Cores de Almodóvar

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar…

"Ouça-me bem amor Preste atenção, o mundo é um moinho Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos Vai reduzir as ilusões à pó."
“Ouça-me bem amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões à pó.”

Acordou, eram sete horas da manhã quando o despertador tocou. Ela colocou um ringtone de um galo cantando, pois isso a lembrava os bons tempos em que morava com os pais numa chácara de uma cidade do interior. Estava gostoso, ali, na sua cama, debaixo das cobertas. Deixou o modo “cochilo” por 10 minutos, apenas para colocar os pensamentos em ordem. Ela não gostava de se levantar em movimentos bruscos, acordar logo após o despertador. Era necessário um tempo, para retomar a realidade que a esperava todas as manhãs, um tempo para se recordar como foram seus sonhos, um tempo para se recompor de um pesadelo, simplesmente um tempo efêmero, que equivale a finalmente abrir o olhos, se espreguiçar e deixar as roupas ao chão em direção ao chuveiro. Uma paradinha básica para ver o rosto amassado no espelho do banheiro e os olhos de ressaca. Ficou contemplando a imagem matutina no espelho, até que o vapor do banho morno borrou sua face. Entrou pra debaixo do chuveiro, e em 15 minutos, no seu ritual diário de purificação, limpou o corpo e a alma dos fantasmas da noite passada, e em meia hora depois, trancou as portas de casa e atravessou a rua para o ponto de ônibus.
O dia lá fora estava de cores mistas. Um lado do céu estava triste, em tons de cinza. Do outro lado, um azul tímido queria surgir entre o alaranjado do amanhecer que estava desvanecendo. A brisa batia suave, e o cheiro era de orvalho de grama da ruazinha de baixo. Naquele bairro suburbano, as árvores davam um tom mais amistoso na cidade de pedra e nos dias de outono, as folhas amareladas davam o tom nas calçadas de concreto. No ponto de ônibus, pessoas com seus maus-humores habituais. Ela diz “Bom dia!”, mas talvez, o talvez o tom acinzentado do céu transmita às pessoas um tom mais frio, certa vontade de recolher-se pra dentro. Na esquina, na beirada da calçada com a rua, uma rama de flor nascia no asfalto, e não estava “atrapalhando o trânsito”, nasceu amaldiçoada pela falta de atenção. As pessoas poderiam pisar nela, e nem ao menos perceberiam que aquela flor ali encontrou seu espaço de vida ali, naquele lugar tão incomum. Suas pétalas eram brancas, e naquele dia de uma provável tarde chuvosa, o seu instinto de sobrevivência seria agradecido pela água da chuva que desce calmamente pela rua.

Nasceu assim, entre a calçada e a rua, sobrevivendo ao caos do bairro do subúrbio.
Nasceu assim, entre a calçada e a rua, sobrevivendo ao caos do bairro do subúrbio.

Ela ouve então o barulho do ônibus virando na esquina. As pessoas ao seu redor, continuam de mau humor. Se ela pudesse ver a aura daquelas pessoas, elas seriam de um tom cinza escuro, como se uma tempestade estivesse ao redor delas. Engraçado até, ela pensar desta forma, tendo em vista que gosta de tempestades. A tempestade a tranquiliza, e ela acredita que a chuva tem um poder de sedução muito forte, é algo triste, para a maioria das pessoas, mas pra ela, tempo de chuva é algo absurdamente sexy, tal como uma mulher de vestido e salto alto vermelho, Penélope Cruz e um homem comendo pêssegos, amarelos, macios e carnudos. E já lhe disseram um dia: “Você é assustadora”. Ela apenas concordava, com um sorriso sádico de canto de boca, um sorriso carmim.
Subiu no ônibus, e não era mais aquele motorista que não devolvia-lhe o seu “Bom Dia”. Este motorista era alegre, ele respondia bom dia e perguntou se estava tudo bem. Coisas assim fazem toda diferença, e as pessoas que estavam com ela, talvez por isso, pelo bom humor e cordialidade do novo motorista daquele horário. O tempo, aos poucos está mudando lá fora, os primeiros tímidos raios alaranjados do sol estão brilhando, naquela janela do ônibus. Enquanto as pessoas se protegem debaixo de seus Ray-Ban, ela apertava os olhos, gostava daquilo. Gostava de sentar sozinha no banco de ônibus, porque todos lhe pedem para fechar a cortina por causa do sol, como se já não bastasse os óculos escuros, e ela então deixa uma fresta pela janela, só pra ela. Ela aprecia viajar com músicas nos ouvidos, não gosta de conversar muito nas viagens, gosta de observar lá fora, “viajar na maionese”, como dizia sua mãe, ficar com os olhos perdidos, pensar num poema, rabiscar as palavras que lhe chegavam, convidando para brincar. A beleza da vida em movimento, a velha que todos os dias cuidava do jardim, estudantes andando de bicicleta, as barracas de cachorro quente, crianças sonolentas esperando a van que as levaria para a escola, os cachorros e seus respectivos donos, senhoras e senhores se exercitando no gramado e existia o caos, e ela de uma certa forma precisava disso, e ela acreditava, que todos nós devíamos enxergar a importância dos caos nessa nova vida. Sem ele, talvez as coisas perderiam um pouco de sentido, e tudo poderia ser entediantemente fácil. Ela ficaria irritada com o tom azul demais das coisas. Tempos negros, são necessários…
Chegou na empresa, cumprimentou os colegas. Chegou na máquina de café, pediu um expresso com pouco açúcar. Um amigo a recebeu com dois pães de queijo quentinhos, se atualizaram sobre o final de semana. O dela foi pacato, tranquilo, umas boas leituras, alguns rascunhos no papel, chá com bolachas e seriados ao final da noite. A vida dela necessita de um pouco de calma, uma paz, no meio de todo o caos, um tempo sozinha para respirar, é o que precisa. Um tempo para pensar na vida, e nas suas consequências e inconsequências. No final das fofocas de expediente e expectativas daquele dia de trabalho, o dia tomou rumo, com suas tarefas, compromissos e stress. Foi embora, no final do dia passou pela passarela que corta a rodovia. Era horário de verão, e ela amava aquilo, porque nos tempos de criança, significava que podia brincar até tarde na rua, e quando eram oito horas da noite, seu pai gritava seu nome no portão, para ela entrar e tomar um banho. Ela se lembra, das suas férias, suja de lama, do campinho de futebol do vizinho. Nunca foi fã da cor marrom, mas essa cor lhe traz boas lembranças. Embaixo da passarela, os carros, ônibus e caminhões passavam, com suas luzes amareladas, e os mais modernos, com luzes de farol azuis. O mesmo cheiro, de poluição e fim de tarde. Ao longe, a cidade universitária a convidava para passar em casa, tomar um banho e caminhar sem pressa, contrariando o aviso que lhe foi dado para não caminhar ali à noite, mas sua alma era pura teimosia e lá no fundo, ela gostava de ser assim.

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm
Para quê?
As crianças correm
Para onde?
Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?

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