Confessionário

O prazer é um pecado, e às vezes o pecado é um prazer. 
(Lord Byron)

As luzes lá fora já se apagaram. Os quatro comprimidos sublinguais de Rivotril duas miligramas estão se desmanchando na boca. O conhaque Presidente está pela metade, sorrindo pra ela, o gato oportunista passeando entre as pernas, entrelaçando-se, olhando pra cima e emitindo o som estranho que vem dos gatos: ronronar… Ronronar. Ela sempre gostou desta palavra, soa estranhamente erótico. Doente… Pensou ela… O gato, de alcunha Byron, queria carinho? Não, ele quer comida, está sempre faminto, com olhares piedosos, tal como o gato do desenho do ogro verde e o burro falante. O prato de Byron, o Gato está vazio. Talvez tenha um pouco de leite não coalhado na geladeira e um resto de comida de gato enlatada. Byron a encara, na penumbra da madrugada aqueles olhos amarelos lhe dão arrepios e ele a segue sentindo-se satisfeito quando ela coloca a tigela de comida ao chão.

Gatos desgraçados, tão classudos, comendo sentados, parando para respirar, olhando ao redor. Aqueles olhos amarelos de reprovação, enquanto ela toma goles longos de conhaque e acende a porcaria dos cigarros mentolados que ela esconde na gaveta. Os comprimidos de Rivotril, numa pasta nojenta, misturando com o conhaque made in Paraguai na boca. Aquela sensação relaxante, quente, densa e consoladora, com um peso de um homem entre as pernas, seu velho homem.

Os olhos do gato dizem: tal como o peso daquele seu velho homem ao qual você nunca teve.

Dá uma alta risada de escárnio, e vai se derretendo no sofá, com o olhar perdido no teto mofado com pintura descascada. Talvez toda a concepção que ela tenha a respeito de sexo, seja como aquelas paredes, aquela pintura… Incompleta, inacabada, cheia de manchas. Talvez ela se junte ao trovador bêbado que passa todas as noites declamando versos desconexos embaixo de sua janela, mas hoje, justamente hoje que ela precisava se deleitar do escárnio dos desgraçados, eles não cantam suas emoções. Fica somente o eco das vozes na escuridão, repetindo como trechos de canções em disco riscado…

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

And no one makes me close my eyes

É o que diz no disco riscado do Pink Floyd. Enquanto “Echoes” toca e ela delira no sofá, os olhos do gato, reprovadores, encarando-a como os olhos do padre durante a confissão. Lembrou-se que só se confessou uma vez na vida, na primeira comunhão. Entrou em uma sala no pátio da Igreja Nossa Senhora Aparecida, da cidadezinha pacata onde todos puxam o “r”. O padre estava sentado numa grande cadeira de madeira maciça e couro. Conte-me seus pecados minha filha, do que você se arrepende? Mas eram pecados de criança, tal como roubar doces, gastar dinheiro do lanche com fliperama,  subir no telhado escondido, simular sexo com a Barbie e o Ken, e fazer desenhos sem educação sobre a professora chata. Vou-me confessar Byron… Só você me entende, eu sei e você agora está com aquele olhar de que quer me ouvir…

Byron, o gato, se aproximou, lambeu-lhe a mão, não gostou muito, tinha gosto de conhaque, nicotina e sangue. Ela cortou a mão na lata de comida pra gato e não percebeu. O chão da cozinha estava manchado, contando histórias no chão. Mas o gato ficou lá, sentado, olhando pra ela, seminua e bêbada no sofá.

Byron eu pequei… Eu peco todos os dias, todas as noites…

O gato arrepia os pelos, lambe as patinhas e volta em sua posição de olhos atentos.

Eu queria beijar-lhe a boca inteira, afundar minhas mãos nos negros cabelos,

 Daquele seu velho homem que você nunca teve, disse o gato, com os olhos…

 Eu poderia lamber-lhe a cara, eu poderia beijar todos os pelos do rosto. Aquela barba negra por fazer. Eu poderia Byron… Eu poderia pensar em um milhão de coisas sujas e vulgares, eu poderia dançar nua pela sala, eu poderia fazer uma rima pobre e podre, mas eu não sou poeta. Eu poderia percorrer-lhe o corpo inteiro, como um inseto ou morder-lhe como um animal sádico, brincando com a presa. Aquele velho homem… Velho… Antigo, empoeirado, um quadro inacabado perdido em um souvenir.

Tomou mais um gole de conhaque; desejar sem poder é pecado? Até onde minhas entranhas expostas são um grito desconexo de utopia? O que é utopia? O que eu tenho medo? Qual o índice da minha maldade? Da nossa maldade, sem exceções? É matar alguém com 200 facadas, é torturar uma criança até a morte por inanição? É ver um cadáver na rua esperando o rabecão e tomar uma cerveja na calçada da esquina? Eu posso sufocar meu tesão com um travesseiro e pedir desculpas depois? Eu posso lhe arranhar as costas, posso traçar mapas de desejo no meio do suor, pelos, veias e tendões? Qual o prazer em sentir dor? De ver meu corpo rasgado e com marcas profundas de dedos, pequenas irritações causadas nas pele por causa do passeio de um rosto barbado? A preguiça masculina de 3, 4 dias de pelos na cara. E o meu corpo no espelho, dilacerado, desalmado e talvez amado? Qual foi o meu pecado? Pecado Byron… PE-CA-DO…

 Byron subiu no sofá, sentou no ventre nu e suado daquela que balbuciava eloquências e metáforas, e com olhos piedosos passou a língua áspera no ventre dela, como se quisesse caçar as mariposas no útero. E os pelos do gato como uma carícia, as patinhas pressionando como dedos. Ele se deitou, encarou-a com os olhos de incógnita e o piscar de felino. Trouxe-lhe a exata sensação de que o pecado era para ser vivido, mesmo na utopia. Dormiu, sonhou com o seu velho homem, que tem olhos e jeitos de felino. Dorme e sonha com dias poéticos, desgastados, descascados, com um pouco do mofo das tristezas, cores sinestésicas e os ventos de alegrias cheias de tragédia. Versos, neologismos, dor, beijos e gemidos.

 O gato olhou para a janela, poderia dar um passeio lá fora, no mundo paralelo dos gatos, perturbando o sono alheio com as transas felinas que atiçam o sono dos incautos, mas ficou com sua dona, e pensou nos albatrozes, “imóveis no ar”, do disco riscado do Pink Floyd. A noite foi como eco, cheio de vozes e desejos ensandecidos. A noite apenas começou, com seus encantos, prazeres, pecados e desejos, deitando em metáforas, aforismos, metonímias e falácias. O bêbado trovador passou embaixo da janela.  Todos os olhos felinos piscaram e sorriram, enquanto lambiam-se uns aos outros, as patas, a cara, o corpo, o sexo…

Escrito ouvindo isso aqui várias vezes:

Onde morrem os candelabros

“Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas, acaso perdidos, mas nunca iguais…”

Foi em uma noite cheia de estrelas, aquelas que Mario Quintana diz que nasceram porque o céu tinha medo da própria escuridão… Lembro-me delas, as estrelas, por minutos escondidas por algumas nuvens brancas metálicas, do quanto a lua presenteava um tom prateado para as nuvens que passeavam timidamente no céu. E a cidade com suas luzes amareladas reféns do medo dos homens. Lá longe,  no horizonte, os sonhos dos homens mandavam seus recados aos cosmos, e nos éramos meros espectadores, talvez sem a mínima noção do resplendor que víamos à nossa frente. Havia apenas o cheiro de uma grama úmida pela orvalhada da madrugada, e um hálito de uvas merlot em nossos lábios. Penso naquelas estrelas, ali, em cima de nossos corpos, como milhares de candelabros acesos, e quando fechamos os olhos, por alguns instantes eles se apagam, mas isso não é etérico. O que você pensa sobre o éter? Um dia, eu li um livro em que os personagens captavam o éter em frascos de vidro. Ao final, a protagonista captou o éter e a alma do homem que amava. E eu penso que isso é uma analogia sincera sobre lembranças. Eu captei, em frames, de éter? Talvez… Guardei a mais terna lembrança de um tempo em que os momentos podem ser eternos, onde profusão de cheiros e sensações são presentes no primeiro estopim de nossos dias, desde o mais transloucado, aos dias de chuva, tão cinzentos e acolhedores à reflexões sobre a vida, o universo, e o “tudo mais”.

