Nihil sub sole novi

Eu perdi o alvorecer desses dias tristes de inverno e a neblina indecorosa
Mal conseguia aceitar meus olhos lacrimosos diante de meu desconcerto
Esperei por dias melhores durante amanheceres estoicos, sonhei… Outrora…
Outrora caminhei por onde as folhas indecisas e coloridas do outono agonizaram
Rasguei papéis amarelados com poemas manuscritos e malsucedidos, puro e sádico prazer
Acariciei milhões de grãos de areia dispersos em sonhos ásperos e úmidos de desejo
Sonhei com teus cabelos ao vento, teus passos indecentes embalados sem razão
Mas, tudo foi embora na fração de segundos naquela noite indecente, ainda era Verão
Era verão, outrora sonhei com teus lábios tremendo de frio e almejei a razão e a cura
Silenciei, minha loucura estendeu o chapéu e o brilho de teus olhos. Enlouqueci.
 
Outrora relembrei aquela ventania com tímidas luzes amarelas no horizonte
Lembranças… Agonizei na maresia gélida, como um animal perdido com fome
Disperso na noite a sentir frio, desprotegido, estrofes sem metáforas e métricas
Poderia ter escutado tua voz, seria como uma canção improvisada e talvez desafinada
Qual foi a última vez que eu escutei teu silêncio falar alto?  Esqueci-me, irônica…
Apenas escuto o meu orgulho gritar minha sanidade ao longe, desejo cálido…
Um eco insano eu posso escutar ao longe, nas ondas do mar… Palavras cantadas
Jogadas ao vento, maresia ensolarada que me traz as carícias de lembranças
Lembranças que me atormentam nas úmidas noites que tanto desejei indecorosa
Tuas reticências embaladas à vácuo, uma sutil entrega de suas tímidas palavras.
 
O Amor em um campo de batalha, moinhos de vento são sempre dragões
Derrotas me trouxeram toda a minha razão já perdida em carícias de silêncio
Trouxeram meu ego enterrado debaixo da areia trazida pelo Tempo desajeitado
A saudade ainda permanece numa caixa obscura, trancada, surda e mentirosa
Meu sol de janeiro a abril desvaneceu como as últimas estações de meu amor
No próximo verão estarei a pensar na chuva rápida que me acalma, um desamor
Dilúvio a escorrer em minha janela, teu cheiro esmaecido na memória, amor…
Amor que eu trago, uma construção inacabada, um idioma sem tradução,
Uma flor seca na janela pedindo gotas tímidas que escorrem pelos meus dedos
O Amor em um campo de batalha, agonizando e desejando injeções de morfina.
 
A verdade tão inconveniente de teus pensamentos de instantes mal traduzidos
Caiu em meus ombros já tão pesados, talvez pelas tuas dores sem respostas
Sobrou em mim um resquício de minha natureza crédula e petulante, desnecessária?
Adormeci embaixo daquela árvore onde meu dia nasceu duas vezes, ensolarado
Em tons cinzentos, estendo meu desapego, sou incoerente diante tua distância
A saudade é apenas um eco de uma mentira que já foi uma verdade coerente
Encontrei em velhos poemas as mentiras confortáveis que me pertencem
Outrora eu almejei teus olhos insanos de tempestade e tua culpa, escárnio
Culpa… Culpa de se sentir calado perante os dias chuvosos, silêncio, escárnio…
Descansa alma intensa… Na calada da noite a saudade é apenas uma ironia… Escárnio?
 
Ironia… Estrelas provavelmente já mortas
Mas o brilho delas ainda nos pertence…
Ironia?
Não…
Saudade…

 
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Nihil sub sole novi – expressão em latim que significa: “Não há nada de novo debaixo do sol”.
 

 

Crônica Urbana

São várias as faces do mundo urbano, basta dar apenas um pouco de atenção. Por volta das dez horas da manhã, as crianças estão brincando no quintal de areia e cheio de brinquedos da creche perto de casa. No quintal da creche há uma pequena casa, onde as crianças entram dentro e algumas delas ficam com a cabeça pra fora, olhando o movimento. Outras disputam o balanço. Num canto coberto, as crianças sentam-se ao chão e ficam com os olhos e ouvidos atentos para a professora com livros de fábulas nas mãos. Enquanto as crianças aproveitam e vivem a juventude, na rua de cima, no final da tarde, um homem está encostado na parede com as mãos na nuca, enquanto a polícia o revista. No bolso, celular roubado e um pacote de capsulas de cocaína. O policial questiona onde estavam os outros integrantes do furto da residência que ocorreu a uma quadra dali. Ele disse que não participou de nada: “Não sei de nada não senhor”, “Mas o senhor bate com as características dadas pela pessoa que denunciou”, “Mas não fui eu não senhor”. Uma senhora carregando duas sacolas cheias e aparente pesadas, parou de frente com o policial e disse que uma casa da rua dela foi assaltada no dia anterior. Indagada pelo policial se a mesma havia chamado a policia, a senhora respondeu que chamou e a viatura nunca chegou. “Liguei umas três vezes senhor policial, na última disseram que estavam sem viatura no distrito”, “A dona da casa abriu boletim?”, “Não sei senhor, a casa é dela, deve ter aberto não é? Se a casa fosse minha é o que eu teria feito”. E então ela foi embora, com uma cara feia, e desabafando que as coisas nunca dão certo. Ela passou por mim, no final da tarde enquanto eu aguardava o ônibus para ir a um curso. Olhou pra mim e apenas exclamou: “É brincadeira né? Nós pagamos para eles não trabalharem!”, e continuou descendo a rua esbravejando, sozinha. Eu apenas olhei e dei um sorriso sem graça. Enquanto homem era algemado, o ônibus chegou. “Boa Tarde Chris! Sua filha melhorou?”, “Pois é menina, dei uma correção nela. Está de castigo em casa, um mês sem sair de casa. Quem sabe ela esquece aquele filho da mãe!”, “Vai dar tudo certo, o Tempo cura qualquer coisa, é o que dizem não é?”. Uma semana antes, Chris, o motorista estava tristonho num canto do terminal do ônibus. Conhecido por ser uma pessoa que está sempre conversando e rindo de alguma coisa, ou na rodinha de fumantes na entrada externa do terminal, estranhei aquele comportamento atípico. Naquela noite, eu havia saído e comprei algumas fatias de torta de frango e empadas de palmito. Ofereci ao Chris, que naquele horário sempre estava com fome e nunca recusava nada. Disse ele que estava com dor de estômago, e que nada descia, que a fome não existia mais pra ele. Perguntei se havia acontecido alguma coisa, ele respondeu que a filha estava lhe dando úlceras por causa de uma paixonite pelo aviãozinho do tráfico de drogas da região. Disse que ela se dizia apaixonada, e que tinha planos de se casar. “Ela só tem quinze anos, é uma menina! Se ela me aparece grávida deste sujeito, o que eu posso fazer?”. Pediu desculpas pela indisposição. Disse-me que quando resolvesse o problema, aceitaria um pedaço de torta. E naquele fim de tarde, aparentemente o velho Chris estava com um sorriso no rosto. Eu pensei se ele realmente acreditava que um mês trancafiada sua filha iria deixar de gostar do tal rapaz. Eu quase perguntei, mas muitas vezes podemos nos enganar. Quem vai dizer que aquilo era Amor real? Poderia ser apenas uma paixonite fogo de palha. Às vezes este Tempo seja mesmo suficiente. Quem sou eu para questionar as ações de um pai de família desesperado e que perdeu a fome de preocupação?

