinhas, como se a poesia fosse algo tão banal, descartável e massiva como a música popular.
Na conjuntura intelectual da Bahia, onde já não se vêem atualmente jovens poetas eruditos como Jair Gramacho, é reconfortante vislumbrar, contudo, algum brilho na produtividade de uns raros poetas emergentes, como, por exemplo, Carlos Loria, que prestou recentemente um valioso serviço às letras do nosso meio ao traduzir com perícia e brilho todo o fascínio, a magia e o lirismo genial de um dos maiores poetas do século, o norte-americano Edward Estlin Cummings (1894-1962). Além de poeta dotado de forte vocação lírica e bom tradutor, Carlos Loria é um artífice consciente das dificuldades. O seu ofício e seus livros, elegantes e agradáveis, são de boa categoria gráfica, como se vê em Cummings 20 Poemas, edição Código, Salvador, 1990; Casa Clara, Código, 1991, e Territor, Edições Audience of One, Salvador, 1993, ambos de excelente qualidade, poesia marcada pelos sinais pungentes da existência do homem, as cores e os eflúvios do cotidiano, a sombra e a memória da criatura e de seus objetos. Acontecimento sobretudo significativo é a sua tradução dos poemas de Cummings.

any man is womderful
and a formula 
a bit of tobbacco and gladness
plus little derricks of gesture

(todo homem é um assombro
e uma fórmula
um pouco de tabaco e júbilo
e um que outro ademane)

Poesia atenta aos rumores e visões que a cercam, que se procura intimamente, obsessivamente buscando novos caminhos, hesitante entre vanguardismo e uma longínqua descendência surrealista, a voz poética de Almandrade (Antonio Luiz M. Andrade), também arquiteto e artista plástico, já com obras publicadas, caracteriza-se por uma dramaticidade não longe nem isenta das grandes preocupações vivenciais do homem contemporâneo, como se vê em seu último livro, Arquitetura de Algodão, onde se encontra esse instante de puro lirismo:

Quando vem
a noite
corro atrás
do sono
na certeza
talvez
de encontrar
tua imagem
no sonho.

A força da poesia está no súbito confronto do espírito do homem com o desconhecido, com o impacto da visão daquilo que não existia antes.”

Wilson Rocha (1921 – 2005)

João e Maria

Era de se admirar. João ficava no canto da cela com os olhos baixos como se a saudade fosse a única que restasse. Os remédios já o tranquilizavam. Ele brincava na solitária com seus brinquedos de criança. Pensam que o louco não tem memórias, e tenho um amigo que me diz que lembranças e saudade enlouquecem o homem. Ali, no canto, perto da cama dura de hospital, João achava que era um herói. Um dia, sua tia lhe deu um cavalinho de plástico. Não queriam deixar ele entrar no hospital com seu cavalinho. Não era um louco perigoso, mas cortaram as patas do cavalo. Ele era louco de fazer de um brinquedinho de plástico uma arma? Talvez, mas era feliz com seu cavalo, ele falava inglês e João dizia à enfermeira que era necessário um dom para ouvi-lo. Uma enfermeira indagou João, que o cavalo dele não poderia levar o Herói João e a mocinha Maria… Ele não tinha patas. João ficou um tempo de cabeça baixa, enquanto a enfermeira aplicava-lhe a injeção. Pensou em algo coerente ou incoerente para responder àquela enfermeira pequenina com olhos de menina e lábios carnudos de musa renascentista. Disse-lhe que teu cavalo podia não ter patas, mas ele voava no confins dos sonhos de toda uma humanidade. A enfermeira deu um sorriso e o questionou se ele era realmente louco. Pensou baixinho, consigo mesmo. Queria desvendar aquela homem ali, que em acessos de loucura disse à todos que não iria mais ao jardim tomar sol porque o demônio dançava pelado no jardim. O que eram os sonhos de uma humanidade para um louco?

– Você é a noiva do cowboy! – disse João, segurando uma boneca de pano que pertencia à irmã, que nunca mais o visitou.

– E quem é este cowboy, menino João? – disse a enfermeira, ao ver o boneco velho também sem pernas, considerado pontiagudo demais para conviver em pacífica consciência com João, o Louco.

– Agora o herói sou eu Rosaly… E você é a Maria, além das outras três ali, mas hoje minha rainha é você, e estou levando-lhe para um faroeste em Paris… Você fala a língua de Paris?

– Não, não falo. O que vai ter neste faroeste em Paris? Não quer mais ser cantor de rock? O que faz um cowboy em Paris?

– Tonta! Já lhe disse, eu sou um herói! Eu tenho o cavalo Rocinante, eu mato dragões que cospem champagne e caviar. Sabia, eu tenho batalhões, todos vestem chapéu e carregam o coldre com uma pistola de cada lado. Levo um punhado de dólares. Ainda sou cantor de rock, sou um astro, maior que o sol.