Eu poderia traçar um mapa de sentimentos, cheio de legendas. Poderia, dizer-lhe ao pé do ouvido as quantas vezes que eu acordei no meio da madrugada, sem sono, e coloquei-me ao pé da minha porta, olhando para as estrelas e traçando um mapa mental de teu cheiro, transmutado em cheiros perdidos ali naquele local cheio de natureza. E as árvores da rua onde eu moro, balançam, em meio ao vento frio, igual àquelas árvores enormes e perfumadas que nos rodeava naquela noite. E eu com meu velho casaco preto, observando a rua, vazia, apenas com ecos de corujas, grilos e alguns gatos de namorico no telhado. Cachorros sentem o cheiro dos gatos em cópula. Ficam enlouquecidos, cadelas talvez entrem automaticamente no cio. De vez em quando olhos amarelos gatunos me fitam ao longe, na madrugada, um olhar profundo e em comunhão, parecia que aqueles olhos de gato sabiam que o que eu sentia chamava-se saudade. Talvez ele me olhasse com reprovação, estou à mercê de interpretações errôneas, mas sabe o que eu penso disso? Nada. Não tenho espaço em meus pensamentos, tenho meus demônios pessoais, dançando um tango noite afora. Não tem nada desaforado nisso, vivo em constante paz recheada de gritos silenciosos com meus pequenos bailarinos, e quando a noite chega eles transformam meus pensamentos saudosos em um pornô soft. Tudo culpa da saudade, culpa… Que culpa ela tem? Blasfêmia… Desculpa saudade, você é tão difamada, carrega uma cascata de troça e falsas convicções nos ombros, se é que tem ombros, mas vou usar o poeta da pedra no meio do caminho, sobre a precipitação da dor, do sono na praia, ao vento frio, nu: A saudade carrega todas as dores no mundo… Nos ombros.

O que justifica nossos momentos perante os candelabros do céu? Eu queria mostrar-lhe o céu mais lindo, e sim, eu disse algum desaforo aqui? O céu é o mesmo em todos os lugares… Digo-lhe como se eu tivesse um céu próprio, todo iluminado, egoísta, só meu. Dizem por aí que o Amor é egoísta, pois se ele não fosse, viveríamos numa boa em uma poligamia. Estrelas são poligâmicas. Fazem amor com todos, sem distinções, não são egoístas, se deixam amar por todos. E o que nós fizemos? Deixamos-nos ser amados por elas? Por nós mesmos? Um confronto de amor próprio gladiador com suor e pele antes tão arrepiada. Eu senti frio, depois que amanheceu, e as estrelas foram embora. Senti o frio de uma despedida, mesmo antes ter sido tão bem aquecida. Agora está amanhecendo, vejo um tom azul-acinzentado querendo entrar pela janela. O céu não está limpo. O nublado tinge o céu de cinza, aos poucos, cinza no azul… Eu penso na cor que resulta essa mistura.  E eu aqui protegida, embaixo de cobertas, recém-acordada de uma dança diabólica, cheias de pedras enormes no horizonte, o brilho de uma metrópole no horizonte e dois corpos entrelaçados. Lembrei-me de teus olhos e consequentemente de um poema de Pablo Neruda. Onde morrem os candelabros, é o alvorecer do dia, antes disso, uma noite incomum, um par de olhos de dilúvio azul acinzentados, sedutores talvez sem querer, tão límpidos quando os candelabros morrem ao amanhecer. Foi numa penumbra tingida de sensatez que eu senti a aspereza de seu rosto com um cheiro levemente apagado de água de colônia ou sei lá o que tu usas para perfumar tua pele, outrora tão fria e arrepiada. E ficaste preocupado em eu sentir frio, e ao final, não era meu corpo que se encolhia e tremia. Eu achei engraçado, uma ironia risonha, saudosa ao te aquecer, como eu poderia deixar-lhe alheio ao frio, se meu corpo explodia de calor? Eu tremi de frio, ao amanhecer. Os candelabros se apagaram. Amanheceu e a saudade veio no galope… Ficou só você, desenhado em meus sonhos de ir vir, nas madrugadas de éter, amanheceres estoicos e entardecer intransigente cujas cores são nuances indecisas. Ficou só você…

Se eu tivesse um conto que pudesse contar a você
Eu contaria um conto que pudesse fazer você sorrir
Se eu tivesse um desejo que pudesse desejar a você
Eu desejaria que o sol brilhasse o tempo todo


——————————————–Algumas considerações———————————————-

PS: O conceito de éter que utilizo aqui, vem da mitologia grega.  “É o ar elevado, puro e brilhante, respirado pelos deuses, contrapondo-se ao ar obscuro, ἀήρ (aếr), que os mortais respiravam, sendo deus desconhecido da matéria, em consequência as moléculas de ar que formam o ar e seus derivados.”


Sobre Pablo Neruda, lembrei de um poema muito bonito dele:

“Quero apenas cinco coisas..
Primeiro é o amor sem fim
A segunda é ver o outono
A terceira é o grave inverno
Em quarto lugar o verão
A quinta coisa são teus olhos
Não quero dormir sem teus olhos.
Não quero ser… sem que me olhes.
Abro mão da primavera para que continues me olhando.”

O bom menino.

Você mostrou-me teus olhos, até então cobertos por um véu. As ruas do subúrbio escondem a tristeza fria e sedutora dos homens. E quando os olhares se encontram, é como se estivéssemos gritando, com medo, com frio. Os muros estremecem, são as marretadas do nosso medo, batendo de frente com nossas emoções. Nobre coração, correndo, batendo voluptuoso e insano em cima das bicicletas do subúrbios. Jovens, homens e mulheres compartilhando a brisa batendo no rosto. Nunca tivemos tanta certeza, que nossos sentimentos traiçoeiros estão nos sorrindo, perdidos nos becos, e então nós rimos, porque afinal, nosso sarcasmo e ironia nos corrompe docemente nas memórias noturnas, quando adultos. E eu me lembro… Daquelas tardes ensolaradas no subúrbio. Nós nunca gritamos tão alto…

Éramos jovens, você se lembra? Corríamos pelas ruas do subúrbio buscando sonhos desacordados, com canções em tons desafinados, cores ajustadas, como a mistura de Renoir num quadro pintado em Paris. Posso estar escrevendo coisas das linhas pra fora. Entenda querido, já são além da uma da manhã, e eu ando tendo madrugadas insones. Há um silêncio lá fora que me convida para contemplar os gatos por cima do muro. Eles andam numa graça inocente por entre as grades, e quando me veem com os cabelos ao vento, no meio dessa madrugada de outono indeciso, eles me encaram com os olhos brilhantes. Há um gato, negro como a noite, eu só vejo os olhos amarelos, me encarando como se soubesse dos meus sonhos de ir e vir, das minhas noites tecendo a saudade em meu tricô imaginário de vinho Merlot. Hoje bebo no gargalo, desde que te conheci ignorei a etiqueta de tomar vinho como gente educada. Eu não sou mais educada, sou tresloucada.

