Trilogia do Vento – Vaidade, Cólera e Desejo – Parte 2: Cólera

Homem livre, tu sempre amarás o mar!
O mar é teu espelho, contemplas tua alma,
no desenrolar infinito de suas ondas,
E teu espírito é um precipício menos amargo,
…Sois todos tenebrosos e discretos,
Homem, ninguém sonhou o fundo de seus abismos,
ó mar, ninguém conhece tuas riquezas íntimas,
De tal modo, cuidais de guardar vossos segredos.

Charles Baudelaire

Já estava no décimo cigarro. Dentro daquele apartamento, Clarissa escutava John Coltrane. Três dias sem tomar banho, vestindo uma camisa branca manchada e cheirando a conhaque, três vezes maior que seu corpo miúdo de um metro de sessenta e cinco. A camisa era de Raul, homem que conheceu em um pub decadente do outro lado da cidade. Ele gosta de blues, cigarros de canela, gin tônica e conhaque.

Clarissa conversou com Raul a noite inteira, foram embora bêbados, ou semi-embriagados, como ela sempre dizia. Os dois, perambulando pelas ruas mal iluminadas, dividindo uma garrafa de conhaque e um cigarro atrás do outro. Caminharam três quilômetros falando sobre coisas úteis e inúteis, algumas com nexo e outras sem sentido algum, totalmente desconexas, algo sobre a paixão de queijo gorgonzola batido com iogurte de morango.
“Isso é coisa típica de larica”, disse Clarissa, enquanto capengava de um lado para o outro, com seu sorriso de bêbada e com “Quero sexo” escrito na testa, de maneira que só ela sabia que estava escrito, desde que topou com aquele homem, já embriagada. Ela estava à procura de alguém para satisfazer suas necessidades de sexo casual.

Chegaram no prédio do apartamento dela, ela mal conseguia achar o buraco da porta. Raul a abraçou, segurou suas mãos trêmulas, arrancou as chaves da posse etílica dela. Abriu a porta, Clarissa chamou ele para entrar, ele hesitou, no começo, mas quando começou à pensar na merda que aquilo poderia gerar, Clarissa já havia voado em seu pescoço e estava a agarrá-lo pelos cabelos. No meio da sala, um tapete felpudo, e foi ali mesmo, um sexo selvagem, etílico e sem pudor algum.

No dia seguinte, ela acordou com aquela dor de cabeça desgraçada, e a vontade louca de botar pra fora todas as tripas que ela carregava dentro dela. Gosto de cigarro de canela e conhaque enjoativo, e a lembrança de fundo de dois ou mais copos de gin tônica. Olhou para o lado, e havia ali um homem nu, ao qual ela não lembrava-se de como ele foi parar ali. Ela também não sabia o que ela estava fazendo vestindo uma camisa que não era sua e nem era o seu número. Estava ali, ao lado dela, segundo suas conclusões esquizofrênicas, um homem deitado feito porco bêbado, apesar de nunca ter visto um porco bêbado, só morto, com purê de maçã e vinho branco, servido em noites de natal com a família. Cutucou ele com as pontas dos sapatos, não queria colocar as mãos nele. Ela era um puta fresca, uma vadia que acordou de ressaca e amnésia. Foi isso que ela pensou dois dias após estar curada da bebedeira. Vadia vadia vadia vadia, putinha fresca de não me rele, não me toques, mas quando bêbada libera até as portas dos fundos. Não duvidava que havia feito isso, afinal, ela não se lembrava de nada, e ela era como uma prostituta de metrô, aceitava até vale-refeição. Topava qualquer negócio, e se arrependia depois, quando lembrava de algo.

Sentou-se no sofá, abraçou as pernas, balançava de um lado para o outro, olhava aquele homem nu ali deitado, de boca aberta, babando em tapete felpudo comprado em bazar de asilos. Os velhos morrem e suas coisas são vendidas a preço de banana. A baba continuava escorrendo, e aquele homem peidava constantemente, mas que belo homem ele era, talvez tenha tido um pouco de sorte, mas a única coisa que ela sentia naquele momento, além de dores no corpo, era raiva, ódio, fagulhas de cólera.

