Um café para Irene

“Let me fly
Let me fly
Let me rise against that blood-red velvet sky” (“Undertow”, Pain of Salvation)

Irene… Ele chamou com a boca seca. Era cedo e os primeiros raios de sol já anunciavam a alegria trágica de mais um dia. Olhou para lado, os lençóis manchados, em desalinho, Irene não estava lá, nem sentada na poltrona velha com espuma saindo que fica no canto do quarto. Ele se lembra que ela costumava sentar-se lá após o banho, enrolada na toalha, e ficava horas lá lendo livros, e a toalha escorregava e ela ficava com os seios arrepiados a mostra e os cabelos molhados escondendo o pescoço. Irene… Chamou ele. A garganta doía. Ele pegou friagem durante a noite, enquanto fumava um maço de cigarros lá fora e tomava um velho Jack. Estava de ressaca e Irene estava novamente sentada na cadeira em volta da mesa jantar lá, com os olhos mirando o infinito, em seu mundinho particular, falando com os olhos. Desde que aquele acidente aconteceu, ela apenas fala com olhos. E ele sofre de refluxo estomacal cada vez que senta ao lado dela e tenta uma aproximação.

Eu não tenho culpa… Foi um acidente Irene! Você precisa entender isso. Murmurava ele enquanto a água fria escorria da torneira. Molhou as mãos, levou ao rosto, coçou a barba áspera perto das têmporas, a água fria paralisou a face e por instantes que olhou o espelho, mesmo ele não estando quebrado, ele enxergou vários eus, todos fragmentados. Uns tinham sorrisos sádicos, outros, davam risada e contavam piadas sujas de humor negro, como se fossem comediantes de stand-up. Mas era um riso forçado. Outro tinha ares cruéis, outro vomitava sangue, o outro simplesmente sorria e dizia: Um brinde!

Vestiu uma camisa, colocou os chinelos, abriu a persiana. Os urubus estavam nas cercas, nas árvores, alguns com as asas abertas, outros pulando de jeito engraçado pra um lado e para outro. O fedor do matadouro de porcos os atiçavam, o mau cheiro, de carne apodrecida, ele já se acostumou. Ele acreditava que Irene também se acostumou, pois ela não reclama mais. Desde o acidente, ela não reclama mais. Visitas não vão mais em casa. Irene se sente sozinha. Irene odeia aquele lugar.

Querido, temos que sair daqui… Deixe me ir? Deixe-me voar… Com os urubus lá fora. – dizia ela, com risos irônicos.

Ele engole em seco, descendo as escadas viu Irene, ela estava lá, sentada na mesa de jantar, indefectível, simples e humana. Tão humana…

Querida, eu parti suas asas, você não pode voar mais, nem correr… Você nunca esteve tão humana querida, quando eu olho pra você, eu vejo… O quão humanos nós podemos ser. Lembra querida? Das nossas conversas noite a dentro? Você sempre foi tão humana… Mas nunca como hoje. Nunca como nos últimos dias.

Em direção ao sol que ela tanto amava… Os olhos de Irene fitavam o sol que tentava entrar e iluminá-la. Mas se ele abrisse as cortinas, a paisagem horrenda dos urubus na cerca a assustaria. Irene odiava aquele lugar, aquele cheiro, as moscas… Moscas no vidro da janela, moscas em todo os lugares.

Querida, você está presa em um cadeira, deixe-me levá-la para ver o campo mais tarde. Você está pesada, mas eu vou te levar, eu vou te amar. Faz tempo querida, que nós não fazemos sexo. Porque? Eu lhe prendi tanto assim? Porque você caiu da escada, numa briga infantil e agora não fala comigo, não quer comer, não quer me amar…

As panquecas com carne e molho que ele fez pra ela no jantar da noite passada estavam lá. Ela nem mexeu nos talheres, não tinha a marca de seus lábios no vinho Carmem que ela tanto gostava. Ela não bebe, não come…

Ele acendeu um Luke Strike e colocou na boca dela que estava sempre com um sorriso sem graça.

Irene, vou preparar um café, e torradas com mel, que você tanto gosta. Aceita? , ajoelhou aos pés dela, afagando as pernas, roxas de hematomas. Beijou cada um deles. Vai sarar querida, eu prometo… Acariciou as coxas e meteu as mãos entre as pernas, mais ao fundo. Olhou para o rosto pálido, com sardas, com os olhos inchados, com olheiras. Irene sofre de insônia. O cigarro estava queimando, ela não se preocupava com as cinzas caindo no colo e nem com os dedos dele no meio de suas pernas.

E depois, vou lhe dar um banho, já que você se recusa. Você está parecendo uma porca imunda. E poderia ao menos simular uma cara de prazer ao invés de ser uma  imunda e frígida.

Tirou as mãos do interior dela. Lambeu os dedos. Ela nunca teve um gosto tão forte.

Você gostava quando eu fazia isso Irene, lembra? Você delirava, e agora nem se esforça mais… Nem para fingir.