Se eu fumasse, acenderia um cigarro, talvez um mentolado, ou aqueles doces, de cereja. Ficaria soltando anéis de fumaça no ar, quem sabe eu fizesse um grande o bastante? Tem uma coruja aqui perto do terreno baldio, ela mora num buraco. Em meus sonhos, ela poderia passar voando nos meus anéis de fumaça mentolados. Ela passaria por dentro deles e daria um rasante no chão. Talvez, pegasse minhas emoções que jazem no chão, e levaria para bem longe, talvez para um inferno Dantesco, ou para o paraíso dos sonhos de Beatriz. Lá existe um pouco de Amor. Eu escuto Chico Buarque e sinto Amor, e eu queria que quando eu passasse você me estendesse a mão, ou o chapéu, mas tu não usas chapéu. Um dia queria que me mostrasse o sol, aquele que lhe faz sorrir, assim, mais de duas vezes ao dia. Percebe? Eu te mostraria toda a beleza de um dia chuvoso, talvez encontrássemos alguma coruja tomando banho, enquanto as pessoas passam aturdidas com seus guarda-chuvas, com raiva, passos largos. Eu contaria os segundos, contigo, e depois me apoiaria em teu ombro quando o trovão bradasse a fúria dos Deuses lá naquele horizonte de campo aberto.

Quando eu era criança, eu gostava de andar de bicicleta embaixo da chuva. Eu passava na poça de lama, e conforme ia pedalando, a roda de trás respingava lama nas costas da minha camiseta velha de guerra. Meu pai sempre falou que eu poderia tomar um raio na cabeça, mas a única coisa que eu tomei, foram gotas de chuva que me escorriam nos lábios. Eu era uma criança levada. E você ficou com minhas fotografias… Tem uma delas que eu estou feliz e banguela num balanço. Tem outras que estou acampando em Brotas, e eu praticava trilha na serra com minha mãe e aquele que um dia eu chamei de pai. É uma longa história, queria te contar um dia, sobre minhas aventuras, dos dias que eu subia no telhado escondida. A vida era incrível vista de cima, e pela primeira vez na vida, percebi que as pessoas não dão valor para quase nada, não tinham um olhar apurado, nunca ninguém me viu lá em cima, ninguém, só pardais e pombas que balançavam nos fios do poste… Ahhh, e o cachorro da vizinha, que eu tinha que passar de fininho, porque ele ficava nervosinho e se colocava a latir ininterruptamente. Tinha medo de ele chamar a atenção da minha vizinha balofa que não dormia porque o marido roncava. Ela poderia acabar com a minha brincadeira infantil de ser uma stalker das alturas. Um dia, atirei uma pedra no cachorro dela. Você vai me dizer:

“Malvada”…

Mas um dia, você me contou que jogou o gato da janela. Tu eras uma criança, tão malévola quanto eu, ou não… Apenas queria ver se o gato cairia de pé… Lembra? Quando você me contou isso, eu lhe disse pra você amarrar um pão com manteiga nas costas do gato, assim ele cairia de costas… Mas você cresceu meu bom menino… E nas ruas desse subúrbio, enquanto você dorme, com seus sonhos que talvez nem se lembre quando acordar, eu lembro da sua travessura de menino, como cenas de um frame despedaçado. Eu posso ver duas crianças correndo pelo subúrbio… Mas isso é apenas um devaneio, perdido entre meus anéis imaginários de fumaça. Na primeira tragada eu vou achar que vou morrer. Tentei tragar uma vez, quase morri, mas você tentou me ensinar. Eu acho que ainda não aprendi, ou tenha me esquecido. Fico apenas na vontade de menta, cereja ou pinho…

Eu poderia te reconstruir, como um vitral, daquelas igrejas europeias, mas não seriam imagens santificadas, já lhe disse um dia, eu fujo de tudo que é convencional, e faço isso sem querer, sou tresloucada… Quando criança chutava os formigueiros e passava o tempo observando o caos. Eu me perguntava se as formigas gritavam, como as pessoas na televisão quando aconteciam aqueles terremotos lá no Japão. Hoje só escuto meu próprio grito. O resto eu ignoro. Além de louca, sou egoísta. Mas eu te amo, mesmo tendo atirado o gato da janela. Você chega até mim nessa noite, com seus sonhos e travessuras de bom menino.

Olimpo.

Estava sonhando. Padeceu em castelos de cristal, construídos por Deuses pagãos do Olimpo. Acendeu velas ao entardecer, ajoelhou-se perante seus medos, lapidados em pérolas de ostras do inferno de Hades. Apaixonou-se pelo cão de duas cabeças, tinha o olhar desconcertante de um brilho que nem todas as plêiades juntas são capazes de seduzir. Ela era como, no céu de Aqueronte, a mulher dos olhos de caleidoscópio.

Acordou encharcada de suor. Abriu as janelas e deixou-se levar pela friagem da madrugada. Seu velho e bom homem dormia ao seu lado como um anjo intocável. Deixou-o lá, com seus sonhos de menino. Pegou as chaves de casa, saiu para caminhar nas calçadas de pedras soltas do bairro do subúrbio. Em volta dos postes, as sombras voavam. Pontos negros de mariposas, rodopiando embriagadas em volta das luzes amareladas que tanto seduziram. Era o céu de Vênus, criado na natureza da imaginação dos que criaram a mitologia divina, de Deuses, raios e trovões. Similitudes, cantando, dançando. A pele dourava-se de Vênus, o coração batia cores, tingidos de paixão nunca atingida, incólume contra o tempo, que não tem hora para chegar. Não existem idas e nem vindas, apenas a imortalidade, bruxas voando em feitiços de bom menino. Atirou-se, de corpo e alma nas estrelas que iluminavam as pedras brancas no meio do caminho.

“I shall be released” …

 

Perto de mim nesta solitária multidão
Está um homem que jura que não é ele a se culpar
O dia todo eu o ouço gritar tão alto
Clamando que não é ele a se culpar
Eu vejo minha luz vir brilhando
Do oeste até o leste
Mais dia, menos dia
Eu serei libertada

 

Eu vi o amanhecer de raios tímidos, banhei num sorriso desconcertante, padeci de amor nas caminhadas noturnas. Quando eu via o clarão de luzes amarelas, tinha toda uma epifania talvez sem sentido algum. Ando respirando quem sabe um ar que não me pertence, posso ter chegado sem permissão, mas na minha queda eu me levanto e danço passos de bailarina de sarjeta. Cultivo o caos na tranquilidade de minhas entranhas expostas. Tomo goles de vinho enquanto leio um livro, eu ando por aí mentalizando crônicas, poemas e sonhos. Penso em ter uma casa, no alto da serra, com vista para coníferas, alguns manacás da serra imponentes e meus cães correndo pelo quintal. Também gosto de ipês, mas enfim, seria mais fácil dizer que amo flores, desde aquelas que padecem secas nas minhas garrafas de vinho vazias na estante, até o vaso de flores imaginário que eu nunca ganhei. Contemplo os vasos de minha mãe, e aqueles que tem no quintal da pequena casinha que eu alugo. Amo os cães que eu vejo pela rua. Sempre tem um que me lambe as mãos, me faz festa, me olha nos olhos e chora quando eu vou embora. Tem aqueles que sabem quando estou triste…

