A metáfora da mariposa e o lampião.

Em volta do lampião aceso naquele quarto, naquele sítio no meio do nada, vários insetos circundando ao redor, bêbados ao redor do fogo, debatendo-se, caindo no chão, rodopiando com as asas pra baixo, perninhas pra cima, como se estivessem tendo uma convulsão. Não sei se insetos tem convulsão, como os humanos… Devem ter, pois tais humanos se aproximam mais a insetos do que aquilo que chamamos de natureza humana, logo, devem existir insetos mais humanos do que nós.

E os insetos são como anjos caídos, frente a luz divina que os mata, eles acreditam em suas convicções, e amanhecem mortos e pisoteados, por nós humanos, eles são mortos pela própria luz que tanto idolatraram. E a mariposa enquanto rodopiava em volta de sua paixão luminosa, não se importava com seu vício. Ela dançava obscenamente, hipnotizada, suas asas batendo em segundos violentos, chama sensual, como um casal que se ama entre as quatro paredes de um motel de beira-estrada. O calor do lampião queimando as asas é como um casal arranhando as costas um do outro, cravando as unhas no ápice de um prazer enlouquecedor. Ela se joga no vidro do lampião, golpe… Quando o lampião se apaga, ela chora como uma criança, sua fonte de Amor foi embora. Ela vai embora e pousa numa flor no jardim de frente para a janela onde a lampião se acende, ou ela se camufla em um tronco marrom cheio de juras de amor de 1980. E quando a noite chega, o lampião se acende, e ela beija a luz com seus cílios. Ela se curva… Perante aquele fogo suas asas batem um milhão de vezes. A mulher a fazer Amor no quarto também…

 

luz

Dona Rita e a Fonte da Juventude de Lucas Cranach.

Primeiramente, é necessário observar a seguinte obra abaixo, depois, partir para a leitura. É necessário a compreensão da linguagem desse quadro, para que a ideia do texto possa fluir sem complicações. Se estiver muito pequeno, devido ao layout do blog, no google imagens tem em tamanho maior. Esta prosa fala sobre a saudade, sobre o Tempo, emoções, lembranças. Espero que apreciem, sem moderação. Obrigada e boa leitura. Se gostou, comente, críticas são bem vindas!

A fonte da juventude, do pintor renascentista Lucas Cranach.
Quando a velhice chegar, aceita-a, ama-a . Ela é abundante em prazeres se souberes amá-la. Os anos que vão gradualmente declinando estão entre os mais doces da vida de um homem, Mesmo quando tenhas alcançado o limite extremo dos aos, estes ainda reservam prazeres.
Sêneca

Rita sozinha na frente do espelho, aos setenta e cinco anos, sozinha, em seu apartamento localizado no quinto andar de um prédio do subúrbio, onde as flores nascem no asfalto, esperando um pouco de atenção dos olhos incautos, preocupados, com gotas de mau-humor. Transeuntes amanhecidos em dias ensolarados , mas por dentro, coração e alma tão nublados como dias de dilúvio, e às vezes o dilúvio nunca acaba, estamos sempre nos protegendo de nossas tempestades invisíveis, mas que nos molha tanto, é como se fosse uma histeria, real, andamos pelas ruas encharcados pelas águas das dores do mundo. Andamos escondidos embaixo de nossos guarda-chuvas, algumas pessoas possuem guarda-chuvas transparentes, a alma pode ser vista por todos, até aqueles que assistem o espetáculo da vida do alto da sacada do apartamento, tal como fazia Dona Rita, da sacada do quinto andar, recordando-se de histórias tão antigas quanto as cicatrizes rachadas de prédios velhos, aqueles que foram ocupados por aqueles que não tem onde ir. Polícia do outro lado, os donos na rua, de braços cruzados, crianças chorando nos braços da mãe, enquanto os pais apanhavam dos policiais que os tiram à força. Brigas, desespero, alegrias, Amor…Foram muitas coisas que os olhos experientes e cansados de Dona Rita  já vira.  A guerra do Vietnã, a queda do muro de Berlim, a dissolução da União Soviética. Queria ela poder voltar no tempo? “Não”, pensava ela, mas sabe-se que ali naquele rosto existia o peso da dúvida,  mesmo ela sabendo que já viveu tudo o que tinha que viver, muito suor e lágrimas já escorreram ali naquela face, a única coisa que ela precisava era de um pouco de paz. O mundo estava caótico demais, e ela estava cansada.

Era viúva, morava sozinha, já amou muitos homens nessa vida, tomou muitos cafés nas ruas parisienses, chorou ao lado da torre de Londres, apaixonou-se pela vodka e o frio angustiante e inspirador de Moscou. Usou drogas, transou no meio da multidão do Woodstock, gritou paz e amor, viveu, todos os excessos que a vida poderia permitir que ela vivesse, numa fúria quase que beirando o descontrole. Acordava cedo todos os dias, cuidava do pequeno jardim da sacada do apartamento, regava as flores com um regador amarelo de plástico, que muitas vezes deixava ao lado do vaso com Girassol, mas ela gostava mesmo era de pegar um velho balde e fazer uma concha com as mãos, gostava de sentir a água escorrendo pelos dedos. Este ato era pra ela uma forma de felicidade instantânea, mesmo que momentânea. Ela não acreditava na felicidade, aquele tipo de felicidade que acreditamos que seja eterna. Felicidade é um conceito que a vida é feita de momentos, e os momentos são feitos pelo Tempo, tempo de drama, um livro de contos esparsos, várias histórias cheias de verdades, mas que também carregam a dor da mentira e da ilusão, e o que falar das histórias de Amor e Sexo? Muitas vezes não caminharam juntas, pela inabilidade do ser humano separar Sexo de Amor. Rita tentava, mas ela fez Amor com cada homem que passou pelos seus braços, mesmo que pra eles, tenha sido apenas Sexo.