 Chegando ao terminal, próximo de embarcar em um segundo ônibus que enfim me levaria ao meu lugar de destino, um grupo de rapazes improvisava uma música de funk ostentação. Uma delas era uma homenagem ao MC Daleste, morto recentemente durante um show. O ônibus chegou e as pessoas se acomodaram. Os rapazes da improvisação sentaram no fundo do ônibus e começaram a rolar as letras, carregadas da vida de luxo, uma vida cheia de aparências. Em outros momentos, rolava um proibidão, e o desconforto que já era visível nos passageiros do ônibus, se intensificava. O ônibus parou no acostamento da avenida e o cobrador desceu de sua cadeira alta do alto da roleta e proclamou a expulsão dos rapazes, caso eles não parassem de cantar. Enfatizou que a música cantada por eles era tão proibida quanto ao funk tocado em aparelhos celulares sem fone de ouvido, e que estava incomodando os passageiros. Um dos rapazes alegou que não tinha nada a ver, e que aquela atitude era puro preconceito, porque se fosse qualquer outro tipo de estilo musical, ninguém iria reclamar, “Se eu começasse uma bossa nova aqui, seria aplaudido, sacumé meu irmão, bossa nova é chique, é da elite, funk é povão, classe baixa, oprimida, leva tiro de anônimo no meio da multidão.” E prometeram que ficariam em silêncio. Num dado momento da trajetória, os rapazes entoaram um novo hino:

“Aê hipocrisia a bordo do busão

Eu faço com meu funk ostentação

Tua bossa nova não vai te levar a nada

Esse som de elite metida,tudo marmelada

Daqui um tempo, eu nas ruas com meu carrão

E você aí meu irmão, ainda andando de busão.”

E desceram do ônibus, cantando. Algumas pessoas riram, outras abaixaram a cabeça, talvez a refletir sobre o trecho dos rapazes da “periferia”. E o silêncio ficou até eu descer em meu ponto de ônibus. Na outra esquina, parei na loja de conveniência para fazer hora enquanto meu curso não começava. O assunto era os R$2,59 do litro da gasolina. Enquanto bebericava meu café expresso duplo, uma rodinha se formava cheia de opiniões a respeito da alta dos preços, e a coisa começava a ir para outros setores. Um senhor disse que ele se lembrava de uma época que o leite custava um real, e não tinha todos os nomes estranhos que se vê na lista de ingredientes. E o assunto mudou, a pauta era o leite: “Hey mocinha, tem leite no teu café?”, “Não, estou tomando apenas café”, “Você gosta de café com leite?”, “Adoro, de manhã, com pão com manteiga ou requeijão, ou um cappuccino caprichado”, “Pois é minha cara, saiba que esse leite que você gosta de tomar, está longe do que se tomava antigamente, a não ser que você tome aqueles vendidos em garrafa PET, direto da roça, esse é o verdadeiro! É esse que você toma mocinha?”, “Não, é desses de caixinha…”, “Então minha filha, esqueça, o que você toma não é leite”. Pensei sobre o caso, já tinha lido um artigo bem interessante do Dr. Feldman sobre o leite. Não deixarei de tomar leite, mas quase que pensei em ficar apenas no meu café duplo. Quando paguei a conta, a discussão estava na fonte de cálcio, e o carinha do caixa comentou que a tia dele estava com osteoporose porque ela não gostava de leite. “Hoje ela toma cálcio através daqueles “bagulho” de “Calcitran” não sei das quantas. É caro pra caralho, antes ela ter gostado de leite”. E então eu pensei antes eu tomar leite, do que Calcitran D12. Chegando em minha casa pesquisei novamente sobre o bando de siglas e o tal do Ultra UHT que vem escrito nas embalagens Tetra Pak das caixas de leite. Realmente o leite não é mais como era antigamente, e então eu passei a pensar também: Nada é mais como era antigamente. Continuaremos a cantar o saudosismo por aí. Mas de uma coisa eu sei bem, hoje ao sair novamente pela manhã, vi uma flor que nasceu entre a calçada e o asfalto. Quebrou as barreiras do concreto. O ônibus passou por mim e uma mulher jogou uma garrafa plástica pela janela do ônibus. Quase me acertou com seu espírito de porco. Quantas pessoas atiram coisas pela janela? Quantas pessoas seguram o “lixo” para enfim jogá-lo em lugar apropriado? Jovens bebem nas calçadas do posto e deixam as garrafas no meio fio, pessoas sentam no lugar dos idosos e quando eles chegam, fingem que dormem. Quantas pessoas se recusam a levar uma vida saudável em nome do prazer do vício? São tantas coisas a se pensar, e nisso, nos meus pensamentos diante daquela flor do asfalto, uma senhora me entrega um panfleto sobre o grupo de oração da vinda do Papa. Dei uma olhada, quase indiferente, mas ela tinha um olhar bondoso. Não vou discutir com uma senhora crédula que a vinda do Papa só vai beneficiar uma minoria. Recebi um texto nesta semana dizendo que “reza a lenda” nos trará sim benefícios, que os gastos pagos com dinheiro dos cofres públicos serão retornados em forma de benefícios públicos. Isso me faz lembrar a JMJ que ocorreu em Madrid, em 2011. Hoje a Espanha está em crise. Devolvi um sorriso pra ela. “Você vai participar”, “Não senhora, tenho compromisso neste dia”. Já me disseram um dia: “Verdades doem, mentiras são agradáveis”. Olhei a flor ali no chão. Pensei em ir à banca comprar jornal e tomar um café com leite na esquina. A flor ainda continuou ali, alheia, pedindo um pouco de atenção.