Ele foi ao armário, pegou a cafeteira italiana, o café extra-forte. Matou a barata que passeou em volta dos seus pés. Outra subiu pelas pernas. Ele chacoalhou as pernas, como numa dança insana. A barata caiu e ele pisou em cima, veio outra, mesma coisa.

Lembra querida? Você gostava de dançar. Você me chamou pra dançar várias vezes, mas eu sempre recusava. E quando eu finalmente aceitei, você me pegou e conduziu. Hoje sou eu que cuido de você querida. Eu lhe conduzo, e faço isso porque eu te amo. Eu faço o seu café na sua cafeteira italiana e passo mel nas suas torradas. Faço o seu chá que tanto você adora e colho as flores que você plantou, mas você não enxerga isso. Você acha que eu não te amo mais, você acha que eu lhe quero morta pra sempre na sua vida.

O café começou a subir com a pressão dentro da cafeteira…

Querida, o café… Quer mais um cigarro? Prometa pra mim que vai comer. Se fizer isso, prometo vou levá-la para ver o pôr do sol, vou-lhe tirar deste inferno, eu não vou mais matar os porcos, vou abrir outro negócio, e os abutres vão embora da nossa cerca. E essas moscas? Eu vou proteger a casa inteira. Eu vou proteger você. Promete? Promete querida? Os olhos dela sempre concordavam com tudo, concordavam agora com as roupas jogadas no chão, ela perdendo sangue, ele lhe arrancou os pedaços, mas ela concordava e o grito interno que partia sem voz, era um pedido de liberdade.

Ele levou as torradas com mel. Ela não comeu as panquecas. Continuava com aquele olhar. O olhar de Irene, mas tinha algo ali, sem brilho, parecia que dentro daquele corpo, não existia mais Irene. Aquele vestido branco com manchas verdes e marrom, com desenhos de vermes, pareciam um quadro surrealista.

Está calor querida, deixe-me tirar suas roupas? Não… Não o faça. Eu quero fazer. Abriu os botões do vestido com os dentes.  Rasgou o tecido com uma força bruta de um homem sedento, beijou cada mamilo, as linhas do pescoço, beijou a boca, a boca inteira. A devorou como um garotinho afoito que não sabia beijar, e a pele dela grudava no corpo dele, o cheiro dela tempestuava os poros, foi um sexo sujo, sedento e selvagem. Quase um canibalismo. Ele transou como um animal, ela era sua presa, indefesa, tão paralisada, fria, cansada, se desmanchando, pouco a pouco, e sua alma se esvaindo, o corpo aos poucos caindo ao chão, e o que sobrasse dele, seria queimado e jogado aos ventos. Mas ele a amava… Ela o amava. Seu corpo se esvaiu, explodiu. E nele a sujeira rastejava, o desgosto pousava. Ele gania, como um animal, um lobo predador. Um animal fragmentado na própria dor e desespero. Irene caindo da escada, degrau a degrau… Ele se lembra disso enquanto transa com ela, e enquanto ele urra de prazer, lágrimas de tormenta escorrem… Ele está num rio, nadando contra a correnteza, navegando em águas sombrias e profundas.

Ele abotou o botão das calças. O barulho de vários carros era denunciado pelo cascalho da estrada. Os urubus crocitaram, pularam de um canto pro outro. As moscas que estavam no vidro continuaram lá, mas um som veio na porta. Ele espiou lá fora. Estava cercado…

Chegou a hora querida… Está na hora de você ficar livre. Mas eu quero partir com teu gosto nos lábios. Beijou-a, mordendo os lábios. Irene sorriu, depois de 7 dias sem ter expressão alguma no rosto. Os vermes se alimentavam dela e do jantar. E um deles saiu de sua boca e caiu dentro do café.

Adeus querida, disse ele. Eu sou tão patético que mordi meus próprios lábios para meu sangue se misturar com o teu. É poético isso não é querida? Fiz um pacto de amor eterno contigo…

Com sangue nos lábios, foi até a gaveta. Tinha apenas uma bala no revólver. Morrer… Um tiro dentro da boca. Caiu no chão, os vasos brancos de Irene tingidos de escarlate.

O seu último desejo, foi fazer um café na cafeteira italiana que ela tanto gostava. Um café, um bom, forte, quente e denso café… Um café para Irene. E ele morreu com um sorriso de ressaca nos lábios e o gosto de Irene misturado com café e e o próprio sangue.

“Let me out
Let me fade into that pitch-black velvet night” (“Undertow”, Pain of Salvation)
O gosto dela na boca, ela delirava quando ele fazia isso. Delirava.
A pintura chama-se “Doubt”, do artista Karien Deroo

Um comentário sobre “Um café para Irene

  1. Felizmente ainda acho bons escritores nesses blogs vagantes na rede, uma pena um tesouro tão escondido.
    Bela descrição, pela combinação de adjetivos, belos vasos brancos de Irene tingidos de escarlate, bela inspiração senhorita, que os ventos de guiem em bons pensamentos.

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