Um velho cão dormia aos seus pés , o gato oportunista aparecia às vezes para comer e deitar em sua colo. Ela tinha três filhos, e todos eles queriam colocá-la em um asilo. Achavam que a companhia de outros “idosos” a faria bem. Acreditavam que ela não estava mais lúcida. “Pobre ser humano, tolo e mesquinho”, pensa ela, mal eles sabem que ela mantinha o vigor, a coerência, tudo o que uma mulher lúcida têm. Ela estava velha? Sim…Mas ela ainda pensava, respirava, sem precisar de balões de oxigênio, mas, as falsas convicções de que todos os velhos a partir dos setenta anos ou menos, não são capazes de distinguir uma pedra de um pedaço de merda. Parou na frente do espelho, pensou no fedor de uma pedaço de merda, e uma pedra, “Será que somos tão estúpidos assim?”, pensou ela, enquanto penteava os cabelos brancos, que caiam na altura dos ombros. Lembrou de seu marido, de todos os anos que ela viveu ao lado dele. Ela acordava primeiro que ele, se arrumava e penteava os cabelos na frente do espelho. Ele levantava da cama e colocava as mãos em cima dos ombros dela: “Bom dia minha senhora”, dizia ele, toda vez que a via pelas manhãs, penteando os cabelos. Ela sentiu uma saudade, a saudade tocava-lhe os ombros…

Depois de cuidar do pequeno jardim, ela sentava-se na cadeira da sacada, com sua xícara de café fumegante nas mãos. Pensava  na vida, com tudo o que já havia vivido, suas alegrias, tristezas, todos os sonhos que ela carregou durante as madrugadas. Todas as suas emoções, estavam estampadas em cada ruga de expressão de seu rosto envelhecido. Ficou lá, sentada, e de repente veio uma vontade de rever álbuns de fotografia, queria uma quinta-feira cheia de lembranças. Pegou um pesado álbum da estante, e ele conservava os cheiros de lembranças e saudades, estampados em páginas amarelas, algumas fotografias em preto e branco. Ela amava o cheiro de livros novos, livros velhos, gostava de cheiros do seu passado, e o perfume das flores que alegravam seu micro jardim de sacada.  Abriu o álbum, começou a folhear as páginas, e chegou numa parte onde lhe trouxe a memória de sua visita à Berlim, aos trinta anos. Havia uma fotografia dela em frente ao museu Gemäldegalerie. Ela lembrou-se de que naquele local foi onde ela se encantou por uma obra de arte específica, um quadro que ficou marcado em sua memória:

Era um quadro de Lucas Cranach, de 1546, chamado “A fonte da Juventude”. Aquelas fotografias naquele álbum no colo de Dona Rita poderiam estar desintegrando-se, perdendo-se na certeza do Tempo, mas o valor e mensagem de uma grande obra é algo que não morre nunca, e quando morre, sempre terá alguém que conserve o registro no baú de memórias. As coisas não se perdem, recriam-se em outro espaço-tempo. O encanto pela obra era tanto, que ela comprou um livro que a tinha, em duas páginas inteiras. Puxou o livro da estante e lá estava o marcador de fita de cetim guiando sua lembrança, estava lá a fonte da juventude.

As velhas sendo trazidas enfermas, em carroças de madeira, pedaços de pano branco na cabeça, elas não queriam mostrar os cabelos brancos, ou a ausência deles. Senhoras de roupas que cobrem o corpo inteiro, sem a formosura e a volúpia dos corpetes onde saltavam seios exuberantes. Os seios caídos de flacidez, o retrato da vergonha, pintado sobre a forma de uma velha sentada na beira da fonte, agachada, seminua, com a vergonha estampada no rosto. Ela parecia olhar para Dona Rita, e dizer que a vergonha a impede de mostrar suas “vergonhas”, que aquele corpo ali já foi “bonito” um dia, a velha agachada olhava para Rita, senhora da era moderna, com os seios flácidos, pele já tão enrugada. Imaginou-se ali, naquele local, em 1546, o senhor de vestes vermelhas, segurando um livro, avaliando se ela podia ou não entrar na fonte da juventude, estaria ela, velha o suficiente para querer ser rejuvenescida? Velha o suficiente para tirar sua roupa, em frente a uma multidão, entrar na fonte, banhar a alma em águas de cirurgia plástica, carregadas de Botox. Rita até então obedecia à lei natural das coisas, pois ao Tempo não podemos enganar, nem a Morte.

Dona Rita dirigiu-se em direção ao espelho. Tirou todas as roupas, soltou os cabelos. Estava ali, em frente ao espelho, nua, crua e…Velha. Os cabelos brancos escorrendo nas costas, os seios flácidos que seu velho Homem tanto amou…Seu velho Homem…

“Estou velho querida…- dizia ele, olhando nos olhos dela, desde os trinta e um anos de idade…balbuciava…”Estou velho, não tenho mais a flor da juventude…”, este Homem, durante todos os anos que passaram juntos, nunca queixou-se da beleza jovial que aos poucos se perdia do corpo dela. Os seios ficaram flácidos, ele continuou amando-os; as rugas apareciam contando histórias no rosto dela, ele continuou beijando-lhe a face; a pela já não era tão mais macia, com a suavidade de uma pétala de flor, ele continuava deslizando os dedos na pele dela. Aquilo o fez único no mundo, ela nunca mais quis homem algum. Depois de tantas aventuras em braços cujas almas não se completavam. Os tempos de procurar um Amor que não fosse mesquinho e vazio foi embora com o sopro do vento que sacudiu os cabelos na noite em que conheceu o elemento saudade, o dono do peso dela nos ombros. Naquela época, seus cabelos não eram louros, mas sim negros, mas ela sentia-se como as ninfas loiras e rejuvenescidas de Lucas Cranach, viu ali o retrato de sua vida, pintado em dois lados, do lado direito, as festas, jantares, bailes, flertes…Músicas de rock’n roll, bossa nova, tropicália, sexo em Woodstock. Do lado esquerdo, ela, sozinha, nua na frente do espelho.

– “Estou velha querido…Estou velha…Agora, EU que me sinto velha. Que saudades…De você, da nossa juventude, da nossa velhice, dos teus olhos…

E nos ombros sentiu a vasta saudade dos seus tempos de ninfa. A saudade galopando na rajada do tempo, o peso dos ponteiros do relógio. Deveríamos nascer velho e morrer jovens, tal como na estória do Fitzgerald. O curioso caso de Rita estava ali, no reflexo do espelho, os ponteiros do relógio não voltavam, sua eloquência em fuso horário, entrando agora em anti-horário. O gato a olhava da janela, e lambia as patinhas. Seu cão, também velho, porém cego de um olho e quase surdo, dormia ao pé da cama, abria os olhos, devagar, ficava observando e depois voltava a dormir.

Rita foi em direção ao banheiro do quarto, tomou um longo banho, a pele já era enrugada o suficiente para se preocupar com o tempo que passaria embaixo do chuveiro. Secou-se, entrou embaixo dos lençóis, nua…Não precisava de pílulas para dormir. Sonhou…Sonhou com a fonte de Cranach. Do lado direito, seu marido rejuvenescido a esperava. Ela estava do outro lado da fonte, tirando as roupas para entrar. Deu um mergulho, lavou o corpo, depois outro mergulho. Chegou do outro lado e entrou com ele numa tenda de veludo vermelho. E desde então, Dona Rita nunca mais acordou. Foi rejuvenescida com massa fúnebre…

Apartamento em chamas

Lúcia gosta de tomar banho com  banheiro cheio de velas. Ela usa isso como uma forma de ritual, sem compromisso, sem pressa alguma. Chega cansada do trabalho e coloca um John Coltrane ou B.B King para relaxar, pensar na vida, ter um sorriso de canto de boca, emoções surgidas nas trilhas de um solo de jazz ou blues tarado.