Chernobyl: No rastro do vento negro

Este texto é uma matéria feita para o site Causas Perdidas: http://www.causasperdidas.literatortura.com

“A pequena Marina perguntou à minha mãe: “Professora, por que é que nossas avós fizeram o sinal de cruz para o nosso trem?” Os olhos de minha mãe expressaram profunda dor. Minha mãe que vinha encorajando a todos sem descanso, correu para a plataforma do vagão e chorou em voz alta.”

Tempo atrás estava no Terminal Barão Geraldo, quando fui ver a oferta de livros do bazar de um asilo do bairro que sempre está por lá em algumas semanas do mês. Sempre encontro livros interessantes a um preço muito acessível (no máximo seis reais). No meio de uns vinte títulos, um livro de capa amarela chamou-me a atenção. Com o título de “Bonecos de Neve e Chernobyl”, o livro que estava despercebido foi levado comigo após eu ter pagado dois reais por ele. Sim, dois reais. O conteúdo do livro é bem interessante, e ao mesmo tempo dá uma tristeza sem fim. Gosto muito de histórias e relatos, e, creio que o relato de quem viveu todo o contexto de uma tragédia sem precedentes, enriquece e dá muito mais credibilidade ao contexto. O livro que me custou a bagatela de dois reais, ou um suco de laranja da barraca de pastéis que fica do lado do terminal, deu-me uma semana de reflexões sobre os prós e contras da energia nuclear. E por qual motivo? Bem, para entender, vou contar a história deste livro que infelizmente não tem mais edições, podendo ser encontrado apenas em sebos e em sites que vendem coisas usadas.

Imagine ler relatos de crianças e adolescentes que tiveram a infância minada por dores, injeções de iodo, sessões intermináveis de quimioterapia, muitas delas esperando apenas que a morte chegue? Enquanto o governo não avisava os perigos da radioatividade para o população, jovens comiam hortaliças frutas e nadavam em águas contaminadas. Era primavera em Pripyat, cidade da Ucrânia onde fica a usina Vladimir Ilyich Lenin, conhecida como Usina de Chernobyl. As crianças gostavam de sair para colher bétulas. Depois do dia 26 de abril de 1986, as bétulas foram cobertas de poeira assassina. Após o acidente, e quando finalmente o governo alertou os moradores sobre o perigo da região, as pessoas não sabiam mais o que fazer. Entraram em pânico, os mais velhos, resistiram, sendo que vários deles foram encontrados mortos em suas casas, dias depois pelos “Exterminadores/Liquidadores”, que vou contar mais a frente o papel dessas pessoas que hoje em dia não são lembrados. O termo “heroísmo” está fadado a Neymar e integrantes do BBB. Espero que este texto relembre e nos devolva o conceito de heroísmo. Esta tragédia dramática levou as pessoas a pensarem mais sobre a história do país, sobre a importância da terra natal. Uma história que retrata o quão importante é a contribuição do povo ao país. Neste livro, temos o relato de 25 crianças e adolescentes que viveram com o perigo da radiação e a saudade da terra natal. Além dos depoimentos, temos fotos e ilustrações. A coletânea da edição brasileira foi retirada de “Rastro do Vento Negro”, que foi publicada na Bielorússia e de uma versão editada no Japão, e foi publicada 10 anos depois do acidente, tendo toda a renda da comercialização destinada às crianças vitimadas pela poeira radioativa do acidente. O livro foi viabilizado com a contribuição voluntária de tradutores e revisores, muitos deles, anônimos. A tradução foi feita da edição japonesa e russa, e foi possível a tradução de apenas 25 dos 100 textos que foram selecionados de 500 redações enviadas para o concurso “Chernobyl e Meu Destino”, pois foram encontradas dificuldades em achar tradutores dos idiomas, sendo que na versão russa, a presença de dialetos locais dificultava ainda mais o trabalho. Foram duas edições do livro, e sua tiragem foi de 3000 exemplares cada edição.

Em 26 de abril de 1986, o reator 4 da usina explodiu à 1 hora e 23 minutos, durante um teste, liberando na atmosfera e nos arredores, cerca de 50 milhões de curies de radionuclídeos, 400 vezes mais do que foi liberado em Hiroshima e Nagasaki, durante o lançamento da bomba nuclear em 1945. Falando em níveis de radiação, com o acidente, a escala de radioatividade nos arredores ficou entre 40 milhões de curies de Iodo 131 e cerca de 3 milhões de curies de Césio 137, além de Estrôncio 90 e Plutônio . Estas foram as principais substâncias tóxicas que ceifaram muitas vidas. Além delas, teve emissões de gases nobres, tais como Criptônio 85, Xenônio 133. O Césio 137 tem meia vida de 33 anos. Mas o que é meia vida? O termo meia-vida é o intervalo de tempo para que a substância pare de emitir metade de sua radiação. O Césio 137 espalha-se no sistema muscular e causa mutações genéticas degenerativas. O Estrôncio 90 tem meia vida de 29 anos. Foi o radioisótopo causador de leucemia, pois ele se irradia na medula óssea. Iodo 131 possui meia vida curta, cerca de oito dias, mas foi o principal causador do câncer na tireoide nas pessoas que moravam na chamada “Zona de 30 km”, região que teve o maior índice de contaminação radioativa. Cerca de setenta por cento do território da República da Bielorússia foi atingido. Segundo estimativas, cerca de 2,3 milhões de pessoas sofrem com as sequelas da contaminação radioativa, sendo 500 mil delas, crianças, isso em 1994. Na região dos 30 km, ocorreram alterações na genética de animais e plantas. Foi o maior acidente nuclear da história, tendo além de mortes e muitos feridos até hoje devido às consequências dos lançamentos de substâncias radioativas na atmosfera e solo, houve também uma considerável perda econômica.