– Mas tu disseste que és cowboy…

– Eu canto apenas de manhã, e o sol que entra no quarto agora indica que já é tarde. Agora eu enfrento batalhões, tenho de matar Hitler com uma facada no pescoço, beber até a última gota de sangue. Depois transar contigo… Além das outras três.

E as outras três bonecas de pano jaziam no canto do quarto. João, o Louco, só queria Maria…

– Estás muito bonita hoje Rosaly… Maria Rosaly – disse João enquanto pegava um copo de água da enfermeira Rosaly.

– Como sabe que o meu primeiro nome é Maria? Tu és bem espertinho!

– Você tem os olhos de mulher louca… Sabe? Crazy eyes… Eles se movimentam, fora de órbita. E o M na frente de seu crachá. M. Rosaly… Sou louco mas não sou burro. Agora saia. Quero brincar que sou rei. Cansei do faroeste. Minha mão está cheia de pólvora. Tenho alergia à pólvora. Saia, por favor…

– Pensei que agora eu seria tua rainha e seríamos felizes, cavalgando as tardes nas colinas! – e Rosaly saiu, fechou a porta e viu João atirar o cavalo pra longe.

João pegou sua coroa de papel. Ele era Luis XIV. Era o sol, era um juiz, era o professor supremo, amado por tudo e por todos, desde as pessoas sadias, aos loucos das montanhas. Os solitários, os extravagantes, a lua e as estrelas. Todo mundo obrigado a ser feliz. Quem não era, ia para a guilhotina e com o sangue fazia chouriços para alimentar o povo. Só faltava a princesa. Aquela era a terra de ninguém, era apenas ele, e os sonhos de correr com sua amada, pelas ruas floridas do seu reino. Ela poderia andar nua se quisesse, mas a enfermeira Rosaly achava que ela era apenas um brinquedo, uma boneca de pano jogada no quarto. João era louco, ela não poderia dar-lhe a mão, não poderiam jogar pião no jardim. O demônio andava por lá, ele tinha medo. João poderia montar-lhe em cima, e fazer dela o seu brinquedo, o seu bicho favorito. Queria não sentir medo. Queria que ela não sentisse medo, queria que eles se dessem as mãos. Mas ele era louco. O medo sempre foi a maior loucura dos homens e a maldade, ainda existe. E João ficou, na sua solitária, olhando lá fora na janela cheia de grades e vidro blindado. Murmurava ” Não fuja, não fuja não…”, e por vezes procurava enfermeira Rosaly no jardim. Rosaly era sua Maria. Ele a mandou embora, pois em sua consciência de louco, sabia que tudo ali era um faz de conta. Para além das fronteiras do jardim do manicômio, sua Maria some, e nem dele vai se despedir. Ela se aninha nos braços do marido, faz a janta das crianças, carrega-as no colo e lhes conta uma história de ninar. E em seus sonhos de romance, ele como homem, desmistificado de toda sua loucura, as noites com Maria não teriam fim. Rosaly apareceu no jardim. Pela primeira vez ela viu que João a observava da janela. Sorriu e mandou um aceno. Será que aquilo era sincero?

Quando estava anoitecendo, Rosaly entrou na solitária. Queria se despedir de seu louco favorito.

– E agora João, quando anoitece, o que você é agora?

– Agora Mariazinha, eu sou o louco consciente, que se pergunta o que a vida afinal vai fazer de mim.

Silêncio…

Eppur Si Muove

Outrora, eu tinha voado. Não sei se foi em um sonho, provavelmente sim. Lembro-me que quando eu era criança, eu acreditava que se eu comesse asa de frango, eu poderia voar, e sim, eu era criança e não fui atenta ao fato de que frangos não voam, mas a risada dos adultos diante de meu sonho Ícaro, voavam até o vizinho mais distante. Hoje a única asa que eu me permito ter, são as asas da imaginação, e uma viagem frenética de deja-vu por hora.