Deixa as roupas pelo caminho, fazendo uma trilha em direção ao banheiro, vai andando nua pelo apartamento de subúrbio, enquanto devora o resto de doce de banana feita pela avó no final de semana. Liga o computador, acompanha os último status das redes sociais e notícias de portais web, dá risada da última coluna do Zé Simão e seu colírio alucinógeno. Um ritual de bruxaria, um ritual totalmente pagão, seus demônio dançando em volta das chamas tremulantes da vela. Anjos soprando nos ouvidos, demônios em forma de pensamentos, todos num coro, na penumbra de jogo claro e escuro, luz e escuridão. Seu banheiro era um pintura barroca.

Faz amor consigo mesma, os homens que a tiram de sua toca, faz-lhe querer respirar por um mundo menos mesquinho com suas cores cinzas esparsas, no meio de seu mundinho tão colorido, solitário, a viva alma de um homem que veja suas nuances é tão raro quanto uma espuma de banho que seja duradoura. Lava a alma, lava o corpo, pensa em sexo e também em Amor.  Assopra a espuma nas mãos, como uma criança em corpo de mulher adulta. Não tem medo da solidão, pois ela é aquela que lhe completa  e faz sua consciência ão andar tanto nas sombras e nem tanto em caminhos iluminados, há o equilíbrio entre sombras e luz. Alimenta sua sede de viver pecando e fazendo as coisas certas, em passos de dança desalinhados, um tango teimoso.

Enxuga-se com uma felpuda , perfuma-se com algumas gotas de perfume atrás da orelha, 5 gotas tal como Marilyn Monroe em seus tempos áureos, amante de John Kennedy, baleado na surdina por um tiro na cabeça . Deita-se nua, na cama, com o corpo coberto apenas por um película perfumada de hidratante.  Agarra o travesseiro, aperta-o entre as pernas. Ela ama a solidão, mas gostaria de ali, naquele momento, naquele apartamento, queria o elemento Fogo, não queria a brisa suave do ar-condicionado.

Os carros passam lá embaixo, janelinhas de prédios ao redor, cheias de vida e histórias, sombras passando na janela, há um rio de emoções e segredos, diante de seus olhos naquela janela. Na penumbra de seu apartamento ela reflete sobre suas ambições e desejos. Numa aflição silenciosa, ela aperta um pouco mais o travesseiro entre as pernas. Queria um homem ali, no meio das pernas. Queria esquecer as velas acesas, perto de papéis, madeira nobre. Queria que as velas que fazem a trilha do banheiro ao quarto, trouxessem aquela chama que ela tanto necessita.

É verão naquela selva de pedra, naquela metrópole carregada de desejos,  ansiedades, ambições, todos os sete pecados capitais. Queria um apartamento em chamas, um homem entre as pernas e não um travesseiro. Um pouco de Amor…

Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quando a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar.Albert Camus
Caminhamos ao encontro do amor e do desejo. Não buscamos lições, nem a amarga filosofia que se exige da grandeza. Além do sol, dos beijos e dos perfumes selvagens, tudo o mais nos parece fútil. Quando a mim, não procuro estar sozinho nesse lugar. Muitas vezes estive aqui com aqueles que amava, e discernia em seus traços o claro sorriso que neles tomava a face do amor. Deixo a outros a ordem e a medida. Domina-me por completo a grande libertinagem da natureza e do mar.
Albert Camus

Trilogia do Vento – Vaidade, Cólera e Desejo – Parte 2: Cólera

Homem livre, tu sempre amarás o mar!
O mar é teu espelho, contemplas tua alma,
no desenrolar infinito de suas ondas,
E teu espírito é um precipício menos amargo,
…Sois todos tenebrosos e discretos,
Homem, ninguém sonhou o fundo de seus abismos,
ó mar, ninguém conhece tuas riquezas íntimas,
De tal modo, cuidais de guardar vossos segredos.

Charles Baudelaire

Já estava no décimo cigarro. Dentro daquele apartamento, Clarissa escutava John Coltrane. Três dias sem tomar banho, vestindo uma camisa branca manchada e cheirando a conhaque, três vezes maior que seu corpo miúdo de um metro de sessenta e cinco. A camisa era de Raul, homem que conheceu em um pub decadente do outro lado da cidade. Ele gosta de blues, cigarros de canela, gin tônica e conhaque.

Clarissa conversou com Raul a noite inteira, foram embora bêbados, ou semi-embriagados, como ela sempre dizia. Os dois, perambulando pelas ruas mal iluminadas, dividindo uma garrafa de conhaque e um cigarro atrás do outro. Caminharam três quilômetros falando sobre coisas úteis e inúteis, algumas com nexo e outras sem sentido algum, totalmente desconexas, algo sobre a paixão de queijo gorgonzola batido com iogurte de morango.
“Isso é coisa típica de larica”, disse Clarissa, enquanto capengava de um lado para o outro, com seu sorriso de bêbada e com “Quero sexo” escrito na testa, de maneira que só ela sabia que estava escrito, desde que topou com aquele homem, já embriagada. Ela estava à procura de alguém para satisfazer suas necessidades de sexo casual.

Chegaram no prédio do apartamento dela, ela mal conseguia achar o buraco da porta. Raul a abraçou, segurou suas mãos trêmulas, arrancou as chaves da posse etílica dela. Abriu a porta, Clarissa chamou ele para entrar, ele hesitou, no começo, mas quando começou à pensar na merda que aquilo poderia gerar, Clarissa já havia voado em seu pescoço e estava a agarrá-lo pelos cabelos. No meio da sala, um tapete felpudo, e foi ali mesmo, um sexo selvagem, etílico e sem pudor algum.

No dia seguinte, ela acordou com aquela dor de cabeça desgraçada, e a vontade louca de botar pra fora todas as tripas que ela carregava dentro dela. Gosto de cigarro de canela e conhaque enjoativo, e a lembrança de fundo de dois ou mais copos de gin tônica. Olhou para o lado, e havia ali um homem nu, ao qual ela não lembrava-se de como ele foi parar ali. Ela também não sabia o que ela estava fazendo vestindo uma camisa que não era sua e nem era o seu número. Estava ali, ao lado dela, segundo suas conclusões esquizofrênicas, um homem deitado feito porco bêbado, apesar de nunca ter visto um porco bêbado, só morto, com purê de maçã e vinho branco, servido em noites de natal com a família. Cutucou ele com as pontas dos sapatos, não queria colocar as mãos nele. Ela era um puta fresca, uma vadia que acordou de ressaca e amnésia. Foi isso que ela pensou dois dias após estar curada da bebedeira. Vadia vadia vadia vadia, putinha fresca de não me rele, não me toques, mas quando bêbada libera até as portas dos fundos. Não duvidava que havia feito isso, afinal, ela não se lembrava de nada, e ela era como uma prostituta de metrô, aceitava até vale-refeição. Topava qualquer negócio, e se arrependia depois, quando lembrava de algo.