A evacuação da maior parte da região ocorreu no dia 27 de abril de 1986, após a Suécia perceber que houve um aumento dos níveis de radiação. Até o dia 20 de julho de 1986 faleceram 28 pessoas e cerca de 30 estavam internadas em estado grave, foram vítimas da Síndrome da Radiação Aguda, que atinge cerca de metade dos indivíduos que receberam altíssimas dosagens de radiação. As vítimas desta síndrome estavam entre os bombeiros, médicos e os mineradores que trabalharam na construção de um túnel que os levava até o reator, pois teve uma ameaça de uma segunda explosão que caso ocorresse, faria com que a Europa na maior parte de seu território fosse totalmente dizimada. As doses mais baixas de radiação causaram efeitos tardios em quem as recebeu. Causa tumores malignos e deformações congênitas, sendo que as crianças foram as mais atingidas. Hoje, na região da Bielorússia, há pessoas que ainda estão em contato diariamente com a contaminação, e outras estão desabitadas, como a cidade fantasma de Pripyat e seus vilarejos, também conhecidos como aldeias. Na vila de Dronki, por exemplo, moravam seis mil habitantes que foram retirados à força. Nos locais onde estas pessoas vivem os radioisótopos ainda são ingeridos através de verduras, leite e carne. Os radioisótopos são amplamente distribuídos através da cadeia alimentar, ou seja, o vegetal absorve a substância radioativa do solo, e como servem também de alimento aos animais, a radiação propaga-se para a carne e o leite. Após o acidente de Chernobyl, o índice de câncer na tireoide entre crianças foi para 400 casos. Antes do acidente, a média era de 20 casos.

“Alguma coisa esverdeada estava grudada em nossas roupas e sapatos… Aquela cinza impregnou não somente a minha roupa, mas também penetrou no meu corpo, no meu sangue e no meu destino”

Os habitantes da região do acidente não sabiam a verdadeira proporção do acidente. A maioria continuou com suas rotinas normais, como se nada tivesse acontecido. O silêncio sobre o ocorrido era grande, e o desconforto era também, quando alguém tocava no assunto. Como em todo acidente de vasta escala, demorou, e muito, para que a população tivesse as informações sobre o que aconteceu, a verdade foi escondida junto aos escombros em brasa do reator da usina. Enquanto desconhecidos dos perigos da radiação, a população plantava flores naquela primavera, e após a chuva, as crianças que brincavam no jardim ficaram molhadas de chuva radioativa e impregnadas de cinzas. Na inocência, elas acharam que eram apenas polens. A situação poderia ter sido muito pior se tivesse ventado na noite do acidente.

“De manhã, a úmida neblina interceptava a luz do sol. Fomos à chácara com papai e preparamos a terra para a semeadura. Mais tarde o sol raiou e tomamos banho de sol com muita alegria. Tendo terminado o trabalho matutino, após o almoço toda a família foi de Moscovita para o bosque. No dia seguinte, fomos extrair suco das bétulas brancas da floresta em Sokolóvka. Fizemos a fogueira, assamos toicinhos e tomamos o suco. Assim passamos momentos felizes e alegres. Levamos o suco para casa e o distribuímos a amigos e vizinhos. Também guardamos um pouco no porão para ser tomado durante o verão. No dia primeiro de maio daquele ano – Dia do Trabalho – o tempo estava muito bom também. A praça ficou cheia de bandeiras vermelhas e o povo sorria alegre. Nós participamos do desfile e clamamos em frente do palanque “Hurrah”, glória ao comunismo da União Soviética. (…) Ninguém nos avisou sobre o perigo em colher os morangos e os cogumelos do bosque durante os 2 ou 3 anos. Nós tomamos o suco das bétulas brancas de Chernobyl, comemos morangos e cogumelos contendo césio, estrôncio e plutônio, tomamos banho de sol com o ar poluído de radiação e nadamos nos rios e lagoas contaminados.” (Victor Bisov, 15 anos, no relato “Hiroshima, Nagasaki, Chernobyl)

Os Likvidátori

Na “Zona dos 30 km” foi proibido o cultivo de cereais, ingerir água e criar animais. Os animais da região foram todos sacrificados. No livro, há um comovente relato sobre o sacrifício de cavalos e gado, que antes do acidente andavam livremente pela região das pradarias em torno da usina. O relato foi contado para a jovem Galina Poteenko pelo seu tio, que trabalhou como Likvidátori (Liquidador), termo dado aos 600 mil homens que trabalharam dentro da região contaminada. Foram eles que combateram os incêndios, realizaram tarefas de descontaminação e limpeza. Os que sobreviveram, são hoje inválidos, recebendo pensões do governo para arcar com os tratamentos médicos de doenças. Verdadeiros heróis, os que morreram são enterrados como cidadãos comuns, totalmente esquecidos, e a culpa nunca é do Chernobyl, mas sim de câncer. A maioria dos Likvidátoris possuía de 18 a 40 anos. Segundo estimativas de entidades que tratam das consequências do acidente de Chernobyl, 16 mil morreram e o restante luta contra a invalidez, causada por exposição à radiação beta e gama, que são aquelas de maior poder de irradiação no organismo. No relato “Histórias do tio Dmitri”, a jovem ginasiana Liudmila Láptsevitch conta sobre a vida dura e heroica daqueles que combateram os males de Chernobyl. Segundo o relato, os Liquidadores vieram de países como Rússia, Lituânia, Latóvia entre outros países da ex-U.R.S.S. Eles passavam dificuldades como o frio e fome. O governo distribuía carne enlatada para duas pessoas, o que não era suficiente, pois era uma lata de 328g para ser dividida entre duas pessoas. Para que sobrevivessem, eles se alimentavam das frutas e cereais contaminados. As roupas que utilizavam não eram suficientes para suportar o frio e as fogueiras eram proibidas, pois a radiação era espalhada. Depois de receberem relatos sobre a fome, o governo aumentou a alimentação fornecida, e as condições melhoraram. Os primeiros Liquidadores trabalharam desarmados, mas depois, com o aumento dos saques na região, eles começaram a andar armados. Havia ladrões que roubavam as hortaliças na tentativa de vendê-las nos mercados da Bielorússia, mas como as hortaliças estavam totalmente contaminadas com a radiação, as áreas de agricultura foram fortemente vigiadas, rodovias foram interditadas, árvores derrubadas para fabricação de estacas que foram utilizadas para pregar os arames farpados. Quando a prefeitura raramente autorizava alguns moradores de retirar bens das casas em que moravam antes da evacuação, os Liquidadores os ajudavam a carregar os pertences, sendo que muitos foram saqueados durante o período em que as equipes de Liquidadores eram insuficientes para a região. Apesar de a evacuação ter sido por questões de sobrevivência, muitas pessoas recusaram-se a sair. Era o caso de muitos idosos e por isso, os Liquidadores levavam pão a eles. Alguns foram encontrados mortos, dias depois. Morreram sozinhos, mas morreram ao menos em sua terra natal. Os Liquidadores também ajudavam a espalhar uma solução química que aglutinava a cinza radioativa que contaminava o solo. Com isso, diminuía-se a precipitação delas no ar, mas ainda assim, não diminuía a contaminação, apenas evitava que ela se espalhasse.

