“Eu vou sair, Eu vou beber até a morte”
Acordou pela manhã fria e preguiçosa com a tal dor de cabeça dos infernos. Apesar do frio, raios tímidos de sol mostravam-se lá fora, mas o vento que entrou pela persiana da janela a dizia que era para se agasalhar. Foi como a voz da mãe, que na sua adolescência ficava gritando da sola da porta que se ela não levasse um agasalho, iria pegar friagem. Nunca escutava a mãe, odiava coisas que a apertavam, preferia passar um bocado de frio, do que sair toda coberta por aí. Inverno era seu terror, sentia-se numa pressão ao qual não escaparia. Roupas grossas de inverno cobrindo-lhe o corpo, não gostava daquilo, mas não tinha como fugir, na época de adolescente a desculpa de conhaque com limão e mel não funcionava, e quando funcionava a mãe a repreendia, discussões e mais discussões e a garrafa de conhaque da bolsa espatifada no chão da cozinha, sua mãe sempre fazia isso e a fazia limpar os cacos no chão da cozinha. O não conformismo da mãe a fez se rebelar mais, e ali, olhando para a janela do apartamento que era de sua mãe, antes dela morrer atropelada na avenida por um bêbado suicida na contramão. Denise tinha 35 anos, maços de cigarros vazios na beirada da cama e garrafas vazias pelo apartamento, dividindo espaço com o ateliê ao qual levava a vida.
Quando completou a maioridade, era responsável por si, sua mãe não poderia atirar as garrafas aonde bem ela queria. Ela trabalhava desde os 15 numa loja de discos, fumava e bebia o dia inteiro, mas levava o dinheiro pra casa. Tinha o sonho de entrar para a universidade, queria fazer artes visuais. Tinha um namorado, ele fazia tatuagens nela de graça, e foi internado três vezes para reabilitação. Entrou para o mundo do crack e matou a avó com cadeiradas porque a avó não quis lhe dar dinheiro. Ela ainda ficou com ele, visitando-o na prisão, até ele se enforcar na cela. Enterrado numa cova simples, apenas Denise e a Mãe foram ao enterro. Um dia, Denise chegou fumando charuto cubano de canto de boca e com os dois braços cobertos de tatuagens. Sua mãe apenas olhou, com um olhar de reprovação. Ela tinha completado 21 anos na noite anterior, não comemorou com a mãe. O silêncio da mãe, sepulcral. Denise estava na cozinha, cheirando a álcool, cigarros, charutos e suor, preparando café, para curar a ressaca. As únicas palavras de sua mãe foram “Tem comida na geladeira, precisa comer… Estás magra demais… Comprei bolo, estava esperando você chegar, para cortarmos, como nos velhos tempos. Seu presente está no quarto.” Tendo dito isso, foi para o quarto, com sua xícara de chá de erva cidreira. E a mãe de Denise passava os dias assim, com a aposentadoria do marido, fazendo artesanato, trancada no quarto, entupia-se de Rivotril, Fluoxetina. Tentou ensinar a filha a bordar, mas Denise carregava dentro dela uma rebeldia, e dizia que mulheres modernas não têm de saber disso e que a arte feminina deveria fugir de rótulos, mulher não sabe apenas bordar, ela, Denise não sabia bordar, mas pintava retratos eróticos, participava de orgias e as retratava com grafite e a ajuda de esfuminho e borracha macia. Denise chegou ao quarto e estava em cima de sua cama uma maleta cheia de pincéis e tintas. Havia um bloco de papéis e dez telas de pintura. Apoiado na parede estava um cavalete de pintura em madeira nobre. Sentiu que mesmo sua mãe indo contra a maré de ideologias que ela carregava, de alguma forma a mãe acreditava nela, mesmo nos momentos em que chegava bêbada e dormia até o dia seguinte. Não se esquece do dia que sua mãe a jogou debaixo do chuveiro e viu todas as tatuagens antes escondidas por camisetas escuras. Não falou nada, apenas balançou a cabeça, indignada. A fez tomar várias xícaras de chá, e dormiu ao lado dela a noite inteira. Sua mãe achava o tempo todo que ela estava doente, e a fazia comer, Denise obedecia, mas sumia durante semanas e até meses, mas sempre ligava para a mãe dizendo que estava tudo bem. E as duas conviviam assim, debaixo do teto do pequeno apartamento. A mãe, viciada em chás, tricô, novelas e antidepressivos… Denise em álcool, cigarros e arte. Ficavam em silêncio, era mais suportável. O Amor entre elas, alcoolizado e depressivo. Estava fria aquela manhã de lembranças, Denise precisava comprar cigarros e comida para o gato e a iguana que estavam em algum lugar do apartamento. Foi para a rua com o suéter de tricô feito pela mãe. Era sua forma de pensar e estar com ela.
Continue assim: a arte deve ser uma manifestação estética da paixão.
A drogatização e a orgia são formas desesperadas de amar. A Ana descreve muito bem isso. E, ao mesmo tempo, talvez sem saber, apresenta a solução: a arte praticada de forma apaixonada. No caso dela, a literatura.
Com certeza, apesar de eu ter meus momentos de excessos etílicos. Creio que todo mundo tem suas válvulas de escape, depende de como cada um lida com ela. 😀