Sentou-se no sofá, abraçou as pernas, balançava de um lado para o outro, olhava aquele homem nu ali deitado, de boca aberta, babando em tapete felpudo comprado em bazar de asilos. Os velhos morrem e suas coisas são vendidas a preço de banana. A baba continuava escorrendo, e aquele homem peidava constantemente, mas que belo homem ele era, talvez tenha tido um pouco de sorte, mas a única coisa que ela sentia naquele momento, além de dores no corpo, era raiva, ódio, fagulhas de cólera.

“Filho da puta, filho puta, homem nojento!”, começou a gritar aos berros, chutando o homem que ali dormia. Raul acordou assustado, e chamou ela de vadia louca. Ela o empurrou contra o sofá, ele tentava se defender cobrindo o rosto, saiu correndo, vestiu as calças, esqueceu a cueca que ele mal sabia onde estava. Se vestia desviando de retratos, vasos, almofadas, livros. “Louca, essa mulher é louca!”… “Mas deliciosa”, pensou ele, ao ver a virilha dela quando ela levantou os braços para atirar flores fajutas compradas em lojas chinesas.

Percebeu que Clarissa estava vestindo sua camisa, e os bicos dos seios dela estavam duros e aparentes. “Deve estar excitada, o negócio dela é violência, são cenas ridículas e dignas de piedade.”, pensou ele ao vê-la parada com os olhos perdidos, encostada na parede, suada, descabelada e com maquiagem borrada. Ele lembrava do cheiro dela, de quão belo era seu sorriso, sua risada escancarada e gostosa, seu batom barato de gosto de frutas. Mas aquela mulher ali, não se lembrava dele. Raul foi embora, descamisado, sem seu conhaque e cigarros aromáticos. Talvez a camisa um dia a faça lembrar de como ele fez amor com ela, e não sexo. Estava embriagado, mas encantou por aquela insana criatura desde que a viu pedindo um terceiro copo de conhaque com mel e limão, e o cigarro que comprou solto, elegantemente aceso na mão esquerda. Adorou o jeito fino e elegante dela tragar a fumaça, e como ela mordiscava os lábios pensativa, olhando o horizonte.

Já na rua, olhou pra cima, ela estava na janela, vestindo sua camisa, fumando seus cigarros e bebendo o resto de conhaque que sobrou na garrafa. Os cabelos dela balançavam languidamente com o vento. Foi a última vez que ele a viu, mas nunca esqueceu-se da fúria e intensidade daquela mulher, fúria tragada e sorvida em copos de cólera.

Em quem mais eu poderia pensar numa personagem louca?Claro, Maria Elena!!
Em quem mais eu poderia pensar numa personagem louca?Claro, Maria Elena!!

O olhar de Beatriz

Era verão e as crianças saiam nas ruas com suas bexigas cheias de água. Numa rua sem saída perto de casa, as crianças andavam em paz com seus patins, bicicletas e carrinhos de rolimã. Havia torneios de queimada, e Beatriz sempre era campeã invicta. Seu reflexo era tão bom quanto o de uma mosca varejeira descansando na parede da cozinha.

Beatriz tinha uma bicicleta amarela enferrujada. Deslizava com ela nas ruas com pequenos buracos. Ela adorava a vida infantil do subúrbio. Encontrava ali uma infância que imaginava que de uma certa forma, quando adulta, seria uma infância memorável. Quando fosse adulta, Beatriz queria ser pediatra. Sua mãe contou-lhe que o médico que cuida de crianças doentes chama-se pediatra. Beatriz queria salvar todas as crianças da rua, todas as crianças da cidade, todas as crianças do mundo que se arrebentavam com seus carrinhos de rolimã nas ladeiras. Braços, pernas, narizes quebrados. Um dia contou para a mãe que queria consertar ossos quebrados. Então sua mãe disse que o médico que consertava ossos quebrados era o ortopedista. Beatriz ficou pensativa por alguns minutos, enquanto comia seu mingau de aveia, e na audácia de seus oito anos de idades, disse à mãe que não queria ser apenas pediatra, queria ser ortopediatra. Sua mãe riu, e sentiu-se feliz com o raciocínio e lógica da filha, por mais que seja tão prematuro. “Por quê Beatriz? Porque mudou de ideia meu bem?”, enquanto lhe estendia o copo de ovomaltine gelado com gemada, receita antiga de família e que Beatriz adorava. A menina, de olhos grandes e indagadores disse que mudou de ideia porque as crianças ao redor dela estavam constantemente se quebrando. Com um bigode de leite no canto dos lábios, Beatriz disse: “Karina quebrou uma perna ontem andando de patins na rua de cima, Guto quebrou o nariz quando recebeu uma bolada do Luizinho bem no meio da cara. E a Clara, Clara está sempre quebrada, ela é estranha mamãe…”Por que Clarinha é estranha querida, ela parece ser tão legal!, Beatriz olhou nos olhos da mãe com uma expressão de surpresa, como se a mãe fosse ingênua o bastante perto dela. “Porque Clarinha está sempre triste, como se ela estivesse quebrada, por dentro, e eu queria poder consertá-la”. O silêncio tomou conta da cozinha, a mãe de Beatriz não lhe fez mais perguntas. Enquanto lavava o copo sujo deixado pela filha, percebeu que o olhar nu de uma criança é tudo aquilo que muitos adultos perderam com o passar dos anos.

"Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas." Jean-Paul Sartre
“Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas.”
Jean-Paul Sartre

Trilogia do Vento – Vaidade, Cólera e Desejo – Parte 1: A Vaidade

Vaidade de vaidades! Tudo é vaidade.
Eclesiastes 1:2

Georgia penteava os cabelos com uma escova de cerdas macias. Sentada na cama, ao acordar, a primeira coisa que ela fazia depois de colocar os dois pés no chão, era dirigir-se até a penteadeira e escovar os cabelos. Era um carinho, uma espécie de ritual, um carinho diário de todas as manhãs, enquanto seus olhos se mantinham pequenos e inchados de uma noite de sono. Vários fios de cabelo ficavam presos na escova, e ela tinha medo que o número de fios de cabelo perdidos ultrapassem os cem fios diários. Leu numa revista de beleza, que toda mulher perde em cerca, 100 fios de cabelo todos os dias, sendo eles repostos por novos fios. Ela não contava os fios perdidos, tinha medo de enlouquecer.