“Filho da puta, filho puta, homem nojento!”, começou a gritar aos berros, chutando o homem que ali dormia. Raul acordou assustado, e chamou ela de vadia louca. Ela o empurrou contra o sofá, ele tentava se defender cobrindo o rosto, saiu correndo, vestiu as calças, esqueceu a cueca que ele mal sabia onde estava. Se vestia desviando de retratos, vasos, almofadas, livros. “Louca, essa mulher é louca!”… “Mas deliciosa”, pensou ele, ao ver a virilha dela quando ela levantou os braços para atirar flores fajutas compradas em lojas chinesas.

Percebeu que Clarissa estava vestindo sua camisa, e os bicos dos seios dela estavam duros e aparentes. “Deve estar excitada, o negócio dela é violência, são cenas ridículas e dignas de piedade.”, pensou ele ao vê-la parada com os olhos perdidos, encostada na parede, suada, descabelada e com maquiagem borrada. Ele lembrava do cheiro dela, de quão belo era seu sorriso, sua risada escancarada e gostosa, seu batom barato de gosto de frutas. Mas aquela mulher ali, não se lembrava dele. Raul foi embora, descamisado, sem seu conhaque e cigarros aromáticos. Talvez a camisa um dia a faça lembrar de como ele fez amor com ela, e não sexo. Estava embriagado, mas encantou por aquela insana criatura desde que a viu pedindo um terceiro copo de conhaque com mel e limão, e o cigarro que comprou solto, elegantemente aceso na mão esquerda. Adorou o jeito fino e elegante dela tragar a fumaça, e como ela mordiscava os lábios pensativa, olhando o horizonte.

Já na rua, olhou pra cima, ela estava na janela, vestindo sua camisa, fumando seus cigarros e bebendo o resto de conhaque que sobrou na garrafa. Os cabelos dela balançavam languidamente com o vento. Foi a última vez que ele a viu, mas nunca esqueceu-se da fúria e intensidade daquela mulher, fúria tragada e sorvida em copos de cólera.

Em quem mais eu poderia pensar numa personagem louca?Claro, Maria Elena!!
Em quem mais eu poderia pensar numa personagem louca?Claro, Maria Elena!!

Quatro minicontos antes de dormir.

1-     Lola, a porca de Clarice.

Clarice tinha uma porca de estimação. A porca se chamava Lola, e gostava de dormir embaixo do tanque. Naquele sítio florido herdado de uma sucessão de gerações da família, ela corria em volta do casarão de mais de duzentos anos, feliz, com seu sorriso banguela na boca. Lola dormia estirada no gramado. Lola era quase um cachorro, só faltava latir. Tinha em seu pescoço um lindo lenço vermelho, tomava banho e só comia do bom e do melhor. Era paparicada por tudo e todos. Todas as visitas do sítio amavam aquela porquinha. Um dia, Clarice, no florescer de seus 16 anos, conheceu um rapaz, era seu primeiro contato com as maravilhas do sexo, e existia ali um pouquinho de amor, mas era, a princípio, apenas um tesão louco incontido. Numa manhã de sexta-feira seus pais viajaram, e voltariam apenas no domingo ao entardecer. Clarice queria ser popular, reconhecida, queria que todos a olhassem como uma garota descolada. Ela cansou de ser a garota caipira, já não era mais virgem, perdeu a virgindade no banheiro de uma festa regada à refrigerante e coxinha. Era uma festa da escola, proibido a ingestão de álcool por menores de 18 anos, mas ela bebia seus goles de vício agachada aos pés do seu namoradinho juvenil. Bebeu um copo de guaraná e comeu um brigadeiro. Queria tirar o gosto do licor de seu garotinho da boca. Estava com raiva, ele lhe disse que seus dentes raspavam muito e que ela precisava praticar mais. Mas ele sempre gozava, ”Filho da puta”, pensou ela.

Tudo pronto, Clarice conseguiu arrecadar dinheiro para as biritas e alguma comida. A festa rolando, gente se pegando, gente se drogando. Ela já havia bebido tequila, fumado um baseado e agora se preparava para o chá de cogumelos. O sexo nunca foi tão primitivo, as cores eram muito mais vivas, e o queijo da pizza onde as moscas deitavam suas emoções nunca foi tão delicioso.