Os Liquidadores também eram responsáveis pelo sacrifício dos animais selvagens e domésticos, que se tornaram ameaça a eles. Gatos e cães abandonados pelas famílias que foram impedidas de levá-los tornaram-se uma ameaça. Cavalos, gado, ovelha, foram todos dizimados com tiros e lança-chamas. Abaixo, um trecho do relato, chamado “O dia em que os cavalos choraram”, da ginasiana Galina Poteenko. O relato dela foi baseado numa história que a jovem ouviu de um Liquidador.

“O meu serviço, bem como de meus companheiros, era o transporte de gado para ser morto. Carregávamos vacas e porcos, e assim que os deixávamos na beira do precipício, homens trajando uniforme do exército, que ali se encontravam, os fuzilavam imediatamente.
Na primeira noite, o grito triste dos animais e o barulho dos tiros das pistolas automáticas não saiam de meus ouvidos. Não conseguia pegar no sono. Nunca havia presenciado cena tão horrível.
Na manhã seguinte, recebi ordens para transportar cavalos. Creio que jamais poderei esquecer o que ocorreu naquele dia. Já viram alguma vez cavalos chorarem derramando lágrimas? É um acontecimento muito raro. Pois eles choravam. Choravam alto. Como se fossem crianças pequenas. Ao serem colocados na carroceria, eles deitavam suas cabeças sobre a cabine do motorista. Era como se quisessem firmar seus corpos. O choro miserável dos cavalos machucou meu coração. Eles seriam atirados no precipício ficando com os ossos estraçalhados. Fiquei imóvel, cobri o rosto com as duas mãos, e chorei em voz alta. Eu nunca havia chorado desta maneira. Os cavalos foram queimados com lança-chamas usados na guerra. Talvez isso amenizasse a dor desses animais, mas era um verdadeiro inferno.
Passei a beber como se estivesse me banhando. Durante as duas semanas de trabalho naquele lugar, os meus cabelos embranqueceram por completo, a ponto de nem minha mulher me reconhecer. Creio que não poderei esquecer, até minha morte, as cenas daquela grande matança. À noite, elas surgem em meus sonhos. O pesadelo continua”.

O Amor e a saudade da Terra Natal e parentes vítimas da radiação

Além de perdas de entes queridos, vitimados pela radiação, o acidente em Chernobyl também ceifou o lugar onde as pessoas cresceram, cultivaram lembranças. Um lugar onde as crianças brincavam e se sentiam seguras. Em todos os relatos do livro permeia a saudade da terra onde nunca mais puderam voltar. Sentem-se refugiados, mesmo durante os anos que se passaram. Falam das aldeias (vilarejos) que viviam e do sofrimento, principalmente dos idosos, que tiveram que abandonar suas terras. Recebiam cartas com relatos de como as aldeias foram destruídas e transformadas em meras colinas.

“O “enterro” da aldeia consistiu em usar uma escavadeira para fazer um buraco de cinco metros. Os bombeiros lançaram água do telhado à base de cada casa para não levantar o pó radioativo, e um monstruoso trator de esteira foi “varrendo” a aldeia para dentro do grande buraco. Não quisera ter visto essa coisa assustadora, bem diferente de um simples funeral. Quando penso no monte redondo de terra amarela que se formou ali, meu peito fica dolorido e minha garganta apertada.
Aquela aldeia transformou-se realmente numa aldeia fantasma, Dentro do silêncio triste, algumas casas ficaram em pé e cobertas de ervas daninhas. As janelas de algumas delas estão pregadas com tábuas em cruz e nas ruas não há ninguém – nem gente, nem cães, nem gatos -, apenas a vibração do chão onde estão sendo abertos os buracos do cemitério. Aldeia sem gente. Aldeia da morte.” ( Galina Róditch, no relato “Minha Mãe, eu e o amigo de Vovô”)

“Toda vez que eu vejo os gigantescos carvalhos centenários,
Que contemplo o riacho, ouço o seu burburinho,
O cantar das aves,
Receio que o meu coração vá saltar e subir ao céu.
Por não suportar tamanho esplendor temo perder a visão,
Não ouvir mais os sons e
Não conseguir mais apreciar
A beleza natural da minha terra natal.” ( Liudmila Tchúbtchik, 14 anos)

Apenas no dia dos mortos, as famílias podiam visitar seus entes, alguns deles enterrados em caixões de chumbo, para evitar que o solo fosse contaminado com a radiação. No cemitério de Mitsino, estão as lápides de 27 heróis que trabalharam no combate do incêndio no reator. Vasili Ignatenko, Vladimir Pravik, Nikolai Kibenok, Uladzimir Tsialiatnikau, Viktor Kibiánok, Uladzimir Tsichura, Mikalai Tsitsiánok, Leonid Tsialiatnikau são alguns dos heróis de Chernobyl, e a maioria deles e demais companheiros que estiveram na área de perigo morreram entre 2 a 30 dias depois da exposição. Vasili Ignatenko tinha 25 anos e era 1º tenente dos bombeiros. Ele subiu uma das escadas de setenta metros de alturas e ao pular sobre o telhado da sala de máquinas esteve de frente com a morte em forma de dose letal de radioatividade. Ele conseguiu livrar a sala das máquinas do incêndio, mas morreu no dia 13 de maio, vítima da Síndrome da Radiação Aguda. Deixou sua esposa Lyudmila grávida de uma menina. Quando ela foi visitar o marido que estava em seus últimos dias de vida, ela não pode abraçá-lo, nem beijá-lo, mas desobedeceu as ordens e mentiu para a enfermeira. Ela disse à enfermeira que já tinha filhos, pois se ela dissesse que estava grávida do primeiro filho de Vasili, a enfermeira não a deixaria entrar e somente veria um caixão pesado e lacrado de chumbo. O fato de estar grávida salvou a vida dela, pois parte da radiação passou para a criança em seu ventre, que morreu cinco dias após nascer. Hoje, Lyudmilla está inválida e tenta sobreviver da pensão que recebe.