Sua tia Berenice tinha câncer, e os seus cabelos antes tão bonitos, não existiam mais. Eram pretos, ondulados, e volumosos, Os cabelos de Tia Berenice ganhavam vida conforme o vento os balançava. Tia Berenice era o sonho e desejo de muitos homens, e continua sendo, mesmo ela não tendo mais a esperança de que a Beleza e o vigor de sua juventude possam voltar como que um milagre bíblico ela sentia-se como um Sansão de saias. O câncer chegou e arrancou toda a sua força. Sua doença era como uma metáfora bíblica, ela era agnóstica, e não acreditava em milagres. Já passou-se o tempo em que seus cabelos eram afagados pelas mãos dos homens que tanto amou na vida.

Tia Berenice usava um lenço colorido na cabeça, e eles sempre combinavam com seus olhos azuis. Apesar do rosto envelhecido e cheio de rugas, marcas de experiência e sabedoria de vida, Tia Berenice nunca perdeu a beleza que fazia o trânsito parar na glória de sua juventude. Ela gostava de ler, e ela era teimosa feito uma mula, recusava em usar óculos, recusava qualquer forma que provasse à sua consciência que o tempo chegou pra ela. Ela comprava livros num velho sebo cujo dono era seu namorado, e eles transavam no chão ao lado de prateleiras cheias de livros, alguns cheirando a mofo e com traças famintas. Hebert, o dono do sebo, adorava os cabelos negros e ondulados de Berenice, e quando Georgia passava em frente à loja, uma vez por semana ele lhe entregava um livro para ela levar à tia. Hebert sabia todos os livros que Tia Berenice já havia lido. Ele era apaixonado por ela, mas Berenice sempre foi uma alma livre, consistente no espírito idealista e livre da década de setenta. Tia Berenice envelheceu, perdeu os cabelos, mas nunca deixou de devanear sentada em sua poltrona velha da sala. Seus olhos vagavam longe nas páginas de um livro. Seu corpo era coberto pelas suas antigas vestimentas hippies, e ela mesmo doente, continuava fumando um cigarro atrás do outro. Cigarros mentolados, que ela acreditava que fazia-lhe menos mal que cigarros “convencionais”. O seu médico proibiu os cigarros, mas sua alma era orgulhosa demais para abandonar aquilo que ela gostava. Já havia perdido os cabelos, e tal como Sansão, sua Força foi embora, só que ralo abaixo… Desde então, tornara-se uma pessoa amargurada. As águas de suas emoções não passam mais pelo seu coração, já adoecido com três pontes de safena. Seu coração estava entupido pelos fios de cabelo que caiam aos montes no ralo do box do chuveiro. Georgia nunca esquecia a cena em que sua Tia Berenice gritava e chorava desesperada, nua, com metade de um seio extirpado  e com os fios de cabelos que lhe restaram, todos ao chão, sendo varridos pela água morna do chuveiro. Desde aquele outono, Berenice quebrou-se em centenas de cacos. Georgia tentava o tempo todo recolher os cacos e tentar trazer de volta o vitral da beleza e força de viver de sua tia, mas por mais que juntasse os cacos, o vitral nunca se completaria. Tia Berenice era incompleta.

Um dia, numa manhã de outono, três anos após o acontecimento trágico que ocorreu à sua Tia Berenice, embaixo de águas mornas, Tia Berenice apareceu-lhe ao pé da cama, sem o lenço cobrindo a cabeça. Ela tinha um sorriso no rosto, algo que Georgia não via há tempos, mas o velho e aromático cigarro mentolado descansava no canto dos lábios.

Bom dia Georgia…,

Tia Berenice era uma mulher de poucas palavras. Quando ela, nas raras vezes conversava, acontecimento em festas de família em que ela bebia escondida, Tia Berenice sempre falava do saudosismo da década de setenta, onde seus cabelos eram longos, pretos, brilhantes e ondulados. E o quão bonitos e selvagens ficavam quando o vento batia neles. Ela foi até a penteadeira de Georgia, e uma voz doce com cheiro de cigarro mentolado invadiu o quarto:

Este móvel era onde eu e sua mãe escovávamos os cabelos todas as manhãs. Eu brigava com tua mãe, pois neste espelho, como pode ver, há espaço para apenas uma imagem. Eu sempre fui difícil e quase invencível, e não nego, egoísta. Logo, sua mãe não perdia o tempo dela discutindo comigo.

Ela riu, Georgia viu seus dentes amarelados pela nicotina do tabaco de todos os dias. Fazia tempo que não via sua Tia Berenice soltar uma gargalhada tão gostosa. Tia Berenice puxou a cadeira em frente à penteadeira, num gesto batendo as mãos no assento da cadeira, chamou Georgia para sentar,

Sente-se aqui querida, vou-lhe contar uma história

Georgia saiu da cama, com os cabelos longos e negros, desgrenhados, como se ela tivesse saído de uma tempestade de vento, sentou-se na cadeira e sua Tia Berenice pegou sua escova de cerdas macias e um spray de colônia perfumada para cabelos.

Quando eu era jovem como tu, meus cabelos eram longos e bonitos quanto os teus

Soltou uma fumaça mentolada no ar, e penteava suavemente os cabelos de Georgia, num carinho saudosista, alegre, porém com um “q” de tristeza que talvez somente ela poderia compreender.

Eu era muito parecida contigo. Os homens me desejavam como uma tempestade que deseja fazer amor com o vento. Já fiz muitas coisas nessa vida, muitas coisas erradas, inclusive. Nos dias de chuva, eu trançava meu cabelo, em dias de praia, eu os deixava soltos, enquanto eu caminhava pela areia próxima onde as ondas quebravam, Quando eu me abaixava para colher conchas, a água das marolas molhavam as pontas dos meus cabelos. Você já amou alguém Georgia? Já sentiu o afago das mãos de um homem, por entre os cabelos?Não há nada mais divino, minha querida, que as mãos de um homem no meio de nossos cabelos, enquanto nos beija na boca. Mãos que percorrem gostosamente perto daqueles fiozinhos tímidos e finos que terminam na nuca, dedos que afastam nosso cabelo para perto do lóbulo da orelha. Sinto falta de meus cabelos minha querida, e quando eu lhe vejo, na flor de sua juventude, eu permito-me dar um sorriso por dentro…Sinto muita falta…Muita falta…

Os cabelos de Georgia estavam impecavelmente escovados, e com cheiro de água de colônia.