Vivo minha vida de forma simples, sem muitos luxos. Os únicos luxos que eu carrego são o ato de pagar caro em vinhos e gastar muito em livrarias. Fora isso, vivo sem amarras, gosto de ser livre, se pudesse, eu pegaria um avião qualquer e fugiria temporariamente para outro país. Sou apaixonada, eternamente apaixonada, pela vida, e tudo que eu carrego nela. Eu amo um homem que eu não sei se me ama, e eu acredito que nunca saberei, mas eu não desisto, sigo minha vida, vivendo de Amor, e não me importo que seja mais um daqueles mal sucedidos. A vida é muito curta, eu sei, mas sou uma eterna errante, teimosa. Podem me chamar de trouxa, do caralho a quatro, eu não ligo, posso ficar 365 dias ou mais, perdida em alto mar. Volto para minha cama, deito em meu travesseiro em forma de bicho e tenho meus sonhos de esperança. Acordo, e lá estou eu, no meio do oceano novamente, enfrentando tempestades, conversando com as gaivotas e dormindo ao relento.

Por vezes, eu acordo no meio da madrugada. Gosto de sair lá fora, tomar uma friagem. Gosto de tomar chá sentada na soleira da minha porta. Vejo o vento que me bagunça os cabelos, chacoalhar a coruja talhada em madeira, que tem pendurada no quintal. Ontem, de madrugada, o vento derrubou um vaso. Ele espatifou-se inteiro e lindas pedras brancas se espalharam no meio da terra. No meio da escuridão, as pedras brilharam, e no meio da madrugada, eu sujei minhas mãos de terra, replantei o vaso, varri o chão, peguei as pedras jogadas no quintal. Me senti viva, com minhas mãos de dedos magros e longos, que minha mãe me diz que parecem dedos de pianista. Eu nunca toquei nenhum instrumento, mas gosto de pensar nas costas nuas de meu amado, como um grande piano. Eis a única coisa que eu toquei… A pele é uma obra de arte, deslizar nela é como um arco num cello, no violino, mãos deslizando em teclas de piano. Barulhos de amor é uma orquestra sinfônica, uma sonata de Beethoven

Estou viajando na maionese, faço muito disso, mas eu não me importo se faz sentido ou não. Vivemos em um mundo de opiniões e visões diferentes, e é isso que o torna tão belo. Essas nuances gritantes, uma sinestesia desvairada. Eu vejo cores em cheiros, notas musicais em palavras. Talvez eu seja louca, mas essa loucura é o que me move, queria eu, sair com camisa de força por aí, descabelada, com um cigarro de canto de lábios, e uma flor no canto da orelha. Sairia cantando Beatles em alto e bom som, declamaria a “Balada do Louco”, misturada com “Lucy in the sky with diamonds“. Cantaria uma canção para meu Amor, mas eu não sei cantar, eu tento, mas eu não sei. Cantei em coral por dois anos, em vários idiomas, mas eu juro, eu não sei cantar e acho minha voz um lixo. Mas creio que sei escrever, e é isso que eu faço, e pode ser que meu Amor não me leia mais, mas, sinceramente, foda-se. Eu tentei, posso ser destruída, mas nunca serei derrotada. Estou na deriva, balançando em alto mar. Levo meu Amor no peito, falo dele para as gaivotas, e para peixes voadores. Não posso prever minha sorte, nem a falta dela. Eu corto minhas mãos na linha de pesca, eu falo sozinha, tenho poucos amigos, mas ótimos e eternos amigos. Eu me deito, sozinha, minha cama não é feita de jornais, mas eu nunca desisti, ando de pés descalços num caminho de espinhos, cheio de rosas, sangue e emoção, mas pra suportar minha dor, penso em meu caminho como cheio de areia quase branca e fofa, e vejo lindos leões dourados andando sobre ela. Eles olham para o horizonte, imponentes. De vez em quando soltam um rugido, e da minha cabaninha eu olho pela janela e solto um sorriso tímido.

Da minha janela, estou sempre escrevendo…

Epifania de uma personagem sem nome.

“Bem, tem sido um longo tempo
Desde que vi seu sorriso

Eu apostei meu medo
Até as luzes da manhã brilharem
Manhã de domingo
Somente névoa sob os limbos
Eu chamei novamente
O que você sabe?
E eu preenchi nossos dias
Com cartas e gin…”

 

Na noite de um sábado, enquanto deitada na cama confortavelmente vestindo calcinha e sutiã, nossa personagem sem nome estava esparramada na cama de sua humilde residência de mulher independente que mora sozinha. Muitos livros na estante, lápis coloridos comprados em um impulso de querer desenhar e pintar. Fã de vinhos e nostalgia, ela guarda uma garrafa de vinho chileno com duas rosas, enfeitando a estante. Estava lendo um livro e pensando em coisas da vida, no universo e tudo mais. Num momento, dá um pulo na cama, um insight, uma lembrança que a sempre consta em mente, mas ali, naquela noite de 27 de abril de 2013, ela se recordou, por vezes com um sorriso iluminado e com lágrimas de saudade, e ela sussurra, “Como sou brega”, ela que tanto pregou contra as pieguices do ser apaixonado, caiu numa “armadilha” que deste então povoa seus sonhos e caminhadas pelo bairro onde flores nascem em pleno asfalto.

Era sábado, estava um dia quente, mas não muito exagerado, como os dias fatídicos de verão. A “personagem sem nome” estava nervosa, após tentar quase sem sucesso arrumar o lugar que paga aluguel e chama de seu.

Olhava para o guarda-roupa, sem saber direito o que vestir. Fazia tempo que não tinha um encontro, ela estava desacostumada e achava que estava sonhando, chegou por vezes a se perguntar se aquilo realmente estava acontecendo. Pra quem veio de um relacionamento de três anos e meio com alguém que foi seu segundo namoro, e depois de um período brincando de eremita, enchendo em cara com colegas de trabalho e lendo o dia inteiro ou passeando em parques apenas para comer churros e pensar na vida, enquanto patos atravessam para cair na lagoa. Tinha na cabeça que seguiria a vida como uma mulher assexuada cheia de cachorros cagando alucinadamente no quintal. Dava risada sozinha, enquanto tentava espairar a cabeça folheando livros lidos e relidos.

Olhou para o cabide e viu um vestido de malha roxo, com detalhes em verde musgo na cintura e na amarração que contornava o pescoço. Mas ele era sem manga, e ela estava com as marcas na pele de uma doença filha da puta que acabava com sua vaidade. Era ali mais um motivo para sua insegurança, estampada com um suor frio e respiração ofegante. Queria estar bonita, tirou o vestido do cabide, e apesar de estar passado, ligou o ferro mesmo assim. Escolheu um casaquinho preto de crochê, e um sapato verde, no mesmo tom dos detalhes do vestido. Olhou no relógio, tinha marcado com ele às sete horas, em frente ao terminal de ônibus do bairro em que morava. Eram cinco e meia.  Acendeu um incenso e algumas velas no banheiro. Escolheu o que tinha de melhor, aprendam, mulher se prepara para vocês, mesmo que ela ache ou tenha a insegurança de que pode estragar tudo. Trinta minutos embaixo do chuveiro, talvez a água morna e o cheiro do óleo de pimenta rosa fizesse sua ansiedade diminuir. Depois de todo ritual, finalmente vestida, não do jeito que queria. Se estivesse sem aquelas manchas terríveis teria com um vestido na altura do joelho e com os braços de fora. Olhou no espelho, e perguntava-se se estava bonita. “Foda-se, pensou ela”… Passou três borrifos do seu mais caro e melhor perfume, pegou o livro que comprou no dia anterior num saldão da FNAC no meio de títulos de autoajuda pedantes e livros para mulherzinhas mal resolvidas e foi para o ponto de ônibus. Visivelmente nervosa, colocou o IPOD no modo shuffle, é um ritual que sempre dava certo. Chegou ao ponto de ônibus, não se atrasou apesar dela ser meio esbaforida e odiar horários, chegou meia hora mais cedo, vai que ele tivesse a tal da pontualidade britânica, olhasse no relógio e dissesse que ela estava 1 minuto e 45 segundos atrasada?