O convívio com a doença e a espera da Morte

“Na avenida, ainda há sobras da neve do inverno que está terminando. Os meninos fizeram um boneco de neve, colocaram-no numa bandeja do hospital e o trouxeram para o nosso pavilhão.
O boneco de neve é lindo! Com certeza foi Tólik que o fez. Ele sempre quis ser escultor e por isso está sempre modelando peças com massa. Hoje, ele foi autorizado a se levantar também levantar o moral do ambiente. Afinal, começou a primavera.
Ao lado do boneco de neve foi colocada uma mensagem: Atenção meninas, essa é a última neve de vocês.
Por que última? Nós nos perguntávamos chorando.
O boneco de neve foi se derretendo pouco a pouco. Parece que se derreteu por causa de nossas lágrimas”. ( Trecho do diário de Nadzéica, no relato “O último boneco de neve”)

A edição brasileira chama-se “Bonecos de Neve e Chernobyl”. A escolha deste nome deu-se por causa do relato comovente de um dos jovens, Ígor Maroz, que conta a luta de sua prima, Nadzéika, contra o câncer. Aos quinze anos ela passou a sofrer de câncer, e então ela escrevia em seu diário. No relato, Igor diz que sua prima adorava a natureza, e tinha sonhos de ser pintora. Estudava no laboratório de artes. Os últimos dez dias de vida foram os mais tristes, e Igor nos traz trechos de seu diário. Nos trechos, ela diz que numa visita de seu avô ao hospital, ela lhe pediu que caso ela viesse a falecer, não gostaria de ser enterrada em um cemitério, mas sim numa planície ou bosque, ao lado de um pé de pera ou maçã. Tentou suportar a dor de todas as maneiras, faz pinturas e retratos para seu avô, chorou a morte do menino de sete anos do quarto 10. Um dia ela recebeu a visita de uma representante da Organização de Ajuda a Vida Humana da Dinamarca. Esta senhora havia perdido a única filha em um acidente de trânsito. Ela chorava e fazia carinho em Nadzéika, “a pureza do amor é sempre igual no mundo inteiro.” Na página referente ao dia nove de março, Nadzéica nos traz a tristeza de saber que o final está próximo:

“Acabou a fábula. Comecei a ficar ruim novamente. Nunca estive tão mal quanto agora. Já estou sem vontade de lutar contra a doença. As convulsões não param. O remédio não faz mais efeito. Tenho muito medo. Meus cabelos saem aos chumaços da minha cabeça.
Na consulta periódica, Dra Tatsiana me disse que o tratamento terminou. De agora em diante, tenho que recuperar minha saúde em casa. A médica olhou profundamente em meus olhos. Entendi e compreendi tudo.”

Ela morreu no final de março e sua última palavra deixada em seu diário foi a palavra em latim “VIXI”, que significa, em português, VIVI.

No relato “O destino da Bielorússia é o meu destino”, Volga Gantcharova, 16 anos, nos conta que seu pai, assim como outros Liquidadores, recebeu como “reconhecimento”, um certificado que dizia:

“Sargento Maior da Polícia – Alaksandr Miháilavitch
Cumpriu ordens na zona de 30 km.
Secretária do Interior de Khóinitsk.

Volga sofreu com a doença do pai, que veio a falecer dois anos depois do seu retorno ao lar, após trabalhar como Liquidador nas zonas radioativas. Com um tumor maligno na espinha dorsal, a família Gantcharova lutou até a exaustão para conseguir a cura do patriarca, que foi totalmente esquecido pelas autoridades da União Soviética. Segundo o relato, quando levaram o pai a um hospital de Moscou, após serem rejeitados em Minsk, um médico disse: “Porque vieram aqui? Não temos obrigação de tratar todas as pessoas da União Soviética”. Seu pai conseguiu tratamento nos Estados Unidos, mas depois de pouco tempo foi enviado novamente para Moscou para continuar o tratamento. Ele foi abandonado pela assistência médica e morreu no aniversário de 14 anos de Volga, data que nunca mais foi comemorada com alegria. Volga desde os catorze anos sente saudades de enfeitar a árvore de natal, enfeitar a mesa de aniversário. Segundo ela, no dia de seu aniversário de 14 anos, ela enfeitou o túmulo de seu pai, abrindo mão do aniversário. E deixou em seu relato uma pergunta que com certeza está até hoje entalada na garganta de vítimas do acidente, que recebem uma “Taxa de Caixão”, apelido dado ao pagamento oferecido pelo governo para as famílias que moram em zonas de risco:

“Onde estarão agora os responsáveis, líderes e respeitados cientistas que enfiaram milhões de pessoas no inferno da irradiação nuclear?”

Ler os 25 relatos de dor, sofrimento e indignação de jovens adolescentes que tiveram a infância e o auge da juventude destruída por um acidente até hoje perigoso, nos traz um olhar pouco explorado e esquecido sobre um “passado” que continua vivo e despedaçando vidas das pessoas que tanto amaram aquela terra devastada pelo erro humano. O reator 4 da usina de Chernobyl está coberto por um sarcófago e lá dentro, segundo os especialistas, material radioativo continua queimando. Será necessária a construção de mais um sarcófago, pois o que está lá já apresenta rachaduras e outros problemas decorrentes ao passar do tempo, mas a Rússia alega que não tem capital para tal, e os países ao redor também não se manifestam em ajudar.