Agora Georgia, minha querida, coloque isto, sua beleza ficará indiscutível e terá todos os olhares dirigidos à você

Tia Berenice entregou-lhe um pacote, com um vestido azul, da mesma cor de seus olhos. Georgia e Tia Berenice tinham os mesmos olhos azuis, era herança de família. Era um vestido de viscose indiana, e aquilo foi a coisa mais bonita que cobriu o corpo de Georgia até então. Georgia pegou os livros da faculdade, tirou o celular do carregador, e desceu as escadas. Tia Berenice esperava na varanda, fumando como sempre, seus cigarros mentolados Lucky Strike.

Está linda querida!

Tia Berenice chorava, abraçou Georgia e lhe deu um beijo demorado na testa.

Vá com Deus minha querida…

Georgia foi para a faculdade, e percebeu que atraiu olhos que nunca haviam lhe dado atenção. Parecia que naquele momento a sua vida tinha tomado um outro sentido, era como se o vento que batia em seu rosto, lhe trouxesse algo que nunca vivenciou.

Horas mais tarde, ao chegar em casa, seus pais estavam na sala, cabisbaixos. Na sala, um cinzeiro lotado, com cheiro de menta. A poltrona onde sua Tia Berenice passava seus instantes lendo ou dormindo, estava vazia. Tia Berenice morreu naquela manhã, próximo do almoço, naquele sofá, segurando uma fotografia de quando era jovem, com cabelos compridos. Na fotografia, Tia Berenice vestia o mesmo vestido de viscose azul indiana que acariciava o corpo de Georgia.

O enterro foi no dia seguinte, pela manhã. Georgia disse à mãe que demoraria alguns minutos, que pegaria depois um táxi até o velório. Foi ao quarto que era de sua Tia Berenice e pegou um maço de seus cigarros mentolados. Acendeu um, passou mal na ´primeira tentativa frustrada de tragar. Em frente à penteadeira,escovou os cabelos, borrifou colônia perfumada, pegou uma tesoura, e cortou os cabelos rentes à nuca. Seus cabelos estavam na altura da cintura, e agora eles não existiam mais. Chegou no enterro, com os cabelos curtos e desalinhados. Carregava consigo uma caixa, e nela continha as madeixas negras que sua Tia Berenice tanto amava. No caixão, vestida com o vestido de viscose indiana da mesma cor de seus olhos já sem vida, Tia Berenice parecia sorrir.

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Sereníssima.

Onde o Tempo perdeu-se em instantes não glorificados, já sobressai um canto triste de seus lábios emudecidos pelo frio e o silêncio das palavras. Num acesso de contemplação esperou o Tempo sábio sussurrar canções de razão distantes de emoções. Queria uma vida mais racional, e não apenas um calor irracional no meio das pernas cada vez que visse seus olhos em fotografias, pixels digitais que a envenenam a alma com sentimentos de Amor que talvez nem seja correspondido. Queria talhar uma imagem numa madeira de lei, cansar-me, deixar-me suar por suas emoções esculpidas em pedaços incólumes da natureza. Pedirei perdão por ser tão ingênua nos braços daquele que me fez calar. Pediria perdão, ajoelharia aos pés de meu rei soberano, tal como uma flor se curva perante ao sol. Na fúria do Amor não há espaço para falta de poesia, meus sentimentos cantam estrofes de Petrarca, instantes talvez mal traduzidos na língua dos incautos, aqueles que não foram atingidos pela flecha certeira e destruidora do mito do cupido.

E dizem por aí que o mundo é dos Tolos, aquele que incessantemente divertir o rei, com suas piadas de escárnio, mal sabem os espectadores que o Tolo é sempre o último que ri, e o seu riso é permeado por uma lágrima triste de fracasso. Poderia ser ele um mercador de flores nas ruas de Veneza, ou vender tulipas nos canais da Holanda. Poderia cantar uma canção em um velho alaúde, herança de uma família com caminhos já tracejados pela arte, mas a Arte do Tolo é fazer rir, contanto desgraças, a velha política do pão e circo. O Tolo diverte, chora, mas um dia ele se aposenta, mas ele continua esperando,ele espera, os tolos amam, e aos olhos alheios ele é apenas aquele que faz o soberano rir.

Contra o céu de amanhã, vamos todos padecer de cansaço, eu deito-me sozinha em um gramado macio, vendo as nuvens, e como uma criança em corpo de mulher, posso dar a cada uma delas uma forma de algodão doce, e eu consigo sentir em meus lábios a doçura destas nuvens de figuras abstratas, um beijo sincero de olhos bem abertos abaixo desse céu, um céu de manhã, você está sorrindo com teus olhos. Esse teu sorriso abstrato, aberto na graça das horas, eu amo os ponteiros do relógio do teu pulso, e a forma como os traços de seu rosto ficam melhores com o tempo.

Eu lhe adoro, vejo-me como uma garotinha fugindo para meu esconderijo de emoções, dou-lhe as mãos, venha e fuja comigo, no meio de melancolia úmida, numa meia luz, vamos brincar de sermos adultos, no meio daquilo que chamamos de Amor, ano após ano, aquilo que chamamos de Beleza existirá em um abraço, no nosso sono, no cansaço. Não vou ficar abstraindo sentimentos, sou tão somente feita de emoções que me movem, que me enviam glórias. Num futuro distante olharei minhas mãos enrugadas, meus olhos caídos…Talvez dias vazios, caminhando sem rumo. Um velho cão dormindo aos pés de minha cadeira.

Lembranças que passam na velocidade de um sentimento aflito que nos engole a alma. O que podemos sentir, em nosso julgamento, ora senil, ora débil, somos pobres tolos sem rumo?Quem somos nós, meu doce Amor, tão pequenos, para julgarmos aqueles que se deixam encharcar de orgulho? Vamos beber, esperar no calor de um fogo, enquanto a chuva cai lá fora, serena, molhando carros, pessoas, cães abandonados…Feche os olhos meu lindo e distante Amor. No silêncio da sua alma, as nuvens negras deste céu nunca atingirão o teu chão. O relâmpago nos trará o caos do estrondo de um trovão, fecharemos os olhos e contaremos os segundos, até o barulho do trovão me assustar, e você me abraçar de corpo inteiro.

Seremos crianças serenas, acordadas com medo do escuro. Minha doce criança em corpo de homem feito, quando você fecha sua alma, é como se tivesse arrancado um pedaço de minh’alma tola. Em meus sonhos, você cai aturdido em meus braços, e dá uma gostosa gargalhada. Eu cuidei bem de meu Amor esta noite, e quando eu olho as estrelas, queria lhe contar uma parábola astronômica, enquanto você se aconchega em meus braços, os vestígios de saudade deixariam de queimar dentro do meu peito, e se você me olhar por dentro, seus olhos de incógnita me tornariam uma mulher plena, serena. Eu te amo, minha doce criança mal criada. Eu o amo enquanto ouço os sinos da velha igreja tocarem uma canção triste ao final do entardecer. Eu queria dizer-lhe, “Está tarde querido, vamos descansar”, eu lhe daria um beijo doce de despedida, te beijaria com lábios quentes de conhaque para que não sinta frio nesta noite suave de outono. Não olhe pra trás, eu ainda sinto teus lábios doces no meu rosto, porém agora estão frios. Beleza insólita, aperte-me em seus braços, não se vá pelos confins de um outono indeciso, não me deixe partir, eu, mulher teimosa e distraída, minha doce criança, eu estou andando na contramão, seguindo minha rota de olhos bem fechados. Segure minhas mãos,meus dedos magros…Estou andando sozinha numa velha praça, e quando ver-me, sentada num gramado, com meus tão grandes olhos perdidos no sabiá que colhe um pedaço de grama no bico, perdida nas folhas que estão caídas já mortas ao chão…Apenas lembre-se que eu posso sentir o Tempo escorrendo por entre meus dedos, como areia fina das praias descritas em um livro de Hemingway. Doce criança, seja sempre suave e presente em minha memória. Doce criança dos olhos azuis…Eu te adoro. Lembre-se…Sereníssima beleza de olhos desacostumados.

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Alice.

Cale-se, disse Alice pra si mesma, diante do rosto maquiado de ressaca no espelho. Com as pernas cansadas, corpo dolorido, ainda tinha de tirar os traços de purpurina do corpo, o cheiro de homens bêbados e aquele cheiro de cigarro de quinta categoria. Cansada de rebolar no colo de estranhos, esperando quem sabe um pau endurecido e 200 reais num programa de uma hora, programa que rezava para não ter beijos na boca. Mas precisava do dinheiro insistente colocado por entre os seios ou na dobra da calcinha. Estava cansada de mostrar-se de peito aberto, de dizer à mãe que trabalhava num hospital no outro lado da cidade. Sua mãe, já caducando na flor da idade, só queria saber da sua criação quase doentia de gatos. Dias atrás, descobriu que o mal cheiro da casa vinha de um gato morto que sua mãe velava numa caixa de sapatos embaixo da cama. Mas não brigava com ela, ela encontrava a felicidade na flor da idade, sob forma de gatos abandonados na rua. Ela era feliz, daquele jeito, comendo apenas suas bolachas de maisena com leite quente, e eventualmente uma canja. Às vezes, ela dá uma gargalhada, assim, do nada, e conta sempre a mesma velha piada, aquela que seu falecido marido contou no primeiro encontro. Depois da risada, um silêncio, uma lágrima tímida nos olhos, e um afago de desespero no gato que estiver em seu colo. Ele talvez, o gato, nem tenha nome, ou se tem, ela não se lembra mais.

Alice afogava suas mágoas no conhaque com limão, e entre um cliente e outro cheirava uma carreira de cocaína. Tudo para se tornar mais suportável, talvez sua dança erótica lhe traga sentido, e não apenas dor ao esfregar suas partes num poste de pole dance. Arreganhar as pernas para estranhos, que a tratam como um animal no cio. No meio de gemidos magistralmente fingidos, ela tentava acreditar que ao menos fazia alguém feliz, mesmo que seja um homem com esposa e filhos. A hipocrisia também faz sorrir. Talvez o homem que lhe fez sexo oral, beije a boca da esposa e ela nem perceba que estava antes no meio das pernas de outra. Ela já transou com mulheres, uma tem sabor e cheiro diferente da outra, impossível saber se o bafo e sabor de um beijo seja de um beijo entre as pernas de uma prostituta de um bordel de bairro decadente.

Um dia, se apaixonou por um cliente. Ele a tratava como uma rainha. Dançar nua no colo dele em meio de olhos de desejo de centenas de homens, era algo que não a incomodava. Ela imaginava que em breves instantes, questão de minutos para que ele não se segure mais, ele lhe estenderia a mão e a levaria para o melhor quarto privativo, aquele onde os lençóis eram trocados. Para se ter o luxo de transar em lençóis limpos, pagava-se 100 reais a mais. Muitas vezes demoravam a transar, ele só queria conversar. Mas não resistia, ligava dali e se encontravam em um hotel qualquer, apenas pra transar. Sabia ela que aquilo era apenas uma conveniência para ele, uma forma dela realizar os desejos que ele tinha com a mulher, segundo ele, frígida, e levada pelas morais e bons costumes da igreja. Ele queria que um dia ela o visse transar com a esposa, iria entender o quanto ele sofre, pois ama uma mulher que não permite ser tocada. Nas raras noites que transam, ele e sua esposa ficam em um entediante papai e mamãe. Ele contou-lhe, que um dia tentou pegá-la de quatro, e ela o amaldiçoou, dizendo que não era uma cadela no cio. Pensou em muitas vezes largar dela. Um dia foram a uma festa de casamento. Ela encheu a cara e ficou enebriada e tarada, e ele conseguiu que ela fizesse os seus desejos, mas depois, no dia seguinte, ela não se lembrava de nada. Nunca conseguia deixar em sua memória o orgasmo que ela não tinha em sexo sóbrio. “Ela só sente prazer quando está embriagada…É como se ela derrubasse sua máscara de dona de casa, dama na sociedade”, dizia ele muitas vezes com olhos marejados. Nunca contou à esposa que se encontrava com uma prostituta, amava-a tanto que não queria perdê-la e ele não se achava hipócrita por isso.

Independente de alguns cheirarem a peixe, cigarros, charutos e cachaça, cada cliente que se aventurava por entre as pernas dela, tinha uma história para contar. Ela não pensa em ser uma prostituta clichê, aquelas que escrevem livros sobre a rotina. Sexo vende, a história pode ser uma porcaria, tal como “Cinquenta Tons de cinza”. Ela não queria mais viver de sexo. Tirando seu cliente que ela ama, aquele que sofre na falta de mãos e boca da esposa frígida, não consegue sentir orgasmos reais, é como se o sexo fosse banal, pura questão de rotina. Queria apaixonar-se por um homem, um cliente frustrado que se apaixonasse por ela e que a tirasse daquela vida. Mas a vida não é um conto de fadas, ela era uma gata borralheira, e a única coisa que era limpava era sua cara suja de sêmen após um programa.