Na frente do terminal, tem um hortifruti cujo dono é um simpático senhorzinho japonês, e ao lado, também de frente para o terminal, há uma banca de pastel. Não pensou duas vezes… Suco de laranja da pastelaria a faria acalmar os nervos. Tomou dois copos, enquanto estava lendo. Resolveu olhar o celular e viu que tinha ligações perdidas. Eram dele, já pensou em um milhão de desgraças, mulher é um bicho difícil, entendam… Mas ficou otimista. Saiu da mesa da barraca de pastel e sentou-se em frente do hortifruti. Encontrou a paz necessária no livro que se encantou, mas deu misto de inquietude por ser um livro tão perturbador. O livro falava sobre o delírio das moscas, dilatação de porcos, sobre um homem despedaçado frente ao espelho do banheiro. Por alguns minutos, desligou-se completamente das coisas que a cercavam, até o momento em que sentiu um arrepio e passos leves e logo em seguida o seu nome bradado. Assustou-se um pouco, levantou os olhos do livro e então aquela calma perturbadora saiu de foco e voltou ao nervosismo, mas era um nervosismo causado pelo desconforto perante a beleza que os grandes olhos amendoados e sempre perdidos dela estavam encarando timidamente. De estatura mediana, um pouco mais alto que ela, olhos azuis, cabelos castanhos claros e barba por fazer, de uns dois dias e um sorriso que desde então apostou todos os seus medos.

Deu-lhe um tímido e quase atrapalhado beijo no rosto não barbeado ao qual ela agradeceu ele não ter tido a estupidez de ter tirado. Ela sempre pensa porque todo homem acha que toda mulher gosta de barba feita. E foi ali, o primeiro momento que ela se contorceu toda, numa felicidade nervosa. Estava com o livro nas mãos, aquilo foi bom, pois disfarçava as mãos trêmulas. O suco de laranja não tirou-lhe o nervosismo, o encanto de dois olhos azuis inquietantes trouxe-o de volta.

“O que está lendo?”

Depois de ter ficado tanto tempo escondida, aquela pergunta a fez pensar que ali ao seu lado, caminhando devagar não estava um homem que enxergava apenas oito bits de cores, talvez o universo cheio de cores e nuances dela seja pela primeira vez compreendidos, não em sua totalidade, ela não acredita nisso, uma das graças da vida, é a inquietude perante a não compreensão. E ela já percebeu pelo seu rosto de britânico, mas, com descendência italiana de que ali ao seu lado, estava um fractal cheio de equações complexas, e achou isso encantador. Ele não tinha denominador comum. Era único, e ela começou a sair da toca, já estava com o pé direito pra fora da sua caverna de proteção.

Estava ventando e o cabelo da “personagem sem nome” estava um ninho de mafagafos, e ele lá, tão bonito com seus olhos claros e cabelos cor de mel. Ela respirava fundo, baixinho, pois não queria que ele percebesse o quanto ela estava nervosa. Ela era uma atriz de quinta categoria, não sabia representar, ela era nua e crua, dentro da sua natureza nenhum pouco convencional. Até uma criança pura e sem malícia perceberia que ela estava tão nervosa quanto um cachorro que apronta e disfarça, mas lá dentro existia uma ponta de arrepio e certo tremor. Se ele perguntasse por que ela estava tremendo, ela lhe diria que era porque tinha hipoglicemia, mas não seria verdade. Ela não sabia mentir, tudo ali a denunciava.

Entrou no carro, ela disse a ele que o cabelo dela estava um fuá, e ele então passou a mão nos cabelos negros dela. Ali, naquele momento, veio-lhe o segundo arrepio, e não foi o vento, não foi frio, um pouco de nervoso e um pouco de tesão que depois ela reprimiu e desviou para qualquer outra coisa para não pensar em coisas, digamos, mundanas. Ela era muito sexual, não no sentido de ver malícia em tudo, de ver um perfume cilíndrico numa loja e pensar em sexo, tal como Freud explica sobre símbolos fálicos, coisas simples, ela não precisava ver um outdoor com um homem lindo de cueca para sentir desejo, coisas simples e banais a movem, e a mão dele no cabelo naquele momento inicial a fez querer agarrá-lo, mas ela era uma mulher contida. Despistou os pensamentos pecaminosos falando da escova progressiva da irmã e da mãe, e que foi a única da família a gostar de sua herança de cabelos ondulados, indecisos, levemente cacheados. O pensamento dele puxando-lhe os cabelos e beijando-lhe o pescoço foi ocupado pela lembrança de o quão bonito eram os cachos da irmã dela. Obviamente ela preferia o pensamento voluptuoso a pensar nos cachos da irmã, mas ela fez isso para não ficar arrepiada e com as bochechas vermelhas. Ainda bem que os olhos dela são castanhos bem escuros, a pupila dilatada seria muito difícil de ser percebida, a não ser que ele fosse o Chuck Norris ou tivesse o poder de ler mentes. Se ele visse auras, naquele instante ela estava num vermelho rubro de puro desejo. Reza a lenda que homens pensam na sogra para não gozarem rápido demais, ela em gatos mortos, erros de português e na família…

Durante o tempo que se passou, no caminho até a livraria, foram se conhecendo, ela perdera parte da vergonha, e não estava mais insegura, aos poucos perdeu a tensão, mas não o tesão. Na livraria ele lhe sugeriu um livro, dizia ele que ela era parecida com o personagem principal, um velho pescador que nunca perdia a fé, mesmo perante do fracasso de ter o marlim devorado por tubarões. Ela também sugeriu um livro a ele. Viu naquele homem um menino sonhador que guardava a beira de um abismo. Se algum menino se aproximasse, ele agarraria. Ficaria ali, o tempo todo, cuidando para que criancinhas indefesas nunca caíssem no abismo. Ele tem a alma de Holden Caulfield, se pudesse, ele se fingiria de surdo mudo, pois seus olhos são desacostumados, segundo ele o mundo é cheio de “pessoas cinzas e valores rasos” e o silêncio, tem o ajudado a tolerar:

“… Mas não me importava que tipo de emprego ia ser, desde que eu não conhecesse ninguém e ninguém me conhecesse… Ai bolei o que é que eu devia fazer: ia fingir ser surdo-mudo. Desse modo não precisava ter nenhuma conversa imbecil e inútil com ninguém… Com o dinheiro que fosse ganhando, construiria uma cabaninha pra mim em algum lugar e viveria lá o resto da vida. Ia fazer a cabana bem pertinho de uma floresta, mas não dentro da mata porque ia fazer questão de ter a casa ensolarada pra burro o tempo todo. Cozinharia minha própria comida e mais tarde, se quisesse casar ou coisa parecida, ia encontrar uma garota bonita, também surdo-muda, e nos casaríamos. Ela viria viver comigo na cabana… Se tivéssemos filhos, iam ficar escondidos em algum canto. Podíamos comprar uma porção de livros para eles e nós mesmos íamos ensiná-los a ler e escrever.”