As gravações e fotografias do local apresentam falhas decorrentes da radiação. Ainda hoje o entorno de Pripyat tem traços de radiação, crianças continuam nascendo com problemas decorrentes da irradiação dos pais afetados pela radiação. Ex-combatentes, que arriscaram suas vidas em pro da família e da pátria, lutam para sobreviver com o pouco dinheiro que recebem do governo. São considerados inválidos e são impedidos de trabalhar. Muitas pessoas sofrem de insônia e depressão, mesmo o acidente ser datado de 27 anos atrás. Não é apenas dor física, é também dor emocional. Muitas crianças da época ouviram, quando adultas, que não há mais nada o que se pode fazer para combater a doença. As crianças não podiam correr nos campos, colher flores, tomar sol ou banhar-se nos rios e lagoas em dias de calor. Passaram a infância vendo placas de proibições e trancadas em hospitais, vendo outras crianças e jovens morrerem. Os mais velhos acham que já viveram o suficiente, mas temem pela vida dos próximos da geração que está por vir. Em Chernobyl e arredores, a dor e a incerteza não é um fantasma, é uma consequência da radioatividade. Seria muito útil que todas as 100 redações das edições japonesa e russa fossem traduzidas para o português, e que houvesse mais edições desta obra que infelizmente está esquecida. Esta, entre outras obras que nos contam relatos de grandes tragédias são tão necessários para refletirmos sobre as grandes questões. Ler ficção é confortável, pois sabemos que as mentiras são mais confortáveis. A verdade dói, e cada relato deste horrível retrato das consequências de um acidente nuclear, nos traz a tona sobre o uso da energia nuclear. O quão seguro são as usinas Angra 1 e Angra 2? Vale lembrar que a terceira usina do complexo nuclear brasileiro está em fase de construção e tem término previsto para julho de 2016. Devemos ou não deixar de lado a energia nuclear?

“Mesmo depois de anos, séculos
Esta dor não nos abandonará
É uma dor tão grande, tão infinita
Que não podemos nos afundar e esquecer
É uma herança da derrota.
Ficará por séculos acompanhando nossos descendentes
Permanecendo nos corações deles
E tirará a tranquilidade para sempre
Quero que cada um que vive sobre a Terra
Se lembre daquele ano, daquele dia terrível…” ( Maria Galúbovitch, 13 anos, no relato “Por favor, não apague a luz da vida”.)

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Metáfora

As horas passam, sangue correndo nas tuas veias e artérias como um rio calmo em dia de inverno. E tem aquele frio, lá dentro,  arrepiando a pele, apertando o peito, uma pressão, como um súcubo ou incubus sentado no peito, olhando-te enquanto dorme. É preciso ter nervos de aço para entender o além de todas as coisas. É preciso astúcia para entender as notas de uma música, e se não conhecê-las, tenha a astúcia para saber senti-las. É necessário o medo, a solidão, a saudade… É necessário um pouco de dor para nos tornarmos fortes, é preciso se encolher na hora de um pesadelo, para abraçarmos a nós mesmos. Que falta de amor próprio, queremos tanto o abraço alheio, mas nós mesmos não nos abraçamos todos os dias. Dias atrás vi em um muro, uma pichação: “Você já amou hoje?”. Já perdi as contas de quantas vezes eu disse não. Já perdi as contas dos dias que o sol não me dá nenhum sorriso. Ele é apenas algo que me esquenta, que aparece todas as manhãs, e no auge das três horas da tarde, ele invade minha sala e me dá aquela vontade de ficar nua no chão, com a luz do sol envolvendo minha pele e tirando aquela tristeza que me entope os poros. É quando eu permito sua luz me abraçar, é como o calor de um abraço. Entende? Não tenho o abraço da pessoa que eu amo, mas eu posso de alguma forma me permitir de usar uma metáfora para representar o calor de seu abraço, mesmo que seja em um dia frio. Eu amo o poder das palavras e toda a luxúria delas transando entre si. Adoro o calor, o amor e o desamor das metáforas. Seria bom se as pessoas fossem como as metáforas… Seria bom…

Houses of the Holy

Abriu os olhos durante aquele instante em que os sonhos davam-lhe uma bofetada sonora no meio da madrugada. Foi tropeçando como uma bêbada até a geladeira. Buscou a garrafa de vidro com água bem gelada, e um pote de sorvete que mal sabia quanto tempo estava lá. Sentou-se ao pé da geladeira aberta, vestindo um camisetão do Led Zeppelin que era de seu irmão. Queria ser como as crianças da capa do  Houses of the Holy. Queria ficar pelada numa pedra, sem que ninguém se importasse. As pessoas se importam muito com as coisas, queria um dia sair descabelada e com a primeira roupa que suas mãos alcançassem no armário, mas sua “chefa” a olharia com reprovação, “imagem é tudo” – sempre dizia  isso em alguma conversa qualquer, num almoço executivo qualquer. Escutava essa pérola dos ditados populares todos os dias, e queria pegar um pedaço do pudim de chocolate intragável que tem nos almoços de negócios e brincar de tiro ao alvo. Queria sujar o blazer branco impecável de sua chefe vazia e cheia dos clichês que lia em seus livros de negócios, que ela dizia que não era auto-ajuda, mas sim, leituras de negócios. “Ohh desculpe, imagem é tudo não é?” – diria ela com um sorriso sarcástico no rosto como a cara de Jack Nicholson em “O Iluminado”. Queria ver como a “chefa” se sentiria desconstruída com a mancha no seu casaco, queria vê-la gritando no meio do restaurante enquanto ela era insolente. Queria ver aquela mulher perder a classe. Ela odeia gente que é perfeitinha o tempo todo. Sairia rindo, desempregada. Talvez pegasse mais um pouco de doce e comeria com requintes de crueldade. Mas ela tem contas pra pagar, e uma mãe doente que depende dela para comprar remédios para diminuir sua dor. Sente saudades da mãe, queria vê-la mais, conversar, mas na maioria das vezes ela está dopada demais para entender e compreender as dores da filha. Mas de alguma forma, sabe sua mãe que ela está ali, ao segurar sua mão e sentir o aperto quente. Quando ela vai embora, as mãos de sua mãe afagam o lençol. É uma maneira de dizer que vai ficar com saudades ou dizer adeus.