A festa rolou, até tarde da noite do sábado. Sua fome era intensa. Perdeu as contas com quantos se deitou, até que o cansaço não a permitia mais viver a luxúria adolescente. Dormiu nua no gramado, e no dia seguinte tinha porco no rolete. Não era uma bad-trip, era Lola, sua amada porca rolando num espeto improvisado.

2 – Uma nuca, um pescoço, pele branca…Barba por fazer.

Era tarde da noite. Estava voltando do trabalho. Estava precisando de umas horas-extras para aquietar a mente. Aquietar no sentido de lhe tirar as coisas que a atormentavam. Ficou esperando o ônibus do outro lado da passarela. Colocou uma música nos ouvidos, e pensava o quanto o cansaço a fez querer sua quente e solitária cama. Entrou no ônibus, cumprimentou Chris, o motorista, e ele perguntou, “mais uma vez trabalhando até tarde! Assim vai ficar rica!”. Ela sorriu um riso cansado, os olhos pesados, querendo fechar. Sentou-se no banco nos fundos do ônibus. Hoje, ela não pensaria no seu amado, seria uma noite apenas para seu cansaço. Ela sabe que iria sonhar com ele de qualquer forma, e que de noite as ruas são escuras demais para ver as flores amarelas que nascem no asfalto. O girassol do jardim do bairro de subúrbio caiu e morreu, mas tinham as pequenas e graciosas florzinhas amarelas ou alaranjadas.

Ficou olhando as notícias no celular, o ônibus tardaria a sair, e nesse dia nem ao menos um livro tinha. Não conseguia dormir no ônibus, lhe incomoda dormir em coletivos, dá-lhe a impressão que vai se perder e que ela será esquecida, pois estava escondida, lá atrás. Entrou um rapaz no ônibus, ele sentou-se no banco à frente dela. Ela nem viu nada, estava por hora, delirante, pensando no projeto para a empresa. Ergueu os olhos, e se deparou com uma nuca, os fios castanhos claros do cabelo, que se encerravam na nuca, um pescoço branco, barba por fazer. Ela viu apenas uma nuca, uma linha tênue de pescoço, e um pedaço de uma barba acastanhada, e lembrou-se daquele que ela deixou duas marcas roxas num acesso de excitação e devoção. Não havia nada que a fizesse deixar seu dia branco de lembranças doces e selvagens. Os olhos daquele rapaz nem eram azuis, mas aquele pescoço foi o estopim para ela se perder na beleza dos olhos nus e expressivos daquele que lhe tirou o sono.

3 – Plástico

Letícia tinha regador de plástico, mas ela não tinha flores de verdade para regar, pois todas as flores que ela tinha sua vontade de cuidar delas era tão falsa quanto a sua vontade de viver.

Julio tinha uma boneca inflável de plástico, que segundo ele, gemia, adorava fazer sexo oral e transar com ele. Mas ele não tinha uma mulher de verdade para transar.

Cláudia tem uma árvore de natal, enfeitada e colorida. Tem presentes de plástico para dar à família. Todo natal tem risos, mas por dentro, ela é sempre de um riso de poliestireno e emoções plastificadas de PVC.

Marlene tem um homem que lhe diz todos os dias que a ama. Mas quem a satisfaz é seu brinquedinho de plástico.

Marcos queria ser amado, mas queria transar com uma mulher que não tivesse vínculo afetivo nenhum com ele. Poderia visitá-la e transar quando quiser, sem cobranças, uma mulher sem dor de cabeça e dias ruins. Pagou por Luciana, com seu dinheiro de plástico, no crédito e fatura só para daqui 40 dias.

4 – Esquina

Nas ruas amarelas do bairro de subúrbio, uma prostituta espera pelos clientes em seus carros esporte, suas desculpas de que trabalharam até tarde, seus desabafos sobre esposa frígida que finge orgasmo e acha que os engana. Ela sente frio em sua minúscula roupa, mas um conhaque com limão no bar da esquina a faz ignorar o frio insano da madrugada. Na última hora esteve com um cliente, ele queria apenas uma massagem, e ele gostava apenas de olhar. Ele pedia a ela que transasse com si mesmo, ele sempre pedia isso para a esposa, mas ela tinha vergonha. Jogou cem reais na cama e saiu de lá feliz. Ela não teve trabalho nenhum, bastava apenas pensar no seu velho homem, que um dia poderia voltar naquela esquina, em qualquer hora, talvez na próxima primavera.