 

Ele comprou o livro e ela reservou o que ele sugeriu, pois não tinha na loja e chegaria dentro de cinco dias. Foram para a cafeteria da livraria. Ele pediu um café simples, e ela exagerada, um café duplo com chantilly. Os olhos dele eram desconcertantes, a ponto dela baixar os olhos em direção à mesa, pois diante de tal beleza ela poderia talvez perder o juízo. Naquele ponto ela estava definitivamente fora da toca. Ele a tirava do sério. Respirava fundo, sentiu a cafeína estimulando as “endorfinas naturais” e ela precisava perder o foco da beleza dos olhos dele para que ela não se contorcesse por dentro. Os olhos dele falavam, e a prova disso era o biscoito que acompanhava o café que ele não comeu. Ela foi cara de pau o suficiente para pedir. Ela teve um insight de Clementine Kruczynski, de “Brilho Eterno de uma mente sem lembranças”, na cena em que Clementine e Joel Barish estão na praia e ela pega a coxinha de frango do prato dele. Joel pensa que ela chegou assim, sem pedir permissão. A “personagem sem nome” pelo menos pediu, poderia ser mais invasora no mundo encantador dele, cheio de perguntas, umas com respostas, outras perguntas sem respostas, que podem ser completas ou incompletas, e cheias de viagens na maionese. Talvez, tal como Holden Caulfield, ele pode pensar para onde vão os patos no inverno. E ela amava essa essência indagadora dele, essência que a assustava, pois estava ali, sentado ao seu lado, um homem que sempre achou que só existia no mundo dos livros. Estava ali um homem que assim como ela, tenta salvar as crianças de cair no abismo, um homem que falava com os olhos, que a fazia rir e tal como ela, assistia “A Praça é nossa” com o avô. Ela assistia com a avó. Ela poderia ouvir e compartilhar piada ruim de gosto duvidoso o dia inteiro, sentada com ele no gramado da praça da universidade. Eles poderiam rir, como duas crianças, sem medo de ser feliz. Quando ela conta piadas, todo mundo olhava pra ela com cara de merda, mas ele ria, e ela se encantava com as covas que se abriam no rosto de barba acastanhada por fazer.

Eles saíram da cafeteria e decidiram ir para um bar num bairro charmoso e boêmio. Ele pediu uma cerveja e porções de bolinhos. Ele perguntou se ele acendesse um cigarro a incomodaria. Cigarro era o de menos. Ela vinha de uma família e noventa por cento de seus amigos eram fumantes. Ele pediu um energético, dizia ele que precisava acompanhar o pique de mulher que sofria de insônia. Ela contou-lhe sobre a doença que tanto aniquilava sua autoestima, e que se sentia incomodada com as manchinhas marrons que estavam espalhadas pelo corpo. Ele disse que não havia que se preocupar, ele também sofria do mal da doença de pele, pois tinha a pele muito clara. Contou algumas coisas que aconteceram com ele, levando as mãos dela ao rosto dele, para sentir um pequeno cisto imperceptível. A partir do dia em que o conheceu, ela deixou de lado as camisas de manga comprida, e saiu de vestido na altura do joelho e braços de fora. Ele a fez sentir-se plena novamente, ela recuperou toda a beleza que achava que havia sido raptada por uma doença. Contou a ele que nunca havia ganhado flores, ele riu, disse que era inconcebível, uma mulher não ganhar flores. Continuaram a conversa e alguns minutos mais tarde uma florista estava caminhando por entre as mesas dispersas na calçada. Sempre havia a primeira vez pra tudo, é o que dizem por aí. Ele chamou a florista, e pediu para que nossa “personagem sem nome” escolhesse duas flores. Ela se emocionou, como toda mulher, e por mais que um ramalhete de rosas morresse, ela ainda conserva as duas rosas dentro da garrafa de vinho que compraram para tomar embaixo de uma noite enluarada, com estrelas por vezes encobertas por nuvens tímidas, em cima de uma enorme pedra, longe da cidade, que poderia ser vista com suas luzes amarelas, no horizonte. Antes de irem para aquele local deserto, tomado pelo cheiro de imensas árvores de eucaliptos, ele estava preocupado se ela passaria frio, pois era um lugar aberto e logo, o vento seria intenso. Ela disse que já estava protegida, depois de dois anos morando no sul do país. E partiram, e ali naquele local, a cena hilária da tentativa bem sucedida e até aquele momento desconhecida pra ela, de abrir a garrafa de vinho usando tênis. Hoje, as flores a encaram da estante, dentro da garrafa de vinho chileno cujo conteúdo foi consumido no meio de um vento que o fez tremer de frio. Ela, acostumada com os ventos minuanos do sul, sentia-se plena e contente, e ao vê-lo tremendo de frio, não poderia deixar desamparada uma pessoa que lhe deu flores.  Fez uma massagem terna nos braços dele, explicou um pouco sobre o que aprendeu sobre chakras e centros de energia. Ela, enquanto esquentava os braços dele, sentiu os tendões aparentes, as veias pulsantes, os pelos dos braços dele, eriçados. O frio também a invadiu, mas não era um frio de sensação térmica, era um calafrio causado por endorfinas… Entende?Endorfinas naturais…

E então, ali naquele momento, ele fazia um carinho leve, gostoso, e o perfume dele estava mais forte do que outrora. Ela lhe disse sobre á inquietude dela diante de cheiros. Enquanto ele estava explorando aquele lugar em que eles ficaram, ela estava andando naquela estrada, com os sapatos de salto 15, tropeçando nas pedras. Pegou uma folha de eucalipto e cheirou-a, enquanto o observava, oras pensando na beleza da vida, na beleza daquele lugar que até então ela desconhecia, aquele pedaço de paz, vento e árvores balançando. E ao mesmo tempo em que ela sentia o perfume daquela folha de eucalipto, ela lembrou-se de quando se aproximou para ver a programação dos bares no celular, e então ela sentiu o cheiro dele. Ela tinha problemas com cheiros. Na hora, ela pensou: “Fudeu”, e depois veio um “Se controle…”. Ele disse que leu “A casa dos budas ditosos”, ela se contorceu de novo, era seu livro erótico favorito. “Droga… se controle, se controle, foca…controle, relaxa, você é boba”, pensava ela, enquanto tentava sem sucesso dissipar-se da vontade de agarrá-lo. Ela ria, mas por dentro se contorcia, e as pernas tremiam, e ela fingia que estavam apenas conversando sobre o universo, a vida e tudo mais, e que nada daquilo a excitaria, e ela não transaria na primeira noite, coisa que nunca fez. Sempre teve uma opinião de que a mulher deve deixar o homem curioso, com o desejo que nos próximos dias que estão por vir, uma fresta por vez do vestido será desnuda, mas não tudo de uma vez. E naquela madrugada de domingo, dia 28 de janeiro, ela quebrou as barreiras das convicções dela, e ela nunca se arrependeu. Deixou-se levar pelo desejo, pela chama, pelo lugar, pelo ser cativante e inspirador que ele emanava com paz e tranquilidade. Ela já estava cativada, enquanto ele a acariciava, ela tentava manter a eloquência de raciocínio, até que ele percebeu que ela estava perdendo o rumo dos pensamentos, que às vezes ela parava e suspirava forte, foi aí que ela se entregou e aceitou a ideia de que ela não conseguiria resistir. Ela relutava, enquanto deitada ali, e no primeiro beijo que ele deu nos seios dela, especificamente no seio direito, o tesão que latejava no meio das coxas a denunciou, e então ela perdeu o rumo. O hálito de vinho merlot dos lábios dele e o frio do vinho que ele derramou nos seios dela, os beijos nas costas nuas, no caminho da espinha, fizeram-lhe sair completamente da toca, e o barulho do sexo ao ar livre era uma melodia que em nada perdia para uma orquestra sinfônica. Ela não sabe dizer se algum carro passou ali e algum stalker viu aquela cena toda. Ela estava excitada demais com a respiração ofegante e forte no pescoço dela, que nem ao menos o vento intenso daquele local, que fazia as árvores balançarem de um lado para o outro, mas ela sentia… E sentia intensamente. Era apenas ele e ela, ali naquele momento, em chamas, embaixo daquele luar enlouquecedor e a garrafa da bebida que tanto influenciou os poetas desse nosso mundinho ordinário, porém maravilhoso.