Havia uma bandeja de morangos frescos na geladeira, e eles combinariam com o sorvete. Precisavam ser lavados, mas eles talvez não sejam mais tóxicos que os dez cigarros de menta que ela fuma quando vai a shows de blues ou nos dias chuvosos. Adora fumar na janela, escutando “Rain Song” no último volume. Adora quando sua vizinha mal amada bate na sua porta dizendo que está tentando descansar e a música barulhenta não a deixa em paz. Maldita convicção dos dias de chuva. Eram dez horas da manhã de um sábado, Robert Plant cantava e sua vizinha coroca estava “enchendo o saco” dela. A vizinha na porta de sua casa, com um enorme guarda-chuva amarelo embaixo de uma chuva tranquila e fria de inverno. “Desliga isso, por favor!”, e ela soltava as baforadas mentoladas na cara daquela mulher que deve dormir cedo todos os dias e acordar religiosamente nos mesmos horários, comer o mesmo número de torradas e exatamente uma xícara pequena de café ou chá com exatas quatro gotas de adoçante. Ela deve ir à igreja toda quarta-feira e domingo, almoça sempre nos mesmos horários. Ficou olhando na cara daquela mulher que esbravejava na janela, cansou-se. Não gostava das pessoas mal amadas. Fechou a porta, aumentou o som e ignorou a mulher. Viu a infeliz gesticulando brava pela calçada. Ela por sua vez, continuou na janela, sentindo a frieza do seu próprio inverno. Acendeu outro cigarro e encheu a terceira xícara de café. Aquela mulher amarga nunca deve ter ido ao cinema, o jardim dela é tão artificial quanto o sorriso que ela distribui ao lado do padre na porta da igreja…

Let me take you to the movies

Can I take you to the show?

Let me be yours ever truly

Can I make your garden grow?

Os morangos sem lavar tinham um gosto triste. Sua mãe plantava morangos no quintal de casa. Ela costumava apanhar os morangos ao final da tarde, e fazer geleia para comer com torradas e chá. Seu pai nunca esteve presente. Ele era um fantasma desde que ela nasceu. Queria os morangos silvestres de sua mãe, e não aquela porra tóxica e sem gosto. Mas dava-lhe certo prazer ficar sentada na penumbra da cozinha, apenas parcamente iluminada com a luz da geladeira. E aquele frio nas costas e nas pernas, e a água gelada escorrendo da boca, molhando a camiseta. Queria ter um cão. Ele estaria olhando pra ela com cara de reprovação. Ela deveria estar na cama, aquecida pelos braços de um homem, mesmo que seja aquele que aparece de vez em quando e deixa no ar um misto de saudade. Um homem vazio, tão fácil de amar. Ela ama o vazio, nele há um silêncio sedutor que a atordoa. Viu isso em um livro de Rubem Alves. Devorou aquele livro numa tarde despretensiosa, embaixo de uma árvore. Gosta do bucolismo, sente-se bem em contato com a natureza e a calma e compreensão que ela oferece. A natureza vazia… Nunca o vazio foi uma coisa tão linda e necessária.

“A vida precisa do vazio: a lagarta dorme num vazio chamado casulo até se transformar em borboleta. A música precisa de um vazio chamado silêncio para ser ouvida. Um poema precisa do vazio da folha de papel em branco para ser escrito. E as pessoas para serem belas e amadas, precisam ter um vazio dentro delas. A maioria acha o contrário; pensa que o bom é ser cheio. Essas são as pessoas que se acham cheias de verdade e sabedoria e falam sem parar. São umas chatas, quando não são autoritárias. Bonitas são as pessoas que falam pouco e sabem escutar. A essas pessoas é fácil amar. Estão cheias de vazio. E é no vazio da distância que vive a saudade” (Rubem Alves, “Quando eu era menino”)

E ali, naquela madrugada fria, aos pés da geladeira, no silêncio quase sepulcral, se não fosse o primeiro ônibus das quatro e meia da manhã passar na rua, ela refletia sobre a sua vida simples, entre morangos, sorvete e água gelada. Tudo por causa de um sonho que lhe roubou o sono que tanto precisava. Precisava de um pouco de paz, mesmo que ela seja obtida do ato de comer compulsivamente, com Led Zeppelin tocando mentalmente. Poderia chover naquele momento, a chuva lhe traria algumas poucas horas. Gostava de ver o amanhecer em dias chuvosos, e sempre pensava na pouca atenção que as pessoas dão a ele. Existe a beleza em tons cinzentos, por mais triste que seja, a tristeza tem uma beleza sensível, mas as pessoas andam insensíveis, recolhidas dentro de um padrão ditado a quatro cantos. Odeia padrões, e tudo que é pré-determinado. Aquilo lhe traz uma vontade de não estar, um desconforto, uma fuga. Queria uma casinha no alto da montanha, sem pessoas, apenas uma geladeira e um cão. O cão cuidaria dela, sem exigir nada em troca. Não queria perder o sono, queria estar num templo, na frente do templo uma pedra enorme. Talvez ficasse pelada ali, esperando que a frieza do inverno lhe trouxesse uma razão, aquela que ela acha que está perdida nos confins de um tempo que não voltará mais. Já não é mais uma menininha. As gotas de chuva que molharam suas roupas no varal, as gotas de chuva que escorreram no rosto tem um gosto amargo. Talvez na primavera, o silêncio do inverno se dissipe, e quando chegar o verão, as tempestades de fim de tarde trarão aquele instinto de medo e delírio, e a vontade de sorrir mesmo quando não há motivo algum para tal. Talvez ela vá ao cinema, a um show de blues. Talvez as rosas de seu jardim floresçam novamente, talvez ela vá correr na chuva como uma tola, perdendo fôlego, talvez ela espere o seu Amor numa esquina errada. E ela é apenas uma garotinha inocente, nua e crua, como as crianças do Houses of The holy, nua e crua, correndo pela areia, vivendo o delírio e suspiro da inocência e saudade.

Lembra-se dos nossos sonhos de areia?
Brincávamos na praia construindo castelos
E vinham as ondas de convicções e destruíam tudo
E apenas olhávamos um ao outro, silenciosos
Sonhos de marolas ao entardecer, ventania
E nossos cabelos bagunçados sem querer
E eu beijava seus cílios, tirava grão de areia intruso
Mas você cresceu meu Amor, e a única coisa que me resta
É você vindo em sonhos de cardume, um reflexo metálico
Sua sombra de menino sem medo correndo na areia
E o barco de velhos pescadores no horizonte ao amanhecer
Saudade… Sonhos de sílica.

"Eu tive um sonho. Um sonho louco. Qualquer coisa que que eu quisesse saber..."
“Eu tive um sonho. Um sonho louco.
Qualquer coisa que que eu quisesse saber…”