Dias atrás fui caminhar. Caminhei durante duas horas, escutando música ou apenas um eco de meus pensamentos. Era necessário sair para espantar alguns fantasmas que andam me atordoando, e esquecer aquilo que me tirou do eixo. A racionalidade me pegou, assim de surpresa. Então coloquei os livros de um presente esquecido propositalmente de ser entregue na minha estante. Vejo lá o meu amigo Fernando Pessoa, com uma fita de cetim separando o poema eu marquei como o meu preferido. Foi a primeira vez e assim espero que seja a última, que eu nunca entreguei um presente ao qual gostaria de entregar. Porra, é tão chato isso! Eu poderia entregar-lhe em casa, mas nunca entreguei um presente à alguém sem olhar nos olhos. Na Europa, não sem brinda sem olhar nos olhos. Eu não entrego presentes sem olhar nos olhos. Eu não ligo pra teu desconforto, eu sou mais simples do que imagina. Se isso não é possível, engulo meu orgulho, certas coisas eu carrego junto ao meu egoísmo. E a leitura, ou releitura dos livros que eu não lhe dei, terá um gosto, assim, triste. Não gosto de guardar mágoas, mágoa tem gosto de fel. A mágoa é amarga, é dura de engolir, não tem tempero, sem nada. Mastiga, mastiga e mastiga. As mandíbulas doem, e você não quer engolir, mas seria horrível cuspir aquele pedaço de Amor intragável, não diluído tentamos em vão, talvez, aceitar nossa condição, nossos erros, nosso amor e desamor. Engolimos, em seco, ou com um pouco de água. A garganta dói, é nosso orgulho passando. Entra no estômago, dá uma indigestão, mas aceitamos. Simplesmente, aceitamos. A razão, quando chega, destruindo nossas emoções cheias de lembranças, embriaguez, flores, cidade distante no horizonte, sonhos de homens que atordoados, caem na cama ou sarjeta, esperando por dias melhores. A verdade dói, mentiras são muito mais confortáveis, e a verdade volta com a necessidade de esquecermos algo que em nossos sonhos de Dom Quixote achamos que eram recíprocos. Dom Quixote amava Dulcinéia, e achava que os moinhos de vento eram dragões. Minha consciência é o Sancho Pança. Ela sempre, como um fidalgo montado num burrico, tentou me avisar, mas eu era como (ou ainda sou?) como Dom Quixote. Ora Sancho como tu és besta! Assim como Dom Quixote, tenho o mal da fome em excesso, o Amor às causas perdidas, as dores do mundo não me bastam em meus ombros, sinto todo o Amor do mundo, e mesmo sendo besta e atordoada, me contento com a tua falta de atenção. Sim, um Amor besta às causas perdidas, ou talvez desconhecidas. Há um frio no estômago a quem me dirijo as palavras, e o frio emudece, como uma pradaria no inverno. Escuta-se apenas o eco do vento e o uivar dos lobos, mas só me sobra, ou nos sobra, um silêncio sepulcral, algumas palavras talvez por pura obrigação ou aquele medo de ser cruel sem querer.

Nunca pense que seu amor é impossível, nunca diga “eu não acredito no amor”, a vida sempre nos surpreende. (Dom Quixote)

Dom Quixote era um besta. Morreu louco. Ele nunca desistiu. O velho de Hemingway também nunca desistiu, foi inclusive dormir em sua velha cama forrada com jornais, e sonhou, com as praias de areia branca. Na minha praia não existem leões, nem pegadas. Estou sempre em alto mar, mas eu não espero nada. Nada mais. Minha garganta dói até agora. Tenho os marcadores de cetim dos livros sorrindo pra mim. Talvez apenas eu ache marcadores de cetim algo bonito. Talvez apenas eu ache que o poema do Girassol do Alberto Caeiro traduza a alma de alguém.

O meu olhar é nitido como um girassol
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando pra direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança, se ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo… (Alberto Caeiro)

Eu fui uma trouxa ao reler “O retrato de Dorian Gray” enquanto esperava no aeroporto apenas para marcar teu trecho favorito e entregar-lhe. Sempre achei bonita a comodidade de abrir uma página marcada por fita de cetim e ver ali, um trecho que marcou-lhe a vida. Escutar teu trecho em um tablet é algo moderno, mas você consegue sentir a aspereza e a beleza da sabedoria impressa em palavras? Amo o toque. Gosto de passar os dedos numa folha de papel. Gosto de livros antigos, eles tinham a nobreza do cetim.O Amor possui a beleza sensual e suave do cetim, mas é ao mesmo tempo, áspero como as páginas de um livro velho. E um velho Amor áspero, fica guardado lá na estante. Ficamos olhando a capa já tão surrada, as páginas desejosas das traças. Se eu pegá-lo de volta uma rinite viciante recomeça. Tento curar minha indisposição com um xarope chamado Razão. Mas Amor é como uma droga. Basta sorrir, e o vício volta. Pego os teus livros não entregues, coloco-os numa caixa, e volto a forrá-la com papel de seda azul, prender o laço que eu comprei pronto, pois não sei fazer laços. Odeio amarrar sapatos, mas faço, por pura força da necessidade.  E eu fico, com minhas emoções desvairadas e simples aos olhos dos poucos que me compreendem. Fico aqui, em meu silêncio, uma pagã triste com flores no regaço. A velha garrafa com rosas ainda pousa na minha cabeceira, ao lado de Cervantes e Ernest Hemingway. Teus livros que eu não entreguei sorriam, e na metáfora eles olham pra mim com aquele olhar que você nunca teve, aquele que você nunca se esforçou ou por desacostume e desconforto, nunca ousou em mostrar. Minha rinite está atacada. Meu xarope de Razão acabou. Eppur Si Muove…