E a licença poética daquele lugar, escreveu na memória dela um conto erótico, e ela não poderia, sentada numa mesa, ao som apenas das hélices do ventilador, deixar passar as impressões daquele dia que ocorreu há exatamente três meses atrás. Ela queria que esse conto fosse um presente entre ela e ele. Um presente sincero, talvez assustador, uma epifania pintada em cores de Almodóvar, mal escrita, mas com a sinceridade de um Woody Allen…

"Se eu tivesse um conto que pudesse contar a você Eu contaria um conto que pudesse fazer você sorrir Se eu tivesse um desejo que pudesse desejar a você Eu desejaria que o sol brilhasse o tempo todo."
“Se eu tivesse um conto que pudesse contar a você
Eu contaria um conto que pudesse fazer você sorrir
Se eu tivesse um desejo que pudesse desejar a você
Eu desejaria que o sol brilhasse o tempo todo.”

Majestade.

MAJESTADE

Deite-se deleito
Sussurros suspeitos.
Gritos na madrugada
Teu corpo por cima
Uma tonelada de terra
Cadáver sou eu?
Cubra-me com teu ímpeto
Rasteja como um verme
Pele deslizante, pelos a fazer
Teu suor, minha umidade
Deita aqui em meu peito
Aureolas despudoradas
Face rosácea, amor rubro
Vinho seco derramado
Costas nuas etílicas
Teus lábios manchados
Doce trilha desalmada
Meu sexo descoberto
Madrugada fria
Imortal doce amante
Relembro-te em linhas
Imoralidade sem-vergonha
Poema escarrado
Sem remédio para dor
Canto a saudade em verso
Passo desritmado
Pisa em meus pés
Derreto teu desejo
Engulo tuas emoções
Olhos desacostumados
Candelabros não morrem
Nos sonhos dos homens
Uma única vela acesa
Chama de desejo
E nunca acaba…
Nunca acaba
Saudade Manchada
Duas rosas na garrafa
Hemingway na estante
Teu cheiro pelos cantos
Olhos de dilúvio
Chove lá fora
Girassol cabisbaixo
Felicidade úmida
Amor na chuva
Silêncio…
Somente raios e trovões
Quatro paredes de um quarto
Ajoelho eis sua súdita
Minha Majestade.

ANA IDRIS.

Bagunça

Estrelas repletas de brilho no céu, poeira e quasares
E todo esse brilho é tão antigo, esparso nesse caos
Refletindo nos olhos como um sol de milhões de noites passadas
E os sons desta noite relaxam meus nervos amo essa bagunça…
Enquanto caminho as luzes estão piscando, amarelas, neon…
E eu estou apenas lembrando doces lembranças dos dias
Reino de tragédias, donzelas com febre, histórias em livros aleatórios
Retirados de uma estante cansada de tanto peso, páginas velhas.
Um dia me disseram, ”prove deste reino distante e bonito”
E o que eu direi?Algumas palavras escarradas ao vento.

Carrego comigo todas as emoções brincantes com minha sombra
Isto é divertido não é?Talvez um dia qualquer eu voltarei a ser criança
Cobrirei meus olhos com velhos filmes de máquinas fotográficas,
Olhando o céu, escondendo os olhos, do brilho eclipsado
Eclipse muito bonito, assim, queimando meus olhos
Talvez eu já esteja completamente cega, mas não creio nisso
O que eu tenho de melhor a oferecer além de minha falta de fé?

Há uma rosa em minha mesa, outrora ela foi jovem
Mas agora ela está a envelhecer, e as pétalas caem em meus pés…
Ao olhar novamente, ela continua bela, ao desfalecer
Se eu pudesse reconstruí-la, eu pintaria suas pétalas,
Com um vermelho vivo mas eu posso, revivê-la?
A beleza de um rosa eterna, desnecessário reconstrução
E numa página perdida eu guardo as pétalas velhas
Guardo o registro de uma bagunça, o que eu acho disto tudo?
E o que estamos fazendo aqui?Vivendo o melhor dos momentos?
Está tudo uma bagunça, eu sou forte demais para entender isso?

Olhos com ressaca, face embriagada, insônia, que bagunça é essa?
Bagunça de minhas emoções, sentimentos sinceros e tresloucados
Perto de minha janela, linda noite inquieta, eu amo o caos
Essa bagunça que tu deixastes há alguns meses, faço limpeza?
Esfrego meus sentimentos com gotas de razão em pó…

Simplesmente, nesta bela bagunça, com minhas rosas desfalecendo
Sapatos espalhados, aromas e páginas velhas, rasgando poemas
Rasgar meus sentimentos fora?Jogar numa fogueira?E as recordações?

Hoje à tarde eu saí para caminhar, e eu pensei nesse caos, nesse cortiço…
E por um instante eu quis, abrir mão e partir. Mas por quê?
Esse reino onde dragões estão vivos e as princesas apenas esperam?
Eu não acredito em contos de fada, um dia a princesa matará o dragão?
Com suas próprias mãos, um dia as princesas roubarão espadas?
Porque nessa bagunça, não há mais cavalheiros, não há fadas, não há nada.
Um muro de utopia, talvez um muro de verdades, surpreenda-se
Caminhava na tarde ensolarada, os carros passavam, as pessoas reluzentes
Emoções estampadas em passos apressados e cansaço descontente
Silêncio…

Invasão de felicidade no meu silêncio particular, caminhando por aí
Bagunça que eu vivo agora, dores bonitas, cores incompreendidas,
Mas o que eu tenho a perder?Perdas e ganhos?Ilusões e expectativas?
Alegrias, Amor, ruas tortas e sem sentido, felicidade, frustrações?
Eu não sei dizer…

Nesta bagunça que deixaste, esse Caos em meu peito estilhaçado
No meu pedaço insone cheio de papéis e livros na estante,
Eu estou atirando meus sapatos nessa bagunça que eu Amo
Convido-lhe a jogar teus sapatos também… Venha então…
Errante desordeiro…

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“Por quem os lençóis dobram” – Da série, “Eu não sei fazer poesia, mas eu tento!”