Natalie Portman em "Closer, perto demais". Qunado penso em algum conto sobre prostitutas, penso nela como personagem. Adoro esse filme. É um tapa na cara com luvas de pelica.
Natalie Portman em “Closer, perto demais”. Qunado penso em algum conto sobre prostitutas, penso nela como personagem. Adoro esse filme. É um tapa na cara com luvas de pelica.

Minha falta de paciência

Pensei em coisas altamente pornográficas naquela mesa de bar. Permita-me, senhor elegante, ser devorada por ti em sonhos insones. Aqui neste lugar, onde o vinho escorre na minha garganta já tão sufocada pelo pretérito da saudade, penso em beber-lhe, assim, como goles de saudade, como goles de Amor que está tanto em falta neste mundo. Até mesmo eu, errante apaixonada, dom quixote de saias, deixo-me levar várias vezes que o Amor é apenas uma invenção tolas dos homens, descritas em versos de Petrarca. Uma loucura arquetípica dos homens, um devaneio não desmentido ainda pela ciência.

Aqui nessas linhas, não há espaço para pudor algum, não há nem um centímetro para descrever vergonha. Aqui é lugar de pouca vergonha, dou-lhe meu rosto para bater, sendo que uma face é pra bater, outra é beijar, como quiseres. Tiro minhas roupas em frente aos teus olhos tão desacostumados às coisas vazias deste mundo, talvez isso lhe traga algum momento de coerência, lembrando que Ícaro, da mitologia grega, também achou coerente colocar um par de asas e voar bem próximo ao sol. Em sua verdade imposta pelo sonho dele, ele caiu ferido e queimado no ar. Suas asas, estavam pesadas. A água do mar trouxe-lhe o peso da realidade.

Queria agora, devorar-lhe com os olhos, queria agora, neste instante, que rasgasse meu babydoll caro de seda e renda. Queria agora 12 horas de putaria num quarto de motel. Queria agora meu corpo insanamente encharcado com sua saliva. Isso te envergonha?Desculpe-me senhor, não sou mulher de meias palavras. Sou mulher para ser amada sem pudor num quarto de motel ou qualquer lugar ao qual pudermos transar. Quero sentir-lhe entre minhas pernas, como um errante perdido no meio da estrada, queria gemer em seus ouvidos, transbordar em você todas as minhas gotas de razão. Queria eu, ao fitar teus lindos olhos azuis, perder-me em um milhão de parábolas talvez inexplicadas. Queria ser eu, aquela que lhe tira o sono, mesmo sendo um homem cansado e cujo cansaço seja talvez em excesso, meu motivo de ser sua insônia repente em minutos de cansaço, abra-lhe um sorriso tímido nos lábios. A saudade de seus beijos me fazem perder a paciência…

Tal como vinho italiano.

Descobri uma forma de desejo que escorre pela garganta. Não queridos leitores, não estou falando de sexo oral. Estou falando sobre o calor causado por goles de vinho italiano, especificamente Cavicchioli Lambrusco, safra de 1928. Vinho expande meus horizontes, faz-me sentir plena, com todas as emoções à flor da pele, é como se as cores e sabores ficassem mais nítidos, meu universo tão incompleto, é como se os vapores etílicos desta bebida me desse todas as coisas que eu sonho, seja de olhos abertos, ou fechados, nas minhas poucas horas de sono de todos os dias. Numa dessas sensações, a vontade louca de fazer amor impera como frames por segundo numa tela de cinema. Não importa a quantidade de álcool que escorre como um rio garganta dentro, basta o cheiro de vinho, vinho é extremamente sensual. Um dia, sonhei que tomamos uma garrafa de vinho e transamos escondidos embaixo da mesa. Quando eu era garotinha, às vezes pegava escondido um copo e tomava embaixo da mesa. Na época, me dava sono, então logo em seguida eu ia dormir. Minha mãe achava que simplesmente era uma soneca infantil. Creio que o meu sonho cruzou essa lembrança de minha infância e traçou um desejo de minha alma já adulta mas com traços de criança feliz. Ainda adoro algodão-doce, a ponto de lamber meus dedos como sorvo o vinho de teus lábios manchados, pecado rubro, pele manchada de desejo. Nós dois rolando ao chão como garrafas ao chão. Você me quebra, em pedaços de emoção, faz-me tua lembrança doce surgir em mesas solitárias de bar. Cada gole solitário dessa bebida enebriante é um pedaço de tua pele que me toca os lábios, cada cheiro emanado da taça que eu levo à boca, é um cheiro teu envolvendo-me, uma lembrança de teu pescoço nu, consigo sentir seus tendões e veias aparentes, teu sangue nobre, tal como o vinho.

Nas minhas memórias encharcadas de lençol de motel, só tem lugar para aquele ao qual eu imortalizo nessas linhas tão tortas, aquele que me levou ao sétimo céu, aquele que eu não tenho vergonha alguma de admitir que o quero entre as pernas. Sou uma mulher e não mais uma garotinha de 15 anos, cheia de incertezas. A vida é muito curta para nos privar de desejos. Queria agora, neste momento em que escrevo solitária numa mesa de bar, que ele estivesse ao meu lado agora, mas a falta de sorte anda me perseguindo com seus passos de glória descontente. Ando perdida em um oceano, esperando este homem de olhos incógnitos, olhos que eu daria minha emoção mais incontida numa bandeja servida com carne e molho pardo. Uma faca, um garfo, deguste-me sem moderação. Queria beijá-lo, seus lábios silenciosos, beijaria teus olhos azuis todos os dias, se eu pudesse, mas eu transformo esse desejo em metáfora, eu olho para o céu e vejo a imensidão infinita de teus olhos. Eu não consigo tocar e nem beijar o céu, mas apenas o fato de olhar para o alto e lembrar-me de ti, já me és suficiente para traçar uma lembrança saudosa de teus olhos que falam.

Queria deitar-me em seu peito, e escutar suas histórias, espalhar-me em sua cama, como uma garrafa de vinho, rolando no chão. Teu rosto, linhas de perfeição com todos os seus vincos e barba por fazer, um traço de sua pele branca me convidando a devorar-lhe como um fruto proibido, fruto doce, cheio de sumo, incontido em meus sonhos encharcados durante a madrugada, nas poucas horas que eu durmo. Venha e derrame toda a sua fúria, sabor, calor. Meu corpo é uma taça, e você é delicioso como um vinho italiano.

“O cheiro de sua pele doce faz complicar o meu sonho
Oh posso ficar aqui por algum tempo vivendo o seu sorriso
Ah, como você poderia saber o que você fez
Você aqueceu meu coração quando eu estava tão sozinha
Mas tudo o que tenho para dar
São os meus sonhos de ir e vir para sempre
Dentro dos rios do tempo você vai me encontrar esperando
Para que você possa encontrar paz em sua mente
Assim, podemos amar de novo”