Você mostrou-me teus olhos, até então cobertos por um véu. As ruas do subúrbio escondem a tristeza fria e sedutora dos homens. E quando os olhares se encontram, é como se estivéssemos gritando, com medo, com frio. Os muros estremecem, são as marretadas do nosso medo, batendo de frente com nossas emoções. Nobre coração, correndo, batendo voluptuoso e insano em cima das bicicletas do subúrbios. Jovens, homens e mulheres compartilhando a brisa batendo no rosto. Nunca tivemos tanta certeza, que nossos sentimentos traiçoeiros estão nos sorrindo, perdidos nos becos, e então nós rimos, porque afinal, nosso sarcasmo e ironia nos corrompe docemente nas memórias noturnas, quando adultos. E eu me lembro… Daquelas tardes ensolaradas no subúrbio. Nós nunca gritamos tão alto…
Éramos jovens, você se lembra? Corríamos pelas ruas do subúrbio buscando sonhos desacordados, com canções em tons desafinados, cores ajustadas, como a mistura de Renoir num quadro pintado em Paris. Posso estar escrevendo coisas das linhas pra fora. Entenda querido, já são além da uma da manhã, e eu ando tendo madrugadas insones. Há um silêncio lá fora que me convida para contemplar os gatos por cima do muro. Eles andam numa graça inocente por entre as grades, e quando me veem com os cabelos ao vento, no meio dessa madrugada de outono indeciso, eles me encaram com os olhos brilhantes. Há um gato, negro como a noite, eu só vejo os olhos amarelos, me encarando como se soubesse dos meus sonhos de ir e vir, das minhas noites tecendo a saudade em meu tricô imaginário de vinho Merlot. Hoje bebo no gargalo, desde que te conheci ignorei a etiqueta de tomar vinho como gente educada. Eu não sou mais educada, sou tresloucada.
Se eu fumasse, acenderia um cigarro, talvez um mentolado, ou aqueles doces, de cereja. Ficaria soltando anéis de fumaça no ar, quem sabe eu fizesse um grande o bastante? Tem uma coruja aqui perto do terreno baldio, ela mora num buraco. Em meus sonhos, ela poderia passar voando nos meus anéis de fumaça mentolados. Ela passaria por dentro deles e daria um rasante no chão. Talvez, pegasse minhas emoções que jazem no chão, e levaria para bem longe, talvez para um inferno Dantesco, ou para o paraíso dos sonhos de Beatriz. Lá existe um pouco de Amor. Eu escuto Chico Buarque e sinto Amor, e eu queria que quando eu passasse você me estendesse a mão, ou o chapéu, mas tu não usas chapéu. Um dia queria que me mostrasse o sol, aquele que lhe faz sorrir, assim, mais de duas vezes ao dia. Percebe? Eu te mostraria toda a beleza de um dia chuvoso, talvez encontrássemos alguma coruja tomando banho, enquanto as pessoas passam aturdidas com seus guarda-chuvas, com raiva, passos largos. Eu contaria os segundos, contigo, e depois me apoiaria em teu ombro quando o trovão bradasse a fúria dos Deuses lá naquele horizonte de campo aberto.
Quando eu era criança, eu gostava de andar de bicicleta embaixo da chuva. Eu passava na poça de lama, e conforme ia pedalando, a roda de trás respingava lama nas costas da minha camiseta velha de guerra. Meu pai sempre falou que eu poderia tomar um raio na cabeça, mas a única coisa que eu tomei, foram gotas de chuva que me escorriam nos lábios. Eu era uma criança levada. E você ficou com minhas fotografias… Tem uma delas que eu estou feliz e banguela num balanço. Tem outras que estou acampando em Brotas, e eu praticava trilha na serra com minha mãe e aquele que um dia eu chamei de pai. É uma longa história, queria te contar um dia, sobre minhas aventuras, dos dias que eu subia no telhado escondida. A vida era incrível vista de cima, e pela primeira vez na vida, percebi que as pessoas não dão valor para quase nada, não tinham um olhar apurado, nunca ninguém me viu lá em cima, ninguém, só pardais e pombas que balançavam nos fios do poste… Ahhh, e o cachorro da vizinha, que eu tinha que passar de fininho, porque ele ficava nervosinho e se colocava a latir ininterruptamente. Tinha medo de ele chamar a atenção da minha vizinha balofa que não dormia porque o marido roncava. Ela poderia acabar com a minha brincadeira infantil de ser uma stalker das alturas. Um dia, atirei uma pedra no cachorro dela. Você vai me dizer:
“Malvada”…
Mas um dia, você me contou que jogou o gato da janela. Tu eras uma criança, tão malévola quanto eu, ou não… Apenas queria ver se o gato cairia de pé… Lembra? Quando você me contou isso, eu lhe disse pra você amarrar um pão com manteiga nas costas do gato, assim ele cairia de costas… Mas você cresceu meu bom menino… E nas ruas desse subúrbio, enquanto você dorme, com seus sonhos que talvez nem se lembre quando acordar, eu lembro da sua travessura de menino, como cenas de um frame despedaçado. Eu posso ver duas crianças correndo pelo subúrbio… Mas isso é apenas um devaneio, perdido entre meus anéis imaginários de fumaça. Na primeira tragada eu vou achar que vou morrer. Tentei tragar uma vez, quase morri, mas você tentou me ensinar. Eu acho que ainda não aprendi, ou tenha me esquecido. Fico apenas na vontade de menta, cereja ou pinho…
Eu poderia te reconstruir, como um vitral, daquelas igrejas europeias, mas não seriam imagens santificadas, já lhe disse um dia, eu fujo de tudo que é convencional, e faço isso sem querer, sou tresloucada… Quando criança chutava os formigueiros e passava o tempo observando o caos. Eu me perguntava se as formigas gritavam, como as pessoas na televisão quando aconteciam aqueles terremotos lá no Japão. Hoje só escuto meu próprio grito. O resto eu ignoro. Além de louca, sou egoísta. Mas eu te amo, mesmo tendo atirado o gato da janela. Você chega até mim nessa noite, com seus sonhos e travessuras de bom menino.