Depois de andar por um caminho cheio de folhas coloridas,
Já não é mais outono, é apenas um inverno ambíguo, cheio de sol e calor,
E os olhos azuis, grandes e tão perdidos, a fala mansa e o andar calmo,
Um homem incomum tão próximo, a alguns poucos centímetros,
E o sorriso na indelicadeza desconcertante de uma boca carnuda…desnuda,
Tão doce, bruta, elegante, curiosidade, os olhos, os olhos nus,
Fitando a boca voraz, era o desejo e a malícia no pensamento,
E a pele desnuda, a boca e a língua divina, e o cheiro natural,
A linha do pescoço que sobe até o rosto a emociona,
Ela estava então na cova do leão…

A vida, as pessoas, o caos, caminhando todos juntos de mãos dadas,
Os ventos de fim da noite os carregam, assim como as folhas,
Caindo calmamente, quase uma heresia,
Uma heresia calma e ao mesmo tempo bruta,

A folha toca o chão numa leveza simples, as mãos lhe tocam a pele,
Numa beleza ímpar, um gemido alto de prazer enlouquecedor,
São jovens demais para deixar a natureza emudecer noite afora,
Às vezes um homem deixa seus medos e ansiedade para trás,
Não há nada a temer, olhos nos olhos há sempre uma razão, ainda que febril,
E os olhos nus, encantados, e os corpos nus, se contorcendo,
Numa dança erótica, a indecência e o desejo tem cheiro de jasmim.

Há um sorriso tímido nos lábios, um enrubescer no rosto, um jogo de poder e sedução,
E ela sente os pelos do rosto dele junto ao pescoço, corpo estremecido e sem rumo,
E enquanto ele tira as suas roupas, ela se despe da vergonha,
E a noite segue tímida nos gemidos, enquanto as mãos firmes escorregam,
Como num torpor, num deslize, o suor sagrado se mistura mãos fortes e brutas,
No corpo tão frágil e delicado de mulher, as garras do leão lhe marcam a pele,
E as marcas na pele dela, um sorriso sádico no espelho pela manhã,
Ela fecha os olhos e se entrega, e então ela acredita, que ali naquele erotismo,
Naquela cama, com aquele homem, ela encontrou sua paz de espírito.

E o gosto sincero do medo, tão natural, ansioso, e latejante,
Num grito noturno sufocado pelo silêncio, uma mulher aflita,
Ao lembrar-se da cova do leão, o tremor, o desejo e o paladar visual,
Na madrugada afora o corpo clama por um pouco mais de amor,
Seja ele sensato ou insensato infiel ou fiel, perigoso e delicado,
A luta entre amor e razão é fado pesado e dói o peito,
O peso de uma incerteza silenciosa carregando um coração tão maltratado,
O rosto queima com a lembrança do beijo molhado, quente e profundo.

E a lembrança de um gosto amargo lhe traz uma saudade,
E o peso de um corpo sobre o seu nunca foi tão intenso e excitante,
Tão profundo, úmido, na meia luz, um gemido abafado e solitário,
É na cova do leão, a saudade, a lascívia, e o cheiro do jasmim,
Ela o amou, fez do seu desejo sua morada, bebeu do seu cálice até a última gota,
E ele fez do corpo dela seu altar, com uma fúria docemente obscena,
Um altar do desejo na cova do leão, quente, úmido e delicado.

Ficou uma bosta, mas foda-se essa merda!!hahahahahahahahahaha
Ficou uma bosta, mas foda-se essa merda!!hahahahahahahahahaha

“Sobre todos nós, um pouco de chuva deve cair.”

Estas são as estações da emoção
E como os ventos elas se erguem e caem
Esta é a maravilha da devoção
Eu vejo a tocha que todos devemos carregar
Este é o mistério do quociente
Sobre todos nós, um pouco de chuva deve cair
Depois de um dia cheio e tumultuado, cheio de dores, não só minhas, mas de outras pessoas também esperando atendimento no hospital, fui abençoada pelo frescor e beleza da chuva que vejo agora através da minha janela. Em decorrência dos acontecimentos de hoje, eu não pretendia escrever nada. Hoje o meu dia foi de tristeza. Foi um dia daqueles que por mais que eu lembrasse das coisas boas, eu não estava conseguindo me sentir plenamente feliz. Eu queria ter um dia normal. Gostaria de ter ido trabalhar, ter ido almoçar com os amigos do trabalho, ter rido. Gosto dos desafios do dia a dia. Eu não queria passar a manhã inteira trancada na escuridão, por causa de uma dor de cabeça e um mal estar por causa de um remédio fortíssimo que tenho que tomar toda segunda-feira. E quando isso acontece, ter que fazer uma bateria de exames pra ver se meu fígado ou rim foi pra bosta. Hoje eu acordei e não me senti bonita, me senti um lixo. Estava pálida e com dor de estômago. E pra ajudar aquela maldita coisa que a mulher tem todo mês. OK, bom sinal, não estou grávida. Um filho nessa altura do campeonato não seria nada bom. E eu hoje, no hospital, 6 horas de espera, ouvindo histórias de pessoas que estavam piores do que eu, bem piores…Pessoas que viajaram horas e horas, para pelo menos ter a esperança de um atendimento. Posso parecer hipócrita, ao reclamar aqui que o meu dia foi um lixo, o que é a minha vida, comparada com noventa por cento daquelas pessoas que tratam pelo SUS?Eu sei que eu pago imposto, e tenho tanto direito quanto eles. Clínicas particulares não resolveram o meu problema, o Sistema único de Saúde sim. Hoje foi dia do meu check-up, coincidentemente não acordei bem. Hoje, eu amaldiçoei o maldito minuto que eu acordei. É meus amigos, o ser humano é mesquinho e ingrato, ele reclama, reclama, reclama, mas não olha pra trás. Eu me olhei no espelho hoje e me senti horrível. Conversando com demais pacientes eu comentei o quanto minha auto-estima fica lá em baixo por causa das manchas da psoríase. O quão eu sou insegura quanto a isso. Eu escutei três vezes que isso não importava, que eu era bonita com ou sem manchas. Mas a estética é fogo, eu sempre fui vaidosa, ter marcas no meu corpo que vão demorar pra sair não é coisa lá muito agradável. E nós somos tudo um bando de ingratos. Eu me recordei quando minhas pernas foram tocadas com a doçura e suavidade de um pianista e seu piano, e eu me recordei que me disse que minhas pernas eram lindas, mas eu me lembro do dia que elas não eram manchadas, e imagino que talvez você gostaria mais delas daquele jeito. Mas eu confesso que o meu dia fica mais radiante quando lembro que me disse que eu sou linda. Isso faz ganhar o meu dia, mas hoje, hoje eu me olhei no espelho, e queria EU me achar bonita. Mas não foi possível. Lamúrias de vaidades e dores a parte, agora que eu escrevo, um vento e cheiro divino de chuva invade meu espaço. E essa chuva, tão suava, serena, na véspera da meia noite, trouxe toda a minha auto-estima de volta. Fez o meu dia, que foi tão ruim, ter algo de belo ao final. Hoje eu vou dormir bem. Meu corpo vai sentir o frescor da chuva me trazendo um pouco de paz. Eu queria ver relâmpagos, e contar os segundos para prever a distância da queda, e depois, em segundos de êxtase, encantar-me com o barulho do trovão. Eu queria poder beijar-lhe agora, e que sobre nossos corpos caísse um pouco dessa chuva. Ahhhh…As doces armadilhas das nossas devoções, e toda a razão do nosso quociente. Amaldiçoamos nossos dias ruins, mas queremos que tudo acabe na doçura de um beijo e no calor de um abraço. Eis a maravilha das